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Entrevista com Ody Fraga

Por Astolfo Araújo
Seleção e transcrição: Matheus Trunk

Uma longa fila de presidiários, todos com envelopes e papel de cara na mão, espera ser atendida pelo novo bibliotecário, investido no cargo pelas suas virtudes de escritor de TV, roteirista de cinema, diretor e por suas deficiências como trabalhador braçal. Ody Fraga é um homem magro, com aquele ar de intelectual debilitado por leituras de Thomas Mann, Joyce, Gide, absolutamente desnecessárias no presídio do Carandiru. O que esperam os presos- especialmente o líder da ala de presos perigosos-é que Ody dê conta de sua nova função: escrevinhador de cartas para parentes dos presos analfabetos.

E a escolha de Ody resultou em um sucesso absoluto, pois seu talento de redator correu pela prisão, aumentando a fila e suas tarefas. Ody, 49 anos de idade, cineasta desempregado, foi condenado pela Vara faz Famílias à prisão por não pagar pensão alimentícia. Nesse ano de 1979 o cinema da Boca do Lixo está mais uma vez em crise, já que é habitualmente pobre, precário, feito de retalhos e sempre desamparado pelo Estado. Jamais isso aconteceria com os filhos abençoados da Embrafilme. Mas Ody ficará preso por poucos dias, para desespero de seus pobres colegas de prisão.

“Foi uma experiência humana de muita profundidade. Pela primeira vez percebi que o meu talento de escritor tinha um destino muito rico, íntimo e era um maravilhoso instrumento de aproximação afetiva entre os presos humildes com seus lares, ainda mais humildes pela ausência do filho, do pai, do irmão, do marido. Eram cartas escritas com muito sentimento. Também era leitor. Os presos analfabetos só tinham confiança na minha leitura. E então tratava de interpretar as passagens alegres das cartas e passar rapidamente pelas más notícias.”

Ody Fraga hoje está com 54 anos, com mais de 50 roteiros filmados, dirigindo seu 17º filme, e é a expressão máxima da Boca do Lixo. Continua fazendo-se entender por um público imenso, essencialmente pobre, de classe C. E dominando o cinema realizado nesse quadrilátero hollywoodiano, onde a rua do Triunfo é a Sunset Boulevard.

S- Ody, a Boca do Lixo o que é ?

OF- Um lugar de trabalho, uma universidade, o meio intelectual dos pobres, um lugar em que se ensina mais cinema do que na USP. Na USP se faz diariamente um discurso sobre cinema. Aqui se faz cinema. Por aqui tem chegado várias modalidades de jornalistas, pesquisando, inquirindo sobre essa entidade chamada Boca do Lixo e invariavelmente escrevendo folclore. Somos um centro humano de gente que trabalha ou quer trabalhar.

S- É O Centro Pompidou dos pobres ?

OF- Muito mais. É o Museu do Prado misturado com a Broadway.

S- O seu cinema é precário, o seu público classe C, os seus cenários balançam ao menor vento, você se veste como um bancário desempregado. Isso é uma opção ou...

OF-...ou um desleixo ? Não, é uma visão da realidade que só aos 40 descobri, depois que deixei o intelectual masturbatório sentado num sofá de couro e entrei num estúdio de TV, disputando o público no tapa.Troquei a cultura européia e americana pela cultura da TV Tupi, onde escrevi O Preço de Um Homem, Belami e Vendaval. Mas uso Joyce, Thomas Mann e Camus para refletir as aspirações mais simples e essenciais em que personagens tipicamente brasileiros, que mexem com a sensibilidade do público do Cine Marabá, que aliás nunca leu nada.

S- E que conhece só o livro de ponto ?

OF- Quando não está desempregado. Esse público eu respeito, pois o cinema verdadeiramente nunca surgiu na elite. Em todos os países, foi a gente do povo que impulsionou o cinema. Depois, ele foi descoberto e apropriado pela intelectualidade pequeno-burguesa. Daí perdeu o ritmo, foi desfigurado em sua destinação: divertir, enganar os desejos, vender fantasias. É o que eu faço, e o que o cinema da Boca faz. Somos gente do povo fazendo cinema para nossa gente. E ganhando nosso dinheiro honestamente.

S- Como nasce um filme da Boca do Lixo ?

OF- Chega um produtor com uma idéia “genial”.Muitas vezes só com uma cena ou até menos, com um título. Assim como o Cervantes, um produtor muito ativo, que queria de mim um roteiro que tivesse uma mulher fazendo amor com um cavalo.

S- Um animal da moda.

OF- Mas o Cervantes queria um cavalo sem-vergonha. Eu então me lembre de Lawrence desenvolvi um longo roteiro que desembocasse no cavalo e a mulher, e que os dois tivessem um encontro amoroso. E o roteiro virou Mulher, Mulher, um dos maiores sucessos do cinema brasileiro. Eu só escrevo emoções que estão ao meu lado, com as quais eu convivo. E isso passa para o público. As grandes emoções estéticas estão nos grandes países com grandes verbas publicitárias. Ou na Embrafilme.

