html> Revista Zingu! - arquivo. Novo endereço: www.revistazingu.net
Da Vera Cruz à Retomada

Por Gabriel Carneiro; Ligia Gauri e Mariana Zapella, especialmente para a Zingu!

O cinema em São Paulo se intensificou a partir da Vera Cruz, que surge em 1949 com uma proposta inovadora. A partir daí, vemos os influenciados pelo Neo-Realismo italiano, o surgimento do pólo cinematográfico da Boca do Lixo, reunindo estéticas como o cinema marginal e as comédias maliciosas, a decadência da Boca, com o cinema de sexo explícito, e em 1995, a Retomada, momento atual do nosso cinema. Além de fazer um retrocesso pelos movimentos e contextos do nosso cinema, mencionamos alguns dos grandes nomes, aqueles que fizeram diferença, ao menos para tal estética. Não tínhamos como objetivo fazer um top, e sim uma retrospectiva de 16 filmes, importantes para o contexto ou pelo diretor/personagem..

Caiçara (Adolfo Celi, 1950)
Primeiro longa-metragem da Companhia Vera Cruz, fundada em 1949 com o objetivo de criar um cinema brasileiro industrial, de modelo hollywoodiano. Embora tenha trazido grande efervescência em número de produções para o cinema paulista, a Vera Cruz fechou as portas em 1954. “Quase todos os filmes da Vera Cruz foram sucesso. Não foi por isso que faliu, foi má administração. Fizeram filmes caros demais para um mercado fechado e corrupto”, analisa o crítico Rubens Ewald Filho. Caiçara se passa em Ilhabela e narra o drama de uma bela jovem que se casa e vai morar numa aldeia de pescadores com o marido, sempre bêbado. Acaba se apaixonando por um marinheiro. Dirigido pelo italiano Adolfo Celi, o filme teve grande influência neo-realista (movimento do pós-2ª Guerra, que buscava retratar realidades sociais) e foi sucesso de bilheteria e de crítica, chegando a participar do Festival de Cannes em 1951.

O Cangaceiro (Lima Barreto, 1953)
Maior sucesso comercial da Vera Cruz, o filme de Lima Barreto apresenta uma visão paulista folclórica do cangaço. Produzido em São Paulo, narra o embate entre o capitão Ferreira e seu comparsa Teodoro pela professora Olívia, o primeiro tentando mantê-la sob seu domínio e o segundo, libertá-la. Influenciado pelos western, a temática do cangaço toma o lugar dos índios e da conquista do oeste. Seu êxito se deu, segundo Sérgio Alpendre, editor da revista Paisà, a “uma conjunção de fatores como atores, músicas, tema, data de lançamento, que na maioria das vezes definem um sucesso, ou pelo menos ajudam para que seja um trabalho bem-sucedido comercialmente”. A Companhia Vera Cruz, em dificuldades financeiras, vendeu os direitos de distribuição para a Columbia, “pois nunca imaginava que o sucesso de O Cangaceiro poderia tê-la tirado do buraco”, conclui Alpendre.

Absolutamente Certo (Anselmo Duarte, 1957)
Filme de estréia de Anselmo Duarte como cineasta, que também atua como personagem principal. A comédia narra as peripécias de Zé do Lino num concurso popular da televisão e as brigas com sua sogra e vizinha (Dercy Gonçalves, à época grande nome do cinema). “O Anselmo tinha uma leveza característica das chanchadas, que tinham um espírito mais carioca, mas suas comédias eram mais bem produzidas, com composição da Vera Cruz. Ele mesmo era um ator de comédia”, opina Inácio Araujo, crítico da Folha de S. Paulo. As tendências da época são representadas no filme, como a preferência pelo rock e a popularização da televisão e dos programas de auditório Outras características importantes eram a presença de cenas com números musicais e o destaque dado à cidade de São Paulo. Em 1962, Anselmo ganharia a Palma de Ouro pelo filme O pagador de promessas.

