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MANIFESTO ZINGU!: COMBATE À IGNORÂNCIA

Por Andrea Ormond, especialmente para a Zingu!

Uma vez, faz poucos anos, me vi em uma rodinha animada de debate cinematográfico, e citei o nome de Fauzi Mansur. Nenhum dos presentes, a maioria estudantes de cinema ou jornalistas, tinha sequer ouvido falar de Fauzi Mansur.

Tentei Jean Garret, e me perguntaram se eram diretores brasileiros. Expliquei que sim: os dois são gênios do cinema popular brasileiro e pertencem à lista dos dez ou vinte melhores diretores que o país já teve.

Cena seguinte, à menção do prólogo "maiores diretores brasileiros", alguém já atraía atenção falando de "Terra em Transe", de Glauber Rocha – relançado em cópias luxuosas e restauradas, nos cinemas do Rio e de São Paulo. Murchei completamente na conversa, como quem se vê falando búlgaro em uma turma de animados chineses.

Este episódio me vem à lembrança quando ouço novamente – pela centésima vez – que a região onde existiu a Boca do Lixo paulistana está abandonada (sobre o assunto, leia melhor aqui). Existem, claro, iniciativas de revitalização, mas por que não ampliá-las?

Confesso que, como pesquisadora, estive lá algumas vezes e nada me aconteceu de ruim, exceção feita aos pedidos de dinheiro, seguidos de xingamentos espúrios, até engraçados. Mas o que impressiona, em quase tudo que vejo e leio sobre o assunto, é que ninguém chega perto de elaborar o óbvio: ali, naquele lugar hoje decadente e limítrofe, funcionou – não faz tanto tempo, e durante mais de duas décadas – o maior centro produtor de cinema da América Latina.

Se fosse nos EUA ou na Europa, o que aconteceria? Um local afetivo desses, mesmo necessitando intervenção drástica, seria marco, símbolo positivo para o país. No Brasil, quem se arrisca a passar pela Rua do Triunfo, nem imagina a efervescência criativa, cultural, de duas, três décadas atrás.

Ora, porque não transformar a velha Boca dos Sonhos em atração turística? Porque não dar a algumas ruas, nas proximidades, o nome dos grandes cineastas já falecidos que lá fizeram carreira (Ozualdo Candeias, Garret, Portioli, Ody Fraga, etc). E por que, principalmente, não se abre no coração da região um cineclube – e mais do que isso, uma faculdade ou curso livre de cinema, ministrado pelos diretores, atores e técnicos que ali trabalharam?

A quantidade de pessoas – grandes homens e mulheres – afastados e alijados de suas profissões, que receberiam um sopro de vida com essa iniciativa, é inimaginável. Não deve custar muito, e uma saudável parceria com a iniciativa privada amortizaria ainda mais os valores.

A verdade é que a incompreensão e o descaso com a Boca são um crime à cultura brasileira. E se um dia a indústria de cinema paulistano morreu sufocada de cima para baixo – pelos interesses do capital estrangeiro e a ingerência dos poderes públicos – está ameaçada de morrer tantas outras vezes, enquanto seu antigo espaço físico e seus valores humanos não forem revalorizados – olhados enquanto patrimônio histórico, de todos os brasileiros.

Quem sabe assim, um dia meus colegas intelectuais “descubram” que Fauzi Mansur e Jean Garret fizeram filmes no seu próprio país. Ainda há tempo de consertar o equívoco?



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