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Dossiê Jodorowsky

A Gravata
Direção: Alejandro Jodorowsky
La Cravate, Fança, 1957.

Por Filipe Chamy

O primeiro filme de Alejandro Jodorowsky é este divertido curta realizado no final da década de 1950. Em sua recente visita a São Paulo, o cineasta disse que não queria fazer cinema quando gravou esta obra; queria registrar pantomima, fazer mímica. O multimídia artista chileno sempre foi entusiasta dessa forma de expressão, e não à toa foi um dos grandes amigos, parceiros e colaboradores de Marcel Marceau, o gênio mudo da expressão física, falecido no segundo semestre de 2007.

A gravata é uma livre adaptação de uma história de Thomas Mann. O próprio Jodorowsky atua no papel principal. Os cenários e os trajes são evidentemente teatrais, e parte do charme da coisa reside justamente nessa estilização. É uma sucessão de gags, de rimas visuais e lógica semi-onírica. Parece haver uma influência indireta de Chaplin no personagem do jovem Alejandro — seus trejeitos femininos, sua delicadeza, boa-vontade, sua candura e docilidade, até um pouco o jeito de andar. Indireta porque provavelmente é herança da relação com Marceau, um enorme admirador de Carlitos. Mas o fato é que é um personagem humano, tocante e poético, pois casa a fantasia com um ideal de comportamento.

Não há sequer um diálogo. A música dita o tom, Edgar Bischoff (o compositor) criou uma trilha bonita e sugestiva, impactante em sua beleza singela. E a melodia acompanha, desde o desenrolar da gravata-título (na primeira cena) até o esperado final feliz (na última cena), o rapaz que descobre a existência de um estranho — e rudimentar — processo de troca de cabeças, feito por uma moça que se interessa por ele logo que o vê. Intuir que o sentimento é recíproco não é a principal meta do espectador, mas compreender, mesmo que sem qualquer raciocínio formal, a metáfora que o diretor quer passar. Pois é o amor que comanda a troca, a mulher desejada despreza o rosto do homem, o que o faz procurar o método obscuro. Jodorowsky contou, ainda em sua passagem por São Paulo, uma antiga lenda sobre troca de cabeças, segundo a qual a cabeça acaba “comandando” o resultado do corpo: uma cabeça de intelectual colocada em corpo atlético o tornaria sedentário; uma cabeça de atleta em um corpo franzino o transformaria em exemplo de robustez etc. Por que isso? Porque corpo e alma não são separáveis, como as pessoas costumam achar. Somos uma unidade, com limites e atributos. Este pequeno filme mostra isso, de maneira leve e engraçada.

Não parece ocasional o mendigo que aparece na última parte assemelhar-se a Marcel Marceau. Não há porque não achar que essa personagem felliniana é homenagem ao artesão do silêncio. O esfarrapado vagabundo é de algum modo o ser que permite, afinal, o restabelecimento do equilíbrio na trama, onde os problemas terminam. Agora não há mais empecilho entre o moço e a garota, principalmente porque ele deixou sua fútil pretendente (que o rejeitou após diversas trocas de cabeça [ou de mentalidade?]), a quem mais interessava os prazeres da gula e da carne, nada espirituais.

Jean Cocteau, outro multimídia célebre, escreveu a introdução para o filme (que ficou perdido por quase cinco décadas, até ser encontrado miraculosamente na Alemanha em 2006), que não faz feio na filmografia de mestre Alejandro. Não é um filme que defina os passos mais importantes na jornada de seu realizador, nem a maioria de suas marcas e predileções, mas é, sim, uma obra interessante, ágil, extremamente colorida, bem conduzida, feita com talento e criatividade, digna de uma menção especial entre os curtas surrealistas mais eficazes em sua proposta. E assim as portas do cinema abriram-se para a entrada dos trabalhos mais radicais desse grande cineasta, Alejandro Jodorowsky.



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