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Tristana

Por Filipe Chamy

Tristana
Direção: Luis Buñuel
França/Itália/Espanha, 1970.

Filme menos conhecido dentro da brilhante filmografia de Luis Buñuel, Tristana é um belo exercício de suas marcas: personagens marcantes e repletos de nuanças, crítica à sociedade e à religião. Ainda que não se equipare em importância a outras obras do diretor, é um interessante trabalho de sua fase espanhola — fase minoritária na sua carreira quase sempre francesa; e apesar de estrelado por Catherine Deneuve e Franco Nero, o idioma deste filme é o mesmo de um de seus intérpretes mais destacados, Franco Rey: espanhol.

Tristana (Catherine) é uma jovem que, na Toledo dos anos 1930, perde a mãe. Dom Lope (Rey) fica encarregado de cuidar de sua educação e proteção. A jovem, por ser de beleza pulsante e jeito vivo (apesar das óbvias restrições a que era submetida), desperta em seu tutor mais do que um sentimento paternal; e o maduro e respeitável Dom Lope acaba vivendo secretamente uma estranha vida extraconjugal com a moça.

Após algum tempo de vida subjugada pela vontade de seu sinistro amante, Tristana se solta das amarras ao conhecer o pintor Horacio (Nero), com quem tece planos amorosos ainda incertos — pois além do respeito de Tristana por Dom Lope (a jovem mulher o tem como um pai) há o medo de enfrentá-lo (e, assim, desafiar também a sociedade, de uma maneira ou de outra). O conservador Dom Lope, que — paradoxalmente — por trás de palavras reacionárias e duras defende idéias sociais, é um homem rígido e de temperamento violento, segue intocável em sua mediocridade de burguês decadente.

Tristana foge com Horacio e alguns anos se passam. Quando retornam, Horacio logo entra em contato com Dom Lope (com quem tivera uns desentendimentos) e comunica que sua protegida nunca quis casar-se com ele, o pintor, e que agora sofria de um mal profundo e ainda indeterminado. Dom Lope chama um médico e é informado de que a moça está com um tumor em uma das pernas, que deverá ser amputada. A operação é feita, e Tristana recebe uma prótese. Sua tristeza parece confinada numa muda resignação, como quando toca piano apaixonadamente. Passa a tratar Horacio com relativa frieza, e os caracteres dos personagens sofrem, neste ponto, uma espécie de metamorfose: o que esperar de Tristana, como entender as ações de Dom Lope — é ele bem intencionado? — e por que Horacio parece uma peça supérflua no drama todo?

Buñuel aqui não é auxiliado por seu grande parceiro Jean-Claude Carrière. Adaptação feita a quatro mãos juntamente com Julio Alejandro, é uma trama extraída do romance de Galdós, escritor que Buñuel admirava imensamente. Mas é fato que o universo visual do cineasta é por demais rico para ser associado a apenas um ou outro roteirista; a câmera ágil, que filma uma narrativa interessante e fluida, a arquitetura clássica, com enquadramentos elegantes, tudo está no lugar. A trilha sonora praticamente despida de música incidental é outro ponto de identificação com a autoralidade do diretor.

Apoiado por uma macabra noção de fábula, coisa que sempre dominou com grande facilidade, Buñuel tece rumos inesperados para uma história tão clássica na aparência. O final de tudo é uma prova de sua competência como manipulador do espectador; não à toa, era o diretor favorito do mestre Alfred Hitchcock — o que já de partida não é pouco, mas enseja um esforço mínimo para se compreender as “razões” de seu culto. Claro que nada disso é essencial quando se vê Tristana. As cores, o humor, a leveza e a densidade dramática, o tema mórbido, nada precisa de um “contexto exterior” para funcionar. O cinema de Buñuel é demasiado potente e seguro para se firmar nas próprias imagens, decorrentes da grande inteligência de seu realizador — e de seu apurado senso de estética e atratividade.




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