O Grande Momento (Roberto Santos, 1958)
Roberto Santos tinha claras influências do neo-realismo italiano e, segundo o cineasta Carlos Reichenbach, “era, de uma certa maneira, espectro do cinema novo em São Paulo”. O filme se passa no Brás e conta a história de um noivo em busca de dinheiro para realizar seu casamento. Apesar de abordar os problemas sociais brasileiros, não tem como objetivo principal a denúncia. Foi o longa de iniciação de Santos, um dos primeiros diretores autorais do cinema brasileiro. “O cinema era enxergado como meio de expressão, e a câmera, como caneta. A gênese, o projeto e o argumento são do diretor”, diz Reichenbach. E conclui, sobre a sua relevância cinematográfica: “Roberto Santos tem uma obra importantíssima, com dois filmes que são essenciais para o cinema paulista: O grande momento e A hora e a vez de Augusto Matraga”.

Jeca Tatu (Milton Amaral, 1959)
Jeca Tatu foi o papel mais marcante do comediante Amácio Mazzaropi. Baseado na obra de Monteiro Lobato, Jeca Tatu narra a história de um caipira preguiçoso que vê sua propriedade ameaçada por um latifundiário ganancioso. Mazzaropi, assim, se tornou referência ao interior de São Paulo. Com seus trejeitos e ditados, fez muita gente rir; era um típico comediante de gestos. Também produtor e diretor, Mazza se aproveitou do sucesso e fez diversas seqüências até 1981, quando faleceu, vítima de câncer na medula. “O personagem se confunde com o ator propositalmente. O personagem de Lobato era muito famoso na época e Mazza se aproveitou disso. Não era bobo”, diz Rubens Ewald Filho. Rubens ainda afirma: “[Mazzaropi foi] um personagem único que não teve frutos, como tudo no Brasil. Nem herança deixou. Mas foi popularíssimo, aliás, até hoje é lembrado. Coisa rara por aqui”. Em 2005, o diretor Luís Alberto Pereira filmou Tapete Vermelho, uma evidente homenagem ao personagem Mazzaropi.

São Paulo S/A (Luis Sérgio Person, 1965)
Carlos é um homem solitário que transita no tempo e pela cidade de São Paulo; sua vida é um reflexo das dificuldades com suas mulheres e seu emprego. O boom da indústria automobilística e o surgimento de uma nova classe média urbana são abordados no filme, como constata o cineasta Carlos Reichenbach: “Antes de São Paulo S/A, não existiu na dramaturgia brasileira nenhuma obra cultural que tenha detectado esse movimento”. Person só percebeu a mudança, pois ficara fora do país. “Foi da ausência dele, de quando ele sai de São Paulo e vai pra Itália estudar. Ele volta e enxerga um país diferente. O Brasil tinha se modificado em dois, três anos. São Paulo tinha se modificado”, conta Reichenbach. Por isso, o próprio personagem se confunde com o diretor, a sensação de estranheza, de inconformismo, de angústia. “Ele se projeta neste personagem de forma total. Person era muito passional”, conclui.

O Quarto (Rubem Biáfora, 1967)
Rubem Biáfora começou como crítico de cinema em O Estado de S.Paulo, e, desta forma, interessou-se por direção. O Quarto é seu filme mais conceituado pela crítica e pelos fãs. Nele, Biáfora retrata as indiferenças de um homem solitário nos seus 40 anos e suas relações amorosas com mulheres. O quarto em si é um recurso usado para mostrar exatamente a que se resume a existência daquele homem. Para o cineasta e crítico da Set Alfredo Sternheim, o cinema de Biáfora era “expressivo, mas típico de um amante da sétima arte.” Isso explicaria a semelhança de seus filmes com outros ao redor do mundo. “Acho que, mesmo sem querer, ele assumia influências do cinema que apreciava. Em O Quarto, talvez tenha sido influenciado pelo cinema japonês da época, de Naruse, Gosho, que retratavam realidades urbanas”, conclui o autor do livro Cinema da Boca – Dicionário de diretores.

O Bandido da Luz Vermelha (Rogério Sganzerla, 1968)
Este foi o filme mais representativo do cinema marginal. “A idéia era transgredir, burlar as regras: daí o desbunde, a escatologia, o mau gosto, a apologia dos seres à margem do mundo”, na opinião de Juliano Tosi, crítico da Paisà. A história baseia-se na vida de João Acácio Pereira da Costa, famoso assaltante, que desnorteou a polícia e acabou ganhando grande destaque na imprensa, na década de 60. A liberdade estética visa ao rompimento com o Cinema Novo, garantindo sua criatividade e inovação. Embora com referências ao estilo norte-americano, Inácio Araujo afirma que a idéia do filme “está voltada para a questão da antropofagia do Oswald de Andrade, em se abrir, como nesse caso, às influências estrangeiras de Orson Welles e Jean-Luc Godard. A proposta é fazer um filme brasileiro”.

