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Os Incompreendidos

Por Filipe Chamy

Os Incompreendidos
Direção: François Truffaut
Les Quatre cents coups, França, 1959.

François Truffaut disse inúmeras vezes que toda a obra de um cineasta está contida nos primeiros cinco minutos do primeiro rolo de seu primeiro filme. Como renegava seu primeiro curta, o desaparecido-até-prova-em-contrário Une visite, considerava Os pivetes o marco inicial de sua carreira. Mas apesar de o curta tecnicamente ser uma introdução ao universo particular do diretor e tematicamente apresentar elementos que estariam presentes em praticamente todos os seus futuros trabalhos (mulheres, carinho por crianças, uma certa melancolia justificada, amor...), é Os incompreendidos, seu primeiro longa-metragem, que apresenta de maneira plena e poderosa as bases de seu cinema. Um amontoado de fúria (mas bastante doce e espontâneo), uma fulminante visão autoral da infância. Truffaut nunca negou sua influência de Vigo e Rossellini, segundo ele os únicos cineastas que mostraram essa passagem da vida não como um mar de felicidades e encantos, mas uma difícil época de transição. Porém Truffaut, pessimista de ternura irrenunciável, foi além de seus mestres e teceu uma película que não apenas o define mas exterioriza o pensamento inconformado de toda uma geração da França — cujos cineastas retratariam esse período, sendo colegas de Truffaut na nouvelle vague. E se há tanta verdade nesta primeira parte da saga de Antoine Doinel (o grande Jean-Pierre Léaud, aqui ainda pequeno — fisicamente, mas com talento gigante), é porque seu autor foi sincero a ponto de exorcizar artisticamente seus fantasmas internos, adquiridos há anos, e de uma maneira tão bonita, e tão eficaz, que o filme permanece fresco e atual, tremendamente humano e honesto.

Antoine Doinel é um garoto de classe média que não se encaixa na sociedade que habita, apesar de algumas preguiçosas tentativas. Entedia-se muito facilmente com aulas (e o professor não ajuda, aliás, atrapalha), seus pais não o entendem e sua vida é terrivelmente constante na sua rotina apavorante. Refugia-se na arte — impossível concordar com Truffaut quando falava que de maneira alguma o filme é uma autobiografia —, descobre e apaixona-se por Balzac (e como todos os amores românticos, a paixão é consumida por chamas), passa a freqüentar cinemas (clandestinamente, como seu criador), mente na escola, foge de casa. Não é em nada diferente de tantos adolescentes, mas, em parte pelo ator, tem muitos diferenciais. Nunca é antipático, mau, cruel, cínico. Tem boas intenções, quer sair sem amarras (o título original, Les quatre cents coups, é parte de uma expressão [Faire les quatre cents coups] que significa algo como “viver livremente”), ou seja: viver, não apenas existir.

A enorme força de Jean-Pierre Léaud está em todos os momentos, nas correrias com o amigo René, nas brincadeiras, nos momentos de graça e nos de tristeza, na brilhante e improvisada cena do interrogatório com a psicóloga, na sua voz, no seu andar, no seu olhar. É um grande intérprete que a câmera de Truffaut revela, e quando isso acontece o personagem sai do cinema e passa a um plano mais tangível, coisa difícil de ser alcançada mas conduzida com notável sensibilidade pelo diretor. E a competência do cineasta também está nos planos abertos e curiosos, típicos de um entusiasmo juvenil, que ele observa e já nem tenta domar. E ainda há a beleza plástica da fotografia, as ruas elegantes, a ponta de Jeanne Moreau e Jean-Claude Brialy, o amadurecimento de idéias há muito existentes na mente de Truffaut (a julgar por seus brilhantes textos publicados antes de 1959).

Antoine Doinel voltaria em outros quatro filmes, todos estrelados por Jean-Pierre Léaud: O amor aos 20 anos, Beijos proibidos, Domicílio conjugal e O amor em fuga. Passou por uma casa de recuperação para jovens delinqüentes, amou, trabalhou em muitos ofícios, casou-se, teve um filho, separou-se, virou escritor... il a fait les quatre cents coups.




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