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Dossiê Jodorowsky

Notas muito pessoais sobre o Festival Jodorowsky

Por Daniel Salomão Roque
Foto de Roberto Carlos Barboza

Originalmente, esse texto se chamaria “Jodorowsky e Eu”, mas tão logo adquiri fôlego para escrevê-lo, tomei um banho de autocrítica e cogitei descartar o título por considerá-lo um tanto quanto meloso, cafona, piegas e até mesmo egocêntrico; porém, a decisão definitiva veio apenas ao folhear o catálogo da mostra que o CCBB dedicou ao artista e me deparar com um artigo batizado com o mesmíssimo nome. Aliás, a sincronicidade não parou por aí: dentre outras pérolas, o catálogo trazia também o belo ensaio metafísico “Como Fazer Cinema”, que eu pretendia traduzir e transcrever desde que surgiram os primeiros burburinhos a respeito de um Dossiê Jodorowsky na Zingu! de janeiro.

Coincidência? O jovial Alejandro, do alto de seus quase oitenta anos, diria que não, e admito que por mais inseguro que eu esteja com relação às minhas crenças, não consigo engolir a idéia de que um evento deste porte tenha ocorrido por mera obra do acaso. Digo isso porque, louco como sou pelo multimídia chileno, fiquei embasbacado ao saber que o homem pisaria no Brasil logo após eu ter organizado uma caótica sessão de “A Montanha Sagrada” num cineclube da Rua Augusta e adquirido o box da Anchor Bay com cópias restauradas de três dos seus melhores filmes, aos quais eu só havia assistido em bootlegs de qualidade duvidosa. O desprezo da crítica monga-conservadora dita “especializada”, a ignorância do grande público e o hermetismo inerente ao seu estilo não saíam da minha cabeça, a ponto de me indagar se este maravilhoso evento não estaria condenado ao fracasso total. Aliás, só não me envergonho de assumir aqui, diante de qualquer um que queira ler, ter tido a sensação de que a vinda do faz-tudo ao nosso país era um fantástico e inacreditável presente de Natal elaborado exclusivamente para mim, por saber que este sentimento tomou conta de todos os seus fãs paulistas, cariocas e brasilienses.

Minha fixação por Jodorowsky remonta a alguns anos, quando eu descobria os encantos dos quadrinhos europeus e tive a sorte de encontrar no meu caminho uma edição portuguesa do seu mais célebre trabalho nas HQs, “O Incal”. Na época, foi impossível ler a série até o fim, pois os preços daqueles álbuns de luxo eram incompatíveis com meu poder aquisitivo; contratempos à parte, aquela pequena amostragem da mais pura e genial porra-louquice foi o suficiente para gravar no meu cérebro o nome do roteirista e me convencer de que eu não estava diante de um gibizinho qualquer. O destino tratou de atiçar cada vez mais a minha curiosidade e, pouco tempo depois, comprei num sebo a preço de banana um exemplar da revista Animal que trazia uma reportagem sobre a obra-prima “Santa Sangre”. Lembro nitidamente do meu ingênuo entusiasmo (“Jesus, o escritor do ‘Incal’ já fez um filme de terror, preciso ver isso!”) e de quão impressionado fiquei com a escabrosa sinopse envolvendo uma fanática religiosa que se apodera dos braços do filho depois que o marido alcoólatra amputa os seus. Na mesma semana, visitei dezenas de locadoras em busca “do filme dirigido pelo Jodorowsky” (vejam só, eu achava que ele só tinha feito esse!), e invariavelmente voltava para casa de mãos vazias: acabei desistindo.

A poeira baixou, consegui ter acesso a muitos dos seus comics e, por incrível que pareça, apaguei da cabeça toda a minha histeria em torno do “Santa Sangre”. Entretanto, a partir de uma certa idade comecei a me interessar a sério por cinema e soube, por intermédio de alguma fonte da qual nem me lembro mais, que Jodo não apenas tinha outras películas e toda uma carreira de cineasta em seu currículo, como também gozava de enorme respeito entre adeptos da cinefilia extrema. O comichão ressurgiu das cinzas: mais informado do que antes e relativamente experiente em garimpar raridades, não sofri muito para conseguir encostar minhas patas numa cópia de “El Topo”. Desnecessário dizer que pirei. Em menos de um mês eu já havia assistido a todos os seus trabalhos relevantes, e apesar de ter me maravilhado com todos, um em particular me provocou estragos irreversíveis: “The Holy Mountain”, aka “A Montanha Sagrada”.