Palácio dos Anjos (Walter Hugo Khouri, 1970)
“Palácio dos anjos” é o bordel criado por três lindas mulheres que, cansadas das más condições em seus empregos, viram prostitutas de luxo. Um aspecto fundamental do cinema de Khouri era o erotismo. A sensualidade das mulheres era priorizada, sem cair na vulgaridade. O tema central de seus filmes eram, geralmente, os homens, mas, neste, as mulheres ganham destaque. “As mulheres comandam o rumo da historia. Os homens pagam, mas são elas que atingem seus objetivos”, diz Eduardo Aguilar, cineasta e professor de cinema. Influenciado pelo cinema existencialista de Antonioni e de Bergman, o diretor se preocupava muito com a criação de uma atmosfera em seus filmes. “O uso constante dos closes é uma marca muito forte no cinema do Khouri assim como no de Bergman, extrapolando o trivial e adquirindo uma intensidade impressionante, que invade a alma dos seus personagens”, acrescenta Aguilar.

Independência ou Morte (Carlos Coimbra, 1972)
O filme, que narra a trajetória de D. Pedro I ao poder e seu relacionamento com as mulheres, foi concebido para se comemorar os 150 anos de independência do Brasil. Não houve, porém, pior época para ele; era o Regime Militar (1964-1985), o que bastou para que a crítica e parte do público se voltassem contra o longa, acusando-o de ser a favor do regime. “Coimbra foi criticado como um homem a serviço da ditadura, por causa do 'patriotismo' que, dizem, ele pregava. Tolices da época. Quem viu o filme sem isenção sabe que não era patriotismo coisa nenhuma, era apenas um filme histórico”, afirma Ignácio de Loyola Brandão, em artigo para O Estado de S.Paulo. O cinema de Coimbra ficou marcado negativamente, porém era um homem que amava essa arte. “Ele comeu e bebeu cinema, viveu cinema a vida inteira, não ficou rico como certos nomes e nos últimos anos mergulhou num ostracismo", conclui Loyola.

A Dama da Zona (Ody Fraga, 1979)
Ody Fraga foi um dos muitos diretores que fizeram filmes na Boca do Lixo, pólo cinematográfico industrial paulista a partir da década de 1960. O seu auge se deu na década de 1970, com filmes de diversos gêneros, usando algumas vezes atores famosos, baixíssimo custo de produção e grande retorno financeiro. Foi na Boca que as chamadas pornochanchadas tomaram forma. "O erotismo no cinema nacional sempre teve aceitação popular. Mas a crítica resolveu estigmatizar as comédias da época com o rótulo 'pornochanchada'. Uma generalização predatória", explica Alfredo Sternheim, e complementa. "Na época, nossos filmes e nossos símbolos eróticos tinham atração popular natural, sem concorrência de Internet e de vídeo. Dessa maneira, nosso cinema se auto-sustentou sem se acomodar no dinheiro público, como hoje é freqüente". A Dama da Zona é um exemplo, relatando as aventuras de uma prostituta e de um vigarista.

A Opção (Ozualdo Candeias, 1981)
O filme retrata a vida de caminhoneiros e prostitutas à beira de uma estrada. “É um universo que o Candeias conhecia muito bem”, diz o crítico da Paisà Juliano Tosi, referindo-se ao passado de caminhoneiro e “gigolô de prostituta pobre”, como o próprio Candeias disse. “[Aopção é] um registro muito cru e cruel, dessa vida, um mundo um tanto sórdido onde o prazer é um luxo fora do alcance daquelas mulheres e o sexo é visto como relação de força, seja por dinheiro ou por violência”. O cineasta, que inaugurou o cinema marginal com o filme A margem (1967), foi um dos grandes expoentes da Boca. “Candeias foi mais importante, mais central para a Boca do Lixo como um todo, mesmo que não se identificasse com o grosso da produção”, comenta Juliano. Por não ter a mesma preocupação estética e ser de uma geração anterior, foi considerado o marginal entre os marginais. Faleceu em fevereiro deste ano.

