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TESOUROS DOS QUADRINHOS
Clássicos absolutos das HQs, de todas as épocas e estilos.
Por Daniel Salomão Roque


O AMIGO DA ONÇA, de Péricles (1943)



AMNÉSIA CULTURAL

A veracidade daquele chavão que diz ser o Brasil um país desmemoriado pode ser comprovada com muita facilidade através do estudo de nossa produção artística e cultural. Se uma amnésia cruel assola áreas unanimemente respeitadas, como é o caso da música, das artes plásticas e da literatura, é de se imaginar que os quadrinhos não apenas não são exceção, como também apresentam um vácuo ainda maior no que se refere à bibliografia especializada, reedições, preservação de material histórico, quantidade de informações disponíveis ao grande público, etc. Para a infelicidade geral dos apreciadores de HQs, é exatamente isso o que ocorre, sendo que nem mesmo os grandes autores e os mais populares personagens do passado estão isentos do ostracismo e/ou ignorância por parte das novas gerações.

Talvez o melhor exemplo dessa situação seja o Amigo da Onça: um ilustre desconhecido para quase todos os brasileiros com menos de 45 anos, a criação de Péricles conquistou um sucesso popular que no nosso país só veio a se repetir quando Maurício de Souza deu início às historinhas de Mônica e sua turma. É um tremendo engano limitá-lo à mera categoria de personagem bem-sucedido vitimado pelo esquecimento: acima de qualquer outra coisa, trata-se de um verdadeiro ícone nacional, um símbolo de tudo aquilo que possa ter ocorrido no Brasil entre as décadas de 40 e 70. Em pouquíssimo tempo, aquilo que havia surgido como uma comédia de costumes permeada pela mais fina ironia tornou-se também um veículo formador de opiniões, graças à aprovação dos leitores, ao conturbado período histórico no qual as charges foram publicadas e à enorme circulação da revista O Cruzeiro, em cujas páginas eram impressos os hilários sketches do sacana de terno branco.

O COMEÇO DE TUDO

Como quase tudo o que realmente faz diferença na vida das pessoas, a origem do personagem não reside em acontecimentos grandiosos ou circunstâncias imponentes, mas em fatos aparentemente insignificantes – no caso, uma piada sem graça e a necessidade de algumas mudanças na linha editorial do Cruzeiro: certo dia, alguem sugeriu a elaboração de um personagem fixo para a revista, visando catapultar as já elevadas vendas e atrair um público ainda mais diversificado. Na verdade, a idéia não era lá muito original; experiências semelhantes já haviam rendido muito dinheiro em outros países da América Latina e também no eixo EUA-Europa, mas e daí? Como se as motivações já mencionadas não fossem o suficiente, um mascote proporcionaria a simpatia do público infantil, reforçaria a identidade da publicação e serviria de pretexto para satirizar qualquer coisa. A princípio, os editores não imaginavam qual seria o tipo físico da criatura, nem seu caráter, perfil psicológico, hábitos ou vestimentas; a única premissa era a seguinte anedota, que retrata um diálogo entre dois caçadores:

- O que você faria se fosse surpreendido por uma onça?
- Daria um tiro nela.
- Mas e se você não estivesse com seu rifle?
- Aí eu mataria o bicho com golpes de punhal.
- E supondo que você tivesse esquecido o punhal em casa?
- Nesse caso, eu pegaria um pedaço de pau e mataria a onça com pauladas.
- E se você não achasse nenhum pedaço de pau?
- Aí eu sairia correndo e subiria numa árvore.
- E se não houvessem árvores por perto?
- Oras, afinal de contas você é meu amigo ou amigo da onça?

E foi assim que tudo começou. A revista ainda passaria um bom tempo tentando encontrar um artista que aceitasse produzir algo em cima disso, até que chegaram a um garoto de 19 anos que estava trabalhando na redação há poucos meses. Era Péricles de Andrade Maranhão, conhecido simplesmente como Péricles. Nascido em Recife, no dia 14 de agosto de 1924, mostrou desde pequeno um imenso talento para o desenho, tendo sido na adolescência o ilustrador oficial do periódico da escola onde estudava. Em 1942, partiu do Nordeste em direção ao Rio de Janeiro, na época a capital federal, com uma carta de recomendação escrita pelo jornalista Aníbal Fernandes e endereçada à direção do Cruzeiro. Foi aceito e, em junho do mesmo ano, já estava rabiscando para esta e outras publicações, dentre as quais O Guri e O Diário da Noite, sendo que nesta última lançou seu primeiro personagem: Oliveira, o Trapalhão. Em 1943, concebeu a gag inicial das muitas que o Amigo da Onça protagonizaria, e o resto é história.