S- Hoje em dia se fala muito em pornografia e erotismo, absolvendo uma e mandando a outra para o inferno. Você é um pornógrafo convicto ?

OF- Sim. E com muito orgulho, pois a pornografia é o sexo sem vergonha de si. Já o erotismo é complexado, exige véus, lábios vermelhos, roupas esvoaçantes e muita punheta mental. Veja, historicamente, quem é mais importante: Bocaccio ou Sade ? Quem é o mórbido ? Quem é o puro ?

S- O erotismo é a pornografia da classe média ?

OF- Claro. Eu Te Amo do Jabor é tão chulo como qualquer filme pornô da Boca. Só que é espertinho e sofisticado. Uma pornografia sofisticada, tão essencial para a classe média como uma sessão de análise. E muito mais barata. Todos nós precisamos de pornografia. Estimula as glândulas. Um executivo massacrado pelo seu trabalho se delicia com a Sônia Braga, como um operário com a Helena Ramos. No fim dá tudo no mesmo.

S- Então para você é uma bandeira ideológica ?

OF- Quase, mas que a pornografia desmistifica o lado pecaminoso do sexo, isto é uma verdade. Você quer uma prova ? Veja a posição da Igreja atual. Depois de séculos com o poder, a Igreja, jogada pra fora do trem, tenta liderar a oposição. E levanta a bandeira da democracia e do progresso social. Não já padre progressista que não queira a libertação dos povos e a conquista da liberdade. Chegam a vender a idéia absurda de casar marxismo com cristianismo. Agora, se você fala de sexo, mostra sexo, todos os padres se unem e tornam-se medievais, pondo você numa fogueira sem pensar duas vezes. É que a grande arma deles é a repressão sexual. A Igreja usa o sexo para prender o seu rebanho.

S- Só é livre quem é sexualmente livre, senhor Ody “Reich” Fraga ?

OF- Tenho sete filhas e sou avô, podendo responder que só é livre quem vê o sexo com naturalidade. Apaguei completamente qualquer imagem de pecado no sexo. E não sou libertino.

S- Estão dizendo que a abertura só aconteceu no lado da pornografia...

OF- Liberdade para os sentidos. O público está aberto para tudo, todo o povo tem o direito de ver tudo e conhecer tudo. Mas estamos atrelado á Tradicional Família Mineira, que emperra os avanços de todas as liberdades no campo dos costumes.

S- Você falou no filme do Jabor. Por que a Boca do Lixo não tenta conquistar um público mais exigente fazendo filmes “eróticos” ?

OF- Talvez por que o mercado brasileiro não comporte mais do que dois ou três filmes desses por ano. É um risco muito grande. E você precisa de um esquema global-governamental ao seu lado. O que não acontece com os cineastas de São Paulo e, mais especialmente, com os da Boca. E nós somos a verdadeira expressão econômica do cinema brasileiro: produzimos quase 70% dos filmes brasileiros e somos o maior mercado, sem mamar nas tetas do governo. Agora, produzir na Boca é uma prova de talento.

S- Como foram as filmagens de A Filha de Calígula ?

OF- Quando você não tem padrinho, você tem que se virar, ter jogo de cintura, ter imaginação criadora. Um exemplo é a Filha do Calígula, a mais incrível aventura do cinema brasileiro...

S- E incrivelmente pedagógica...

OF- Não me goza. É verdade. O Galante, um dos pioneiros da Boca, que percebeu que poderia emplacar mais um filme se aproveitasse toda a onda publicitária do Calígula original. E bolou um título, explorando a filha do próprio. Aliás, é uma das chaves comerciais do Galante produzir e aproveitar títulos de grandes produções para furar e faturar sobre o cinema estrangeiro. Ele logo inventa uma filiação e larga brasa...

S- Agora ele está esperando o Copolla filmar A Prostituta...

OF- É um cara espertíssimo. Mas o Galante me chamou, numa terça-feira para conversar sobre um filme que ele havia vendido, que iria estrear dentro de 30 dias. E do qual só tinha na verdade o título, A Filha de Calígula. Você sabe que um filme normalmente demora uns 120 filmes pra terminar. Pois bem, na segunda-feira seguinte já estava filmando em Roma Antiga.

S- E como erguer todo o Império Romano, com o Coliseu, Senado, Brutus, Nero, etc em sete dias ?

OF- Tendo uma visão circense da história. Convoquei o auxílio de pequenos circos...

S- E como surgiu uma Roma com gosto de arrabalde paulistano.

OF- Com toda a sua imponência. Só que os atores eram tipos da Boca, com os mais variados sotaques. Eram todos ingênuos e muito ciosos do seu papel, vindo sempre discutir comigo a psicologia dos personagens. Acontece que eu não tinha nem tempo e muito menos personagens. Eram cenas que tinham um sentido muito próprio, e que iam se arrumando como um quebra-cabeças.

S- Deu dinheiro ?

OF- A fita tem uma carreira econômica muito curiosa, sob o ponto de vista sociológico: nas pequenas cidades do Interior, principalmente no Nordeste é um sucesso. Nas grandes cidades é um filme de renda média. Mas realmente nunca pretendo entrar num esquema tão maluco como esse.

S- Filmar sexo explícito é um exercício de linguagem ou pura sacanagem ?

OF- É um trabalho especializado, e, por isso, muito monótono. Na verdade, a ereção do ator é sempre a ereção do “outro”, não a nossa. E talvez porque o orgasmo alheio é sempre pecado, a gente se sente chateado.

S- E qual o perfil do ator e atriz desses filmes ?

OF- Primeiro, o ator não deve ter nenhuma imaginação erótica. Segundo, deve ter um padrão intelectual bem baixo, sem nenhum bloqueio.

S- Quer dizer que intelectual morreria de fome se fosse ator de sexo explícito ?

OF- A cultura cria barreiras, tais como “mas que coisa mais ridícula eu fazer amor com mais de 15 pessoas trabalhando”. O ator deve ter cérebro de galo e ser um machista, que deseja nada mais do que o seu prazer, manipulando a mulher como um objeto ou como um simples buraco, como uma vez definiu um deles. E ter muita vaidade quando a ereção é solicitada por obrigação contratual.

S- E como você faz a seleção de ator ? Pelo famoso “teste do sofá” ?

OF- Nada disso, cara. Quem não tem competência, não aparece. Em matéria de talento, nessa área, não há mistificação.

S- Ou sobe ou desce...

OF- É isso aí. Para se ter uma idéia do esforço, um ator precisa ter, em cada take, umas quatro ereções, o que, em se tratando da tensão, do ambiente de confusão, que é um set de filmagem, é uma parada para qualquer machão. E ainda ter uns quatro orgasmos por dia de trabalho, o que significa muito...Eu digo que representa mesmo uns seis meses de uso doméstico.

S- E as atrizes ? Colaboram ou fingem ?

OF- Este é um mistério absoluto. Agora, elas são mais inconscientes que os homens. Geralmente não têm a mínima idéia do que estão fazendo. Estão filmando apenas por cachê e para aparecer. São de um narcisismo total e a gente sempre tem atrizes numa proporção de 10 para um homem.

S- Qual o clima na hora do orgasmo ?

OF- Terrível e desagradável. A gente, a equipe, se sente aviltada, violentada...

S- Seria uma intromissão na mais absoluta intimidade de dois seres humanos ?

OF- É isso mesmo que a gente sente. Mas o engraçado é que, na tela, nada disso transparece. Torna-se, ao menos para mim, engraçado. Mas a gente já sabe que estas cenas exercem uma grande atração, uma terrível fascinação sobre o espectador. E acabam por liberar ou despir o sacramento com que o ato sexual foi investido.

S- E isso é bom ?

OF- Claro. Sexo e altar não têm nada em comum. Mas, mesmo assim, não filmarei mais sexo explícito.

S- E como você vê o futuro do cinema brasileiro ? Ainda há “salvadores” ou gurus, ou idéias redentoras ?

OF- Veja o sexo explícito. Chegado ao Brasil importado em filmes de 8 mm e agora chega ao cinema comercial- se bem que ainda dependa de regulamentação do governo- com anos de atraso. E sempre foi assim, a começar pela Vera Cruz, que nos trouxe um esquema industrial que era uma piada. E uma besteira em termos culturais.

S- Quer dizer que a salvação é a Boca do Lixo ?

OF- É. Isso porque a gente aproveita toda a experiência desastrosa dos esquemas já furados. Veja o Cinema Novo. Tinha uma proposta positiva, que era encarar o cinema brasileiro como um cinema pobre e só assim poderia sobreviver. Outra, a negativa, foi politizar os filmes, afastando com isso o público que poderia sobreviver. Outra, a negativa, foi politizar os filmes, afastando com isso o público que poderia conquistar. A Boca do Lixo aprendeu a lição e, hoje, comanda a produção brasileira. Implantou o verdadeiro cinema brasileiro. A indústria nacional de cinema existe nesse quadrilátero de ruas.

S- Ody, qual a sua lista de filmes brasileiros ?


OF- Do cinema mudo, O Exemplo Regenerador, do Medina, um clássico. Depois, Maridinho de Luxo, do Mesquitinha, O Cortiço, do Lulu de Barros, A Outra Face do Homem do Tanko, O Homem do Sputnik do Manga, O Grande Momento do Roberto Santos, Vidas Secas do Nelson Pereira dos Santos, O Porto das Caixas do Sarraceni, A Margem do Candeias. E como obra, os filmes do Khouri.



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