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TESOUROS DOS QUADRINHOS
Clássicos absolutos das HQs, de todas as épocas e estilos.
Por Daniel Salomão Roque


VIZUNGA, de Flavio Colin (1964)

"Vizunga", segundo consta na trama da obra homônima que discutiremos, é uma palavra indígena que significa "irmão". O título dessa pérola não poderia ser mais curto, grosso, rápido, eficiente, sintético: não apenas diz muito a respeito do personagem principal, como também nos fornece um grande leque de informações referentes à ambientação da história, aos assuntos abordados por ela e, principalmente, às inspirações e intenções de seu autor, o carioca Flavio Colin, nascido em 1936 e falecido em 2002.

Dos seus 66 anos de vida, mais de 40 foram dedicados à criação de histórias em quadrinhos: nestas quatro décadas, consolidou-se facilmente como um dos grandes desenhistas do nosso país, sendo que nunca faltou quem o considerasse o maior de todos. Assim como a esmagadora maioria dos mestres de sua geração, Colin teve sua carreira associada principalmente ao terror, gênero no qual explorou com maestria as crendices, superstições, folclore, lendas e sincretismos religiosos que sempre marcaram o Brasil, mas nunca deixou de se aventurar por outros caminhos: começou nos gibis educativos e policiais, adaptou para as HQs seriados como O Vigilante Rodoviário, mergulhou em trabalhos de temática histórica e também passeou pelo erotismo, sendo a cultura nacional um elemento onipresente nestas obras de temas aparentemente tão díspares. A inegável genialidade presente em "Vizunga" não é o único motivo pelo qual a tira se destaca no meio de tanta coisa boa: o fato da mesma fugir à qualquer classificação de gênero e ter sido produzida num período de transição na trajetória de seu criador também pesam bastante.

Em meados da década de 60, Colin estava a um passo de abandonar os quadrinhos. Ele havia sido um dos artistas mais engajados na luta pela valorização das boas HQs nacionais e, devido a isso, sofreu diversos boicotes e passava por sérias dificuldades financeiras. Maurício de Sousa foi o único autor que atravessou o período de maneira tranqüila e estável, sendo ele o responsável por convidar Flavio a desenvolver com total liberdade uma série de tiras diárias para o jornal Folha de São Paulo, que na época estava expandindo sua sessão de cartuns. Assim surgiu "Vizunga", que estreou em 1964 e foi publicada apenas durante dois anos: como era de se esperar, não deu lucro ao autor, mas angariou um público tão pequeno quanto fiel, e com o passar do tempo se tornou um verdadeiro cult das bandas desenhadas brasileiras.

A tira era inteiramente baseada na famosa idéia de que pescadores e caçadores são, na melhor das hipóteses, exagerados, e na pior delas, mentirosos. Seu protagonista é um homem misterioso, calvo, na faixa dos cinqüenta anos, que passeia sem maiores pretensões pelas praias do Rio de Janeiro, onde faz amizades com pessoas a quem conta as aventuras mirabolantes que viveu no passado. Entre um chopp e outro, ou durante tranquilos passeios pelo litoral, ele discorre com enorme naturalidade a respeito do dia em que fisgou um peixe de noventa quilos, da ocasião em que quase foi atacado por um tubarão, de quando se transformou em ídolo de uma tribo por tirar a mais bela das suas índias da boca de um crocodilo e até mesmo sobre qual a melhor maneira de se caçar elefantes na África, tudo permeado com muito lirismo e bom humor.

Se a premissa de “Vizunga” é dinâmica por natureza, Colin torna a experiência ainda mais intensa, graças a um brilhante uso de contrastes e ao seu estilo deveras original de tecer a narrativa. As praias cariocas (seriam elas tão lindas assim?) transcendem a categoria de cenário para ocupar o status de personagem, tamanha a pompa com que são retratadas; as águas que vão e voltam na areia, gaivotas voando em direção ao Sol, os enormes e luxuosos edifícios de Copacabana em contraponto às belezas da natureza, a pequenez do homem em relação a isso tudo – todos esses elementos estão presentes de forma serena, cinematográfica, quase meditativa, não devendo em nada aos momentos mais inspirados de Hugo Pratt. Porém, quando o protagonista relembra de seus “causos”, somos testemunhas de uma mudança radical, tanto em traço quanto em palavra: os desenhos, antes detalhados, levemente acadêmicos, bem documentados e realistas dão espaço a traços limpos, primitivos, exagerados, caricatos, bidimensionais, de cunho humorístico e sem nenhum compromisso com a realidade. O texto acompanha essa guinada e adquire uma característica paradoxal: seu vocabulário torna-se mais complexo, com referência a muitos animais exóticos, termos técnicos de caça e pesca, palavras indígenas e metáforas de todo o tipo, e com isso a trama, por incrível que pareça, torna-se ainda mais ágil. Cada quadro das tiras, cada linha de texto demonstram profundos conhecimentos em geografia, história, antropologia: Colin sempre foi conhecido por incorporar pesquisas rigorosas ao seu processo criativo.

Durante um bom tempo, “Vizunga” foi considerado o canto de cisne da obra de Colin nos quadrinhos. Desiludido com o fracasso comercial da obra, o artista deixou as HQs de lado para dedicar-se apenas à publicidade, só retornando à nona arte no final dos anos 70, publicando nas revistas eróticas da Grafipar e na Spektro da editora RGE, esta última um dos mais antológicos gibis de horror que o país já teve. Na década de 80, prosseguiu com o gênero fantástico, sendo figura constante nas revistas Calafrio e Mestres do Terror, ambas editadas pela D-Arte de Rodolfo Zalla. Tanto nos 90's quanto nos últimos momentos de sua vida, direcionou sua obra para graphic novels e pequenas produções independentes, dentre as quais se destaca “Fawcett”, cujo roteirista, o fanzineiro André Diniz, chegou a afirmar que, com sua relativa inexperiência, ter um roteiro desenhado por Colin era o equivalente a ser um dramaturgo e ter sua primeira peça estrelada por Paulo Autran e Fernanda Montenegro.

De fato, Flavio Colin foi um dos tops dos quadrinhos mundiais. Ironicamente, o valor que o mestre dava ao Brasil não era recíproco: três meses depois que o artista morreu, sua viúva, que passava por graves dificuldades, foi obrigada a vender inúmeros de seus originais a preço de banana. Triste.



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