A obra seguia uma estrutura deveras simples. Cada piada, onde o protagonista SEMPRE (sem exceções) colocava alguem em má situação, era contada em apenas um painel, que ocupava uma página inteira do Cruzeiro, e com pouquíssimas linhas de texto. Os diálogos, quando haviam, eram simples, diretos, sem muitos pormenores. Péricles usava e abusava das cores fortes; tinha um traço simples, limpo, quase popularesco, característico da época e muito chamativo. Segundo consta, já na década de 50 era considerado antiquado por alguns: na tentativa de “modernizá-lo”, Ziraldo chegou até mesmo a apresentá-lo cartunistas como Harvey Kurtzman e Jules Feiffer, os quais foram rejeitados de maneira feroz pelo pernambucano, famoso pelo seu humor assumidamente popular.

QUEM É O AMIGO DA ONÇA?

Resposta: um sujeito magrelo, fumante inveterado, invariavelmente trajado com um terninho branco e cujo rosto é composto por um penteado lambido e partido ao meio; costeletas proeminentes; sombrancelhas curtas, grossas e bem espaçadas entre si; uma grande e redonda testa; olhos cretinos e desconfiados, tão enormes quanto seu nariz vermelho, abaixo do qual se localiza um bigodinho ralo. Uma pessoa dessas, dotada de um biotipo frágil e possuidora de tamanha cara de bunda, aparenta ser um bocado inofensiva, e é aí que está o problema – nunca desconfiaríamos que estamos lidando com um baita filho da puta (e suas vítimas, também não). O Amigo da Onça é aquele ser que não mede esforços para prejudicar terceiros e colocar seus semelhantes em situações constrangedoras; quase sempre, faz parecer que não foi intencional e, na maior parte das vezes, isso não traz a ele nenhum tipo de benefício: a sacanagem e mau-caratismo é apenas um prazer pessoal.

Via de regra, esse tipo de comportamento resultava em momentos tão engraçados quanto ingênuos, como é o caso da charge em que o personagem diz ao dono de uma galeria de arte, em frente aos seus clientes: “Este Picasso está vendendo bem, quer que eu pinte outro?”. Num outro painel, ele interrompe a apresentação de um faquir para dar o seguinte aviso: “Só tem queijo prato, porque o minas você comeu todo ontém”. Porém, vez ou outra o preconceito, a morbidez e a tragédia alheia também acabavam servindo de matéria-prima para anedotas igualmente cômicas, mas não tão ingênuas assim. Numa delas, ele se transforma num cirurgião que, após ter costurado a barriga do paciente, se dá conta de que esquecera suas luvas no interior do corpo do cidadão. Em outra, ele se utiliza de um estetoscópio para indicar a um suicida o ponto certo para se atirar no coração. Podemos também mencionar o dia em que ele próprio resolve se matar, dizendo para um estranho no momento em que pula do prédio: “Só de brincadeira, escrevi nesta carta que você foi o responsável pelo meu ato”. O Amigo da Onça também já presenteou o Saci Pererê com um patinete, deixou um homem inocente apodrecer na cadeia e assustou um pai de família, avisando da seguinte forma que seus filhos nasceram gêmeos: “Adivinhe só? Quatro braços, quatro pernas e duas cabeças!”. Celebridades também não eram poupadas: dentre os sacaneados ilustres, podemos mencionar Tarzan, Superman, o cantor Nat King Cole, o escritor Boris Pasternak e o próprio Péricles.

CRIADOR E CRIATURA

A repercussão do personagem foi estrondosa e imediata, a ponto do Cruzeiro ter que variar na localização dos painéis, já que se revelou desastrosa a experiência de reservar ao cartum a última página da revista: muitos leitores passavam na banca só para dar uma olhada nas presepadas do Amigo, e deixavam de comprar a publicação após já terem recebido quase tudo o que ela poderia oferecer em termos de divertimento. Péricles passou a ser reconhecido na rua por todos os brasileiros, e um aspecto que chamava a atenção de muitos era sua imensa, curiosa e estranha semelhança física com o personagem que lhe trouxe a fama: o cartunista também era magro, narigudo e adepto do bigode à la Clark Gable, mas a coisa parava por aí. Tímido ao extremo, era descrito por amigos, familiares e colegas de trabalho como uma ótima pessoa, excessivamente apegada ao emprego e cujo humor alternava entre a mais frenética alegria e estágios de depressão profunda. Num destes momentos mais sombrios, o artista perdeu o controle de si mesmo e tirou a própria vida, sufocando-se com gás de cozinha em plena véspera de Natal. O ano era 1961, e na porta de seu apartamento havia deixado o seguinte bilhete: “Por favor, não acendam fósforos”.

Por razões óbvias, O Cruzeiro não queria abandonar a mais popular e lucrativa sessão da revista, e devido a isso entregou O Amigo da Onça nas mãos do não menos genial Carlos Estêvão, que manteve as piadas num nível tão bom quanto o do falecido criador. Com a morte de Estêvão, em 1972, diversos desenhistas medíocres gastaram seus pincéis com o personagem, até que este deixou de ser publicado. Tamanho deslize, porém, não foi o suficiente para desfazer toda a aura que havia em torno do mais adorável pilantra da história das HQs: ainda hoje sua figura estampa avisos de “Não vendemos fiado” nos botequins das cidades, apesar de poucos realmente saberem quem ele é.



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