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Que história espera seu fim lá embaixo?

Por Melody Westenra

O Visconde Partido ao Meio, de Ítalo Calvino

Numa época em que o mundo inteiro estava praticamente dividido em dois pólos, o bloco capitalista e o bloco comunista, que se resumiam num corte definido como o bem e o mal, O Visconde Partido ao Meio, livro da trilogia de Calvino composta também por O Cavaleiro Inexistente e O Barão nas Árvores, é uma fábula que metaforiza um mundo em que a essência de tudo pode ser dividida sempre em uma parte boa e uma má.

O Visconde Medardo di Terralba, ativo participante na guerra contra os turcos, sofre um acidente em que apenas metade de seu corpo é salva. O meio-homem volta, então, para seu povoado, onde pratica uma série de ações vis – a metade restante do Visconde é a metade má do homem completo.

Embora a duplicidade bem-mal do personagem seja bastante óbvia no decorrer geral da história, é importante notar que, muito provavelmente, essa não foi a única intenção de Calvino ao escrever a fábula de um homem dividido em dois. Seria quase um conto infantil se a única dicotomia da obra fosse a mais clara e crua. A divisão de um homem ao meio, no entanto, é o meio utilizado para se mostrar o caráter duplo e ambíguo de quase tudo que se relaciona à vida humana.

Uma das grandes tarefas do Visconde é encarregar o carpinteiro de Terralba, Pedroprego, a construir máquinas gigantescas e perfeitas para torturar o maior número de pessoas possível. Embora Pedroprego seja contrário Às aspirações homicidas de Medardo, fecha os olhos para a natureza maléfica de suas construções e se concentra em sua perfeição, sua tecnologia e no talento que possui para construir tais ferramentas. É um exemplo claro do desenvolvimento tecnológico humano, do progresso, sendo utilizados de maneira grotesca – o melhor e o pior da ciência juntos, sem poderem ser separados.

Embora pareça óbvia, essa dualidade não foi tão facilmente retratado de maneira tão bem-humorada em outros momentos da literatura mundial. Temos o paralelo primário, O Médico e o Monstro – que se dá principalmente quando a outra metade do Visconde, a metade boa, ressurge das cinzas – e, no mesmo contexto literário, Frankenstein. Nas duas obras, de maneiras ligeiramente diferentes, temos um personagem divido em dois, que luta para conciliar os dois lados de seu caráter, e tal repartição está conectada com o uso de uma ciência que é atraente por significar poder, mas a qual é impossível saber realmente no que resultará. Nos dois casos, ao contrário da fábula de Calvino, essa luta interna tem resultados tenebrosos, que abalam a vida em geral. No caso do Visconde, as ações vis têm sempre uma decorrência cômica, e todas as conseqüências – tanto das atitudes do Bom quanto do Mau Medardo – são envoltas num humor negro que torna a narrativa leve, como deve ser uma fábula.

A convivência dos dois Viscondes é de tal maneira absurda que, embora se completem, eles tentam, inadvertidamente, anular um ao outro – onde o Mau casa desgraça, o Bom surge para remediá-la; onde há qualquer tipo de beleza ou bondade, Medardo, o mesquinho surge para destruí-las; onde há qualquer tipo de injustiça, Medardo, o bondoso, tenta dissuadi-la. As maldades de um visconde assombram o povoado, mas as bondades indistintas do outro são também desumanas, quase insuportáveis.

O corte sofrido pelo Visconde causa, a princípio, uma redução da pessoa humana original, mas resulta também na noção de que cada um de nós é incompleto em si mesmo, angustiantemente presos a idéias pré-concebidas do que é certo e errado, de quem é decente e quem não é, de no que confiar e do que desconfiar... Todos nós estamos presos no inacabamento de nossos próprios valores.


― Explique-me o senhor, doutor: tenho a sensação de que a perna que não possuo está cansada de tanto caminhar. O que isso pode significar?




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