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Um dia nas corridas

Por Filipe Chamy

Um Dia nas Corridas
Direção: Sam Wood
A Day at the Races, EUA, 1937.

Alguém pode assistir a Um dia nas corridas e achar um musical envelhecido, com números defasados e anacrônicos. Essas pessoas não estão exatamente sem razão, mas ficar nisso é nadar na superfície. Porque nada importa a música num festival de anarquia como este. Nada é sagrado para os irmãos Marx, a não ser a falta de vínculo com qualquer sentimento piegas — apesar dos esforços em agradar ao público politicamente (e hipocritamente) correto mobilizados por Irving Thalberg, que levou os Marx a começarem seu contrato na Metro mediante a condição de estrelar filmes “com história”. Uma noite na ópera, o primeiro filme do trio (portanto, quarteto desfalcado de Zeppo) no novo estúdio, já contava com uma característica que se estenderia a muitos outros momentos: uma história de amor entre personagens sem muito carisma respaldada pelo auxílio nobre e pelas piadas absurdamente geniais dos três cômicos. Na sua fase Paramount foram criticados por estrelarem obras supostamente sem conteúdo, trama ou lógica. Na Metro isso mudou e apareceu junto a eles um “esqueleto” de história para satisfazer aos espectadores mais boçais, perdão, tradicionais. A fórmula fez sucesso e então foi repetida. Um dia nas corridas é dessa fase e aqui, talvez por essa imposição por sorte vitoriosa, está no auge a liberdade criativa que dá aos irmãos Marx o poder de serem sensacionalmente eles mesmos, com tudo o que isso quer dizer.

Cada irmão possui uma especialidade, uma aparência e um caráter. Harpo, com sua peruca ruiva e sobretudo surrado, cartola e jeito maltrapilho, é o humor físico, exagerado e até caricatural. Chico, de sotaque incompreensivelmente italiano, chapéu esquisito e roupa um tanto quanto infantil, é a mediação entre o verbal e o corporal. A outra ponta é ocupada por Groucho, o que sempre anda de terno (no seu desprezo por autoridades!), bigode pintado e uma resposta rápida dividindo espaço na boca com um charuto — além do habitual “andar de pato”. Três marcas indeléveis na história da comédia no cinema. E se os números musicais são irritantes — como de resto quase todos os musicais envelheceram mal, e talvez por isso o gênero esteja praticamente sepultado —, não o são quando protagonizados pelos Marx. Chico é um mestre no piano, Harpo faz jus ao nome (sim, ele toca harpa!), Groucho dança de um modo inesquecível e o filme é, por direito, só deles.

O restante fica na relação amorosa entre Gil (Allan Jones) e Judy (Maureen O’Sullivan — mim Tarzan, ela Jane), uma moça que tem um sanatório e está prestes a perdê-lo. O dinheiro necessitado poderia muito bem vir da sra. Upjohn (Margaret Dumont, a principal vítima dos Marx), só que para isso ela exige ser tratada pelo doutor Hugo Z. Hackenbush (Groucho), que tem um certo segredinho referente a seu ofício. Tony (Chico) e Stuffy (Harpo) fazem um arranjo e conseguem convencê-lo a vir e ficar no hospital. O problema é que os gananciosos Whitmore e Morgan (respectivamente, Leonard Ceeley e Douglass Dumbrille) estão com planos bem diferentes e querem o comando da instituição para si. Claro que esse é apenas o pano de fundo do grande espetáculo.

Em meio a inacreditáveis desvirtuamentos de corridas de cavalo, trapaças, apostas, desrespeito à dignidade profissional dos médicos, exames fajutos, violência dos inimigos do humor, tiradas sensacionais ([Vilão xarope:] “Nunca fui tão insultado na minha vida!” [Groucho olha o relógio:] “Bem, ainda é cedo.”; [Groucho:] “Ah, a sua mãe! Eu a conheci bem, até a pedi em casamento.” [Judy:] “Mas esse no retrato é o meu pai!” [Groucho:] “Então não foi à toa que recusou.”...), os Marx vão, sob a batuta segura de Sam Wood — quem iria pensar que dirigiria no futuro filmes “sérios” como Por quem os sinos dobram? —, estraçalhando qualquer vestígio de bom comportamento. Uma ótima postura.




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