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Dossiê Paulo Perdigão

O IMPÉRIO DA PAIXÃO

Por Paulo Perdigão
Seleção e transcrição: Matheus Trunk

Por seu tema audacioso- a história de um casal que se isola do mundo para entregar-se ao sexo de corpo e alma, consumindo-se pouco a pouco pelo próprio desejo de que se alimenta o já célebre O Império dos Sentidos (1976), de Nagisa Oshima, autodecretou sua talvez definitiva interdição no mercado brasileiro. Ao contrário, O Império dos Sentidos (Ai No Borei) que deu a Oshima o prêmio de direção no Festival de Cannes de 1978, passou incólume pela censura. É que, embora concebido para formar um díptico com seu antecessor, esta segunda imersão do cineasta japonês nos arcanos da voluptuosidade e da danação terrestre chega a ser discreta em suas raras licenças eróticas.

Explica-se sobre o diretor, O Império dos Sentidos faz pesar na justiça japonesa um processo ainda em curso de atentado à moral. Receando possíveis danos, o produtor francês Anatole Dauman responsável pelos dois filmes, mal encerradas as filmagens de O Império da Paixão transportou Oshima e sua equipe técnica para os estúdios da Argos Filmes, em Paris, onde foram realizados os trabalhos de montagem e sonorização. Mais cauteloso ainda, Oshima perpetrou em sua nova obra, uma espécie de atestado ais bons antecedentes. O Império da Paixão funciona como um contraponto imaculado a O Império dos Sentidos.

Desta vez, suprimiu Oshima cenas mais explícitas de sexo. Em contrapartida, adicionou tudo que poderia justificar, aos olhos dos mais puritanos, as que se espraiavam pelo filme precedente: algo relacionado a uma meditação ampla sobre as angústias da condição humana. E deu margem às suas conhecidas obsessões pela fatalidade e morte, o crime e o castigo perceptíveis nos outros quatro de seus vinte filmes que chegaram a ser exibidos no país.

Para fazer-se ainda mais respeitável, este que outrora foi catalogado como Jean-Luc Godard da nouvelle vague japonesa recorreu ao manto protetor de uma tradição clássica na dramaturgia de seu país- o conto fantástico, que já inspirou a arte transcendental de Kenji Mizoguchi (Contos da Lua Vaga) quanto o cinema expressionista de Masaki Kobayashi (as Quatro Faces do Medo) e Kaneto Shindo (O Gato Preto). Porém, a despeito da hierática beleza das imagens, originalidade e comoção não se mostram o forte deste fúnebre adágio sobre sensualismo, solidão e pecado.

Extraído de fatos reais, registrados numa aldeia miserável do Japão de 1895, o calvário de Seki (Kazuko Yoshiyuki) e Toyoji (tatsuya Fuji), os pobres amantes que buscam a liberdade de sua paixão e são atormentados pela alma penada do marido assassinado, Gisaburo (Takashiro Gisaburo (Takashiro Tamura), percorre sem-número de lugares-comuns da fantasmagórica cinematográfica depois de tropeçar numa sobrecarga de símbolos elementares. “É a natureza que guia o casal à descida dos infernos”, disse Oshima, salientando a especial atenção dedicada à mudança das estações e, sobretudo, ao fogo, a metáfora mais óbvia que descobriu para despejar maus presságios sobre o destino de suas criaturas vergadas ao preso do remorso. Completando o quadro de simplórias alegorias, há um débil mental que comenta as ações e ficaria mais à vontade se narrasse Dodes-ka-den, de Akira Kurosawa. E, naturalmente, um poço, onde os amantes jogam o corpo de sua vítima e ao qual constantemente retornam, presos e inexplicável desígnio. “Estamos sempre no fundo de um buraco”, acrescentou o diretor. É possível: só que A Mulher da Areia de Hiroshi Teshigaraha, já patenteara similar reflexão há 15 anos, e melhor.

Tudo isso, reconheça-se, reduz na tela banhado ao inegável refinamento estético. Contudo, o que Nagisa Oshima idealizou como um fervoroso poema de amor louco não consegue emocionar- pois o espectador não se liga a tormentos existenciais e assombrações fantásticas que já se coagularam em convenções por obra do próprio cinema japonês, em cujo firmamento O Império da Paixão jamais cintilaria como um fulgor de primeira grandeza.



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