Só quem pode compreender o impacto que este filme causou em mim é o indivíduo abençoado que já teve a sorte de travar um primeiro contato com determinada obra de arte, apaixonar-se de cara e perceber logo nos instantes iniciais que a mesma se tornará parte integrante de sua vida. Sim, porque é maravilhoso apreciar pela primeira vez nossos filmes, quadros, discos, livros e gibis preferidos, mas o fato é que essas experiências também são difíceis ao extremo e nos deixam um tanto quanto transtornados. Meu caso não foi exceção: tive meu subconsciente estuprado pelo rico e bizarro imaginário visual do clássico de 1973 e acabei varando meses a fio sem conseguir prestar atenção em mais nada. Por um longo período, “The Holy Mountain” foi o único filme ao qual eu tinha ânimo para assistir; desde então, eu me lembro diariamente de suas cenas e assumo ainda não ter absorvido nem 10% do que elas têm a me oferecer.

Jodorowsky costuma dizer que o verdadeiro artista está condenado a ter pouco público: concordo em partes, já que sou partidário da divulgação em larga escala dos trabalhos que considero geniais, mas não posso deixar de admitir que é minúscula a quantidade de pessoas dispostas a se entregar por completo ao ato da apreciação e extrair disso algo que possa ser utilizado de forma direta na melhoria do seu dia-a-dia. Pela lógica, serei obrigado mais uma vez a parafrasear Jodo, que afirma ser digna apenas a arte que cura. Ao menos neste caso, as duas afirmações parecem se completar: o processo de cura jodorowskyano é árduo e exige do espectador a superação de quase todos os seus limites. Sabidamente, uma ínfima parcela do público tem fôlego e culhões para tal; a esmagadora maioria prefere se amedrontar com as blasfêmias, o ocultismo, a ultraviolência, as perversões sexuais, o simbolismo trincado, os deficientes físicos, enfim, com a esquisitice generalizada, e não se dá o trabalho de ir ao encontro das mensagens positivas e otimistas que o autor esconde por trás de tudo isso.

Quando eu e meu irmão tocávamos o Cineclube Grande Otelo, um efêmero e malfadado projeto que pretendia dar um sopro de ânimo à medíocre vida cultural da minha cidade de Osasco, tive a oportunidade de confirmar na prática a teoria do parágrafo anterior. Um dos filmes de nossa terceira e última sessão dupla foi justamente o cult “El Topo”, e apaixonado que sou por este western surrealista, banquei do meu próprio bolso a impressão de inúmeros cartazes de divulgação do evento e cruzei a cidade a pé somente para afixá-los nos mais diversos pontos; o cineasta Carlos Reichenbach também chegou a nos dar uma força ao divulgar nossa exibição ao público da sua Sessão Comodoro. O resultado final foi uma platéia com apenas trinta pessoas: cerca de quinze ficaram visivelmente horrorizadas e abandonaram a sala antes que a projeção chegasse ao final; dentre os sobreviventes, uns dez saíram resmungando que o filme era uma merda e, por fim, um grupo de quatro ou cinco indivíduos se mostrou tão embasbacado quanto eu me senti na primeira vez em que assisti tamanha jóia.

Acabo de enumerar alguns dos motivos que me levaram a considerar o Festival Jodorowsky algo tão especial. São Paulo foi a última cidade a receber o mestre, e antes de poder conhecê-lo pessoalmente e assistir aos seus filmes em película na telona, ouvi diversos depoimentos entusiasmados de amigos do Rio e de Brasília, que não apenas adoraram as palestras, como também se surpreenderam com o carisma, a simpatia e a humildade do diretor. Para mim nada disso era novidade, entretanto havia um certo temor por parte das pessoas; nem tanto por se tratar de um artista mundialmente consagrado, mas principalmente em razão da infame cobertura realizada pela imprensa brasileira, com absoluto destaque negativo para a desastrosa entrevista publicada pela revista Carta Capital, onde Jodorowsky não fez a menor questão de responder com delicadeza às inacreditavelmente ridículas perguntas formuladas por uma jornalista estúpida e mal preparada. Com o desenrolar do evento, ficou bem claro para todos que seu comportamento rude não havia sido nenhum pouco despropositado.

Minha odisséia pelo CCBB começou no dia 29 de novembro, com “Tusk”, que eu nunca havia assistido. Não foi muito empolgante: eu estava lá tão somente para fechar a filmografia de Jodo e cumprir com minha obrigação de fã. As opiniões que recebi do filme eram desanimadoras por unanimidade e, além de tudo, eu já havia espiado uns trechos de um arquivo Divx que há meses mofava na minha coleção, trechos estes que passaram longe de me apetecer. O “x” da questão é que não sei uma única palavra de francês e no evento a fita seria exibida legendada em português, com sessão única; ou seja, mesmo tratando-se de uma obra ruim, era “agora ou nunca”. A despeito de toda a minha expectativa pelo pior, “Tusk” conseguiu a proeza de me surpreender com um grau de ruindade ainda mais intenso do que eu tinha em mente, fazendo-me matutar por muito tempo sobre os possíveis motivos que levaram um gênio como Alejandro Jodorowsky a se envolver em tamanha roubada. Perto de mim, sentava uma elegante e comportada senhora que demonstrou ter gostado muito do que tinha acabado de ver. Cheguei à conclusão de que fatalmente me encontraria com ela numa outra sessão qualquer, e não pude deixar de ficar curioso pelas suas reações aos trabalhos mais tresloucados do mestre.

