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Interlúdio

Por Filipe Chamy

Interlúdio
Direção: Alfred Hitchcock
Notorius, EUA, 1946.

Dos filmes mais importantes de Alfred Hitchcock, Interlúdio é provavelmente o menos visto e conhecido no Brasil. É uma injustiça ainda maior quando se percebe que é não apenas uma obra fundamental na filmografia do mestre inglês mas um dos melhores filmes americanos de sua década e um trabalho de genialidade arrebatadora e influência não menos relevante. E um dos maiores romances do cinema, claro.

Alicia Huberman (Ingrid Bergman, no auge da beleza e do talento) é filha de um espião nazista recentemente capturado. Perseguida pela culpa, esquece seus problemas com festas e álcool, conseguindo atrair para si a fama de uma mulher fútil e de vida libertina. Mas acaba conhecendo um homem chamado Devlin (Cary Grant), que ela descobre tratar-se de uma espécie de agente secreto e que a convoca para prestar um serviço à democracia (?!): possibilitar a prisão de um certo líder nazista chamado Alexander Sebastian (Claude Rains). O que ocorre é que Sebastian era amigo de seu pai e fora apaixonado por Alicia, tornando a abordagem mais fácil e até mais crível. Ela deve tentar se aproximar do homem e colher o máximo de informações úteis à causa — digamos logo — ianque. Mas ela se aproxima demais e o espião, apaixonado sinceramente, a pede em casamento. Mesmo com seu forte sentimento por Devlin, Alicia, heroína do ofício, aceita submeter-se a essa prova em nome do bom resultado de seus esforços: casa-se com Alexander e vai morar com ele em sua mansão. Lá, conhece a sogra, madame Sebastian (Leopoldine Konstantin), que de partida antipatiza com a nora, por alguma razão ainda indefinida.

Alicia segue fazendo jogo duplo por um tempo, mas uma festa põe tudo a perder. E essa festa é um dos momentos de maior genialidade de toda a carreira de Hitchcock, um primor de construção da tensão e narração, algo indefinível com palavras e brilhante visualmente. Uma garrafa pode ser mais assustadora que um revólver, ao menos se um grande cineasta a utiliza. E a festa ainda é um elemento que redefine toda a estruturação da história daí para a frente: Sebastian descobre que Alicia tem com Devlin algo mais que simples polidez social, e percebe que a sua adega disse a eles coisas que deveriam ter permanecido em segredo — mesmo com alguns equívocos provocados anteriormente.

A sogra de Alicia sugere a Sebastian ir se livrando paulatinamente da esposa, pois os demais membros da liga nazista que opera no Rio de Janeiro não podem desconfiar que um de seus colegas se envolveu tão intimamente com uma “espiã” americana — o menor deslize é fatal para quem trai de algum modo a organização. Alexander só pode concordar com a idéia da mãe, caso contrário seria ele o prejudicado. Então eles passam a ministrar à moça veneno em doses discretas, disfarçado na alimentação. Ela descobre e aos poucos se deixa matar, pois Devlin resolveu mudar de base operacional e irá para longe, acreditando em seu desprezo. E como ignorar o fato de que ela se deitou com outro homem para levar a cabo a missão? É uma titânica dificuldade separar o amor do orgulho e da profissão.

Hitchcock apresenta um mundo de sentimentos conflitantes: os vilões são humanos, sofrem, pensam, temem; e os protagonistas são inseguros de um amor verdadeiro, são frágeis, têm muitas dúvidas. Impulsos e carências podem ocasionar conseqüências, mas isso não é necessariamente algo positivo. O amor se sobrepõe ao dever? A coragem de confessar sentimentos é inferior à sensação de trabalho concluído? No que Alicia erra? E Devlin, era apático? Sebastian era verdadeiro? Interlúdio é uma saga do coração, e nada pode ultrapassar a dimensão romântica que um beijo entrecortado que dura minutos deixa em duas existências — nem mesmo o aterrador final de Sebastian, a insinuação mais precisa e completa da história do cinema hitchcockiano.



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