Fuk Fuk à Brasileira (Jean Garret – como J. A. Nunes -, 1986)
A decadência do cinema da Boca do Lixo veio com a ascensão dos filmes de sexo explícito, em detrimento da usual produção. "O sexo explícito foi uma decorrência natural do sucesso internacional de O Império dos Sentidos em nossa produção, por exigência do mercado exibidor", conta Alfredo Sternheim. Em 1981, Coisas Eróticas inaugurou a produção brasileira. Muitos diretores e técnicos se viram sem rumo, afinal, sobreviviam do cinema. Alguns desistiram, outros filmaram explícitos. O público padrão exigia a pornografia. Fuk Fuk à Brasileira, que narra as aventuras sexuais de um anão mudo, é um exemplo. O gênero se manteve, com o acréscimo do sexo explícito. Assim como Garrett, outros cineastas assinaram com nomes diferentes. "Eu assinei meu nome, mas, assim, enfrentei mais preconceitos dos críticos", diz Alfredo, que também fez filmes explícitos.

Alma Corsária (Carlos Reichenbach, 1993)
Dois amigos se reencontram em uma pastelaria para o lançamento do livro escrito por um deles, após muitos anos sem se falarem. “É um filme sobre a amizade, o Carlão fez um filme para os seus amigos e com os seus amigos”, diz Inácio Araujo – que fez uma ponta no longa. Realizado depois da crise do cinema nacional e antes de sua retomada, foi feito com parcos recursos. Nas palavras de Inácio, Reichenbach “tem uma capacidade de fazer filme com pouco dinheiro. Foi assim com Alma corsária. Ele dirige, escreve o roteiro, fotografa e faz a música. Uma das coisas que explica seu sucesso é que foi um filme feito com dificuldade, com economia”. Autoral e intimista, o cineasta foi aluno da primeira escola de cinema de São Paulo, Escola São Luiz, e, mais tarde, fez filmes na Boca, tendo sido o único que continuou fazendo cinema depois da decadência do pólo.

O Invasor (Beto Brant, 2001)
Terceiro longa de Beto Brant, o filme narra a trajetória de um matador que, depois de assassinar um empresário por encomenda de seus sócios, retorna à empresa com o objetivo de fazer parte do negócio e acaba se envolvendo com a filha daquele que matou. A característica marcante do diretor é seu estilo próprio para contar histórias, e, na opinião de Sérgio Alpendre, “Brant tem uma postura que independe de modismos ou padronizações. Os filmes são exatamente o que o autor gostaria que eles fossem”. O invasor ganhou diversos prêmios – entre eles, Melhor Filme Latino-Americano, no Sundance Film Festival -, tornando-se um sucesso de público atípico em sua carreira até o momento. O filme marca o fim de uma fase policial de seu cinema, pois depois dele seu foco passa a ser muito mais o homem do que a ação. “É certamente uma peça de transição, de algo mais geral para algo mais específico e pessoal”, afirma Alpendre.

Encarnação do Demônio (José Mojica Marins, 2007)
Encarnação do Demônio é o fim da trilogia sobre a busca de Zé do Caixão por uma mulher que gesta o filho perfeito. O filme é a seqüência de À Meia-Noite Levarei Sua Alma (1964) e de Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver (1967). Quanto às expectativas sobre o novo projeto, Carlos Reichenbach afirma: “Se o Mojica conseguiu trabalhar com total liberdade, só pode ser uma obra-prima. Mas, como todo grande artista, é passível de dar certo ou tremendamente errado”. Uma das mentes mais criativas do nosso cinema, Mojica se consagrou pelo personagem Zé do Caixão, fato que o colocou no cerne do cinema de horror e do cinema brasileiro. “Zé do Caixão e Antônio das Mortes [do Glauber] são os dois personagens mais importantes da dramaturgia brasileira, porque são personagens épicos com tradição da tragédia grega e porque são ícones da brasilidade”, opina Reichenbach.

(Agradecemos aos entrevistados, ao Marcos Vale e ao Matheus Trunk, que colaboraram na elaboração dessa matéria.)

Créditos fotográficos: Alma Corsária (Arquivo pessoal de Carlos Reichenbach); Encarnação do Demônio (André Sigwalt/Divulgação); as demais (Reprodução/Divulgação)

*Publicada original e parcialmente em ESQUINAS #41 (1º semestre de 2007).



<< Capa