Voltar à noite do CCBB é uma verdadeira prova de coragem. Ruas desertas, arquitetura opressora, a presença de indivíduos mais do que suspeitos, uma escuridão de fazer inveja aos buracos negros e o clima de decadência típico do Centro Velho são capazes de amedrontar o mais sangue-frio dos pedestres, mas nada disso importava naquela hora: só conseguia me preocupar com os malabarismos que teria de fazer na minha agenda para conseguir aproveitar ao máximo a programação. E minha próxima investida seria no dia 01 de dezembro, quando tive o magnífico privilégio de assistir “El Topo” e “The Holy Mountain”, ambos em película (as cópias estavam tinindo, de tão cristalinas). “A Montanha Sagrada” foi exibido primeiro, e se ao chegar à Praça da Sé eu bocejava sem cessar, a simples visão da inesquecível cena inicial, onde um guru desnuda duas mulheres e raspa suas cabeças, foi o suficiente para me provocar taquicardia. Quando as luzes se acenderam, percebi que tinha sido a melhor sessão de cinema da minha vida, e com o cessar da histeria passei a me divertir com o comportamento alheio. Na poltrona ao meu lado, um velho pedante e babaca tentava impressionar uma ninfeta dizendo que nos anos 70 havia assistido a esse filme em Nova Iorque e que o mesmo tinha envelhecido mal. A senhorinha do “Tusk” andava apressada em direção à saída, com uma expressão de pânico e desgosto (não tornei a vê-la nos dias seguintes). Exclamações, impropérios e superlativos eram largamente utilizados por espectadores desejosos de extravasar a sensação de estranheza que lhes contagiava.

Num ato de extrema insensatez, o CCBB emendou a segunda atração logo na seqüência, sem intervalos; privado de ir ao banheiro, tomar café, comer algo e dar uma respirada, assisti “El Topo” um tanto quanto cansado, mas nem por isso a experiência foi menos fantástica. Marcelo Carrard, amigo e colega de Zingu!, estava por lá e vimos o filme juntos. Desta vez, a reação do público foi ainda mais bizarra, e tanto eu quanto o Carrard ficamos bastante chocados quando a platéia gargalhou em peso no trecho onde a criança morre baleada em decorrência da surreal roleta-russa promovida no interior de uma igreja. O show de horrores prosseguiu no debate que rolou após a sessão, no qual se falou sobre tudo, menos da obra de Jodorowsky. Por mais que Carlão Reichenbach e Marcus Mello, os mediadores da conversa, se esforçassem para direcionar o papo de maneira coerente, o povo estava era com vontade de armar um campeonatinho de citações eruditas. O velho intelectualóide da sessão de “The Holy Mountain” brindou a todos nós com brilhantes divagações filosóficas e conexões intertextuais das mais pertinentes, sendo acompanhado por um punhado de criaturas igualmente geniais. No entanto, o encarregado de elevar o nonsense às últimas conseqüências foi um senhor octogenário de voz absurdamente irritante que se dizia ateu e cuja dúvida consistia em saber se deveria arriscar uma consulta de tarot com o mestre, já que alguns anos antes havia ganhado na loteria graças a um sonho no qual vislumbrara os números do bilhete premiado. Como se não fosse o suficiente, ele tirou o tal do bilhete, todo surrado, de dentro de uma mochila esfarrapada, fez questão de mostrar para todos os presentes e jurou ter sido informado da Mostra através de um outro sonho sobrenatural. Posteriormente, na conferência de quadrinhos, este ser abissal voltaria a tocar no assunto, realizando a mesmíssima performance diante de um Jodorowsky que provavelmente só não estava atônito por já ter presenciado de tudo nessa vida.

02 de dezembro, domingo, foi um tanto quanto anódino, mas levando em consideração a overdose de imagens do sábado e as fortíssimas emoções que acometeriam a todos no decorrer da próxima semana, acabou servindo como uma bela pausa para descanso. O prato do dia era o filme “The Rainbow Thief”, que ao lado de “Tusk” constitui um dos poucos momentos de mediocridade na trajetória do autor. Contudo, ao contrário do drama sobre elefantinhos indianos, não chega a ser exatamente ruim e até serve como passatempo caso você esteja de bom humor. Na fila acabei conhecendo um casal muito simpático – ele, um senhor com cerca de 70 anos; ela, uma belíssima cinqüentona – que estavam lá por uma casualidade. Tal como a dona que encontrei 29 de novembro, os dois não conheciam a obra de Jodorowsky, aprovaram entusiasticamente o que viram e acabaram me pedindo recomendações. Com uma tremenda sinceridade, respondi que pelos motivos X, Y e Z os outros eram completamente distintos da fita estrelada por Omar Shariff, Christopher Lee e Peter O’Toole, e muito superiores a esta. Preferiram não arriscar.

Eis que chega o grande momento: terça-feira, 04 de dezembro de 2007. Jodorowsky, a lenda, compareceu em carne e osso no CCBB de São Paulo para ministrar o primeiro de três bate-papos com seus admiradores. Desta vez, o tema principal foi quadrinhos; quinta e sábado os holofotes estariam voltados para cinema e tarot, respectivamente. Eu e o Filipe Chamy chegamos bem cedo para garantir nosso lugar na primeira fila; a expectativa era enorme e quase enfartamos quando, olhando de cima do segundo andar, vimos o homem zanzando pelo térreo enquanto observava a medonha exposição da Yoko Ono que ocorria no mesmo local. Sem saber se depois teríamos a chance de cumprimentá-lo, tirar foto, pegar autógrafos e etc, abordamos o curador da mostra e perguntamos se isso seria possível: o sujeito acabou rindo da gente e não deixou as coisas muito claras, mas nos apresentou à atual esposa de Jodo, uma japonesa cerca de 40 anos mais nova. Muitíssimo bem humorado, o chileno utilizou suas HQs como ponto de partida dos mais variados assuntos e, ao contrário de muitos principiantes desprovidos de talento metidos a arrogantes, agiu sem estrelismo algum, foi muito gentil com todos que dele se aproximaram e, para atender as pessoas que permaneceram no auditório ao término da palestra, chegou a esticar sua presença para quase vinte minutos além do programado. Entre essas pessoas, estavam o expert Álvaro de Moya, que presenteou o roteirista e cineasta com alguns livros de sua autoria, e Gurcius Gewdner, videomaker de Santa Catarina e frontman da banda Os Legais. Gurcius protagonizou a situação mais insólita da noite: uma antiga namorada do cidadão ficou impressionadíssima com “Santa Sangre” e, numa tentativa de exorcizar as assustadoras imagens que vira, confeccionou para ele uma cueca estampada com um elefante jorrando sangue pela tromba, em referência à mais famosa cena da obra. Não satisfeito em narrar toda essa epopéia para Jodorowsky, avisou-lhe que estava vestindo a peça e logo em seguida abaixou as calças, causando verdadeiro terror nos presentes e um sorriso no rosto de Jodo. Foi em meio a este caos que venci a timidez, me aproximei do diretor e pedi que autografasse um punhado de DVDs que trazia na bolsa. Quando ele passava a caneta pela capa de “A Montanha Sagrada”, eu lhe disse: “É meu filme favorito”. Resposta: “Jura? Também é o do Marilyn Manson!”. O Filipe quase entrou em pânico ao descobrir que sua máquina havia deletado todos os nossos registros, e de última hora fomos socorridos por um cara muito gente fina, chamado Roberto, que bateu um monte de fotografias nas quais aparecemos ao lado de Jodo, incluindo esta que ilustra a matéria.

No dia seguinte, a Fnac da Avenida Paulista promoveu uma sessão de autógrafos com o xamã. Quase todos os sites e jornais anunciavam que isso ocorreria às 20:30, mas a empresa programou o evento para as 19:00 e acabou deixando muita gente confusa. Com medo de algo dar errado, inventei uma mentira no escritório em que trabalho e pude aterrizar na megastore com bastante antecedência. Pedi algumas informações no setor de atendimento ao cliente e a atendente se limitou a dizer que “o autor atrasaria um pouquinho”. Eu poderia me estressar, mas a simples constatação de que tudo daria certo me deixou tremendamente aliviado. Fiquei circulando pela loja e logo encontrei o Carrard, que estava acompanhado do Edú Aguillar e de Carlos Thomaz Albornoz, programador da célebre Sessão Raros de Porto Alegre; não tardamos a achar o Filipe e logo subimos para a cafeteria, onde seriam distribuídos os autógrafos. Éramos os primeiros da longa fila que se formou, e assim que sentei ao lado de Jodorowsky, um cameraman da TV Cultura me filmou enquanto eu recebia assinaturas e dedicatórias nos gibis que havia levado para a ocasião. Tratava-se de uma matéria feita para o programa Metrópolis, que iria ao ar no dia seguinte e que, além da minha presença, contava também com a participação de Thomaz, que foi entrevistado pela emissora. Quando todos os