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O Processo

Por Filipe Chamy

O Processo
Direção: Orson Welles
Le Procès, EUA, 1962.

Grandes cineastas dificilmente filmam clássicos da literatura. Seja para fugir dos xiitas inimigos ferrenhos de todas as adaptações que fogem do pé-da-letra, seja por achar que o livro já disse tudo e um filme não poderia expressar nada mais de interessante — ou por qualquer outra razão. Hitchcock, Chaplin, Truffaut, Bergman, Fellini, é raro encontrar na carreira de diretores aclamados uma obra baseada em um texto muito cultuado. Orson Welles é uma das principais exceções: fez, por exemplo, Otelo, Macbeth, gravou Dom Quixote... e Kafka. Os fãs ardorosos do livro O processo costumam torcer o nariz para o filme O processo. Dizem ser muito Welles, pouco Kafka. Muito barroco, pouco profundo. Obviamente, eles estão errados. É fácil perceber isso quando se desnuda sua ótica: enxergam todos os méritos na obra literária e lembram do cinema apenas como simples entretenimento. Se são tão cheios de pudores e preconceitos, para que ver um filme como este O processo? Isto não é literatura. Flerta com ela e com o teatro, mas é majoritariamente Welles: cinema. Se consideram o livro o máximo da perfeição, fiquem com ele; não percam tempo vendo um filme em que, além do mais, o autor (diretor, entendam esses tipos) muda o final original. Sim. Mas o fato é que quem deixar esses “problemas” de lado, irá degustar um filme e tanto: aliás, uma obra-prima.

Todo mundo deve saber que Josef K. (Anthony Perkins) é um sujeito que se vê acusado de um crime e preso. K. não quer exatamente provar sua inocência, mas saber por que foi incriminado. Tudo parece apenas vago e nebuloso, os responsáveis por sua acusação fogem de perguntas diretas, a lógica deles parece ser apenas a da missão cumprida, nada de explicações ou clareza. E K. vai sendo levado, de momento a momento, a conhecer uma certa quantidade de pessoas e elementos que não só não o ajudam a compreender o que acontece como tornam o quadro mais confuso ainda.

Welles, sábio pintor cinematográfico, desenha planos com maestria e precisão. O trabalho com as sombras é impressionante, sempre escondendo emoções que afloram ou aprisionando olhares fortes, sombreando corpos e rostos com genialidade brutal. É um filme muito sofisticado visualmente, como de resto quase todos do cineasta. Angulações tortas, movimentos de câmera rápidos e instigantes. Cenas muito abertas, com os personagens esmagados ante a imensidão da imagem. A perspectiva acompanha ou não os personagens, às vezes criando a impressão de afastamento que naturalmente o diretor procurava. Não só há o distanciamento físico, mas o moral: o certo é o torto, e o direito é usado como uma saída social. A justiça funciona, mas quem disse que ela é justa?

Josef K. vai sendo levado da apatia incrédula — como acreditar em tamanhos absurdos? — ao desespero impotente. O julgamento se aproxima, os olhos da lei parecem vendados (— e pior, debaixo da venda não há olhos, a cegueira é plena). Não é possível compactuar com tamanha falta de opção, mas K. não encontra apoio algum, todas as pistas para sua absolvição são falsas e ele próprio (quase?) passa a acreditar na sua culpa. Se há tanto empenho em encarcerar alguém, motivo deve haver. A metáfora inicial (e final, graças à metalinguagem) é bastante enigmática, como o próprio filme e o personagem interpretado por Welles (um advogado que parece saber mais do que o possível). O final é talvez anti-climático, lembrando o apocalíptico A morte num beijo, de Robert Aldrich. O que nos faz crer que a humanidade fabrica sua própria morte.

Muitos dizem que Orson Welles era um diretor medíocre que deu sorte com um filme, Cidadão Kane. Erro dos mais grosseiros: Orson Welles era um diretor brilhante que deu azar com alguns filmes. E este passa longe de ser um desses.



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