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Clássicos de Prestígio

Por Gabriel Carneiro

Crônica de uma desilusão

Fausto
Direção: F.W. Murnau
Faust - Eine deutsche Volkssage, Alemanha, 1926.

Lembro que, quando freqüentava as aulas do crítico Inácio Araujo sobre História e Linguagem do cinema, um dia meu mundo caiu. Era uma aula sobre o cinema alemão da República de Weimar, mais especificamente sobre o tão conhecido expressionismo alemão. O filme tema era O Gabinete do Dr. Caligari, e todos os grandes cineastas desse período foram abordados: Wiene, Leni, Pabst, Lang, Murnau, entre outros. Meu mundo caiu quando ele comentou que, mesmo que muito englobem Murnau entre os expressionistas, o cineasta era quase um oposto. Fiquei indignado, esperneei, levantei questões... Como Nosferatu e A Última Gargalhada não são expressionistas? Como A Última Gargalhada, filme que considero o máximo, até o momento, do movimento, não é expressionista? Inácio foi explicando os pontos de diferença e explorando sua tese. Saí confuso, meio tonto. Era algo muito difícil de assimilar.

Resolvi pesquisar sobre o assunto. E de fato, por mais que muitos coloquem todos os cineastas do período no mesmo movimento, outros tantos defendem apenas sua contemporaneidade. E aos poucos fui assimilando com novas leituras, e novas visões aos filmes da época. Talvez o que mais tenha me ajudado compreender tenha sido De Caligari a Hitler: Uma História Psicológica do Cinema Alemão, de Siegfried Kracauer. O livro traça um belo paralelo do cinema alemão durante a República de Weimar.

Creio que tudo isso tenha ajudado na minha compreensão do último filme alemão de Friedrich Wilhelm Murnau. Não sei se foram todos essas leituras e debates, mas nunca me pareceu tão fácil perceber, como em Fausto, a estética do Romantismo. De fato é uma oposição. O preceito do Realismo e de suas sub-estéticas, como o expressionismo, é desvirtuar e reagir ao idealismo Romântico. E isso, em Fausto, não vem apenas por ser uma adaptação da obra de Goethe, o considerado precursor do movimento, em 1774, com Os Sofrimentos do Jovem Werther.

Nesse cinema, Murnau explora os cenários externos, o uso de pouca maquiagem; sua câmera passeia sem tanta melancolia. Não há angústia na fotografia. A iluminação não acalenta essa verve expressionista pesarosa, que, em combinação do cenário, perpassa toda a essência desse momento de dificuldade da sociedade alemã.

Em Fausto, vê-se toda incredulidade do homem. Fausto é um homem velho, um sábio, fervoroso crente de Deus – aliás, não poderia ser diferente na Idade Média -, que, quando Mephisto espalha a praga pela cidade, perde a fé, e se entrega ao demônio. Ele assina um pacto, inicialmente de 24 horas, de que poderia ter o que quisesse. Seu objetivo era ajudar o próximo, mas é apedrejado ao ser desmascarado. Ele então se furta à solidão de seu quarto, e acaba pedindo a juventude. Alucinações, e seu novo desejo é uma mulher preste a se tornar princesa. Porém suas 24 horas estão acabando. E num ato de ambição, assina o pacto eterno. Jovem, ele descobre uma bela moça da cidade. Por ela se apaixona, e graças a Mefistófeles, enamoram-se. Só que Mephisto lhe reserva mais no futuro.

A partir da metade do filme, vislumbra-se um romance aparentemente impossível. Mesmo que seja improvável, eles estão juntos, apesar de toda desgraça que cai sobre eles. E por mais negativo que seja o conteúdo – pois o amor é uma danação, já que nunca será eterno -, a atmosfera é leve. Sofre-se com os personagens. Assim como o amor e romance, Fausto é um maldito. Mas os pássaros ainda cantam, e o mundo é um lugar bom. Entre tantos aspectos de desnorteio e de loucura, o diabo é o ser mais controlado. Posto diante de Deus, zomba com lógica. Mesmo que sua vitória não exista.

Quando Fausto é condenado pela juventude, busca redenção. Porém o que lhe causa sofrimentos é a paixão e o romance. Sua redenção só poderia ser perante isso. Dentro dessa lógica de incertezas e de desilusões, Fausto encontra sua expressão ao mostrar o mundo de dentro para fora, e não de fora para dentro – como no expressionismo. E vinga-se de si mesmo.

Tratando dos enigmas da vida, encontra a resposta a que tanto procurava. Mephisto funciona como um catalisador, muito mais importante que a amada Gretchen, na vida de Fausto. Eles se completam, por mais farsante que tudo seja. O que Fausto vive desde o primeiro momento do filme é uma grande desilusão. Desilusão quanto à fé, quanto à juventude, quanto ao amor... E, invariavelmente, leva-o a um mundo de angústias ilógicas. Ele se acha, ao se perder.

Dentro dos silogismos e sofismas do cinema alemão, entendi a desilusão. Fausto não é o melhor Murnau, mas é o que o melhor representa dentro de uma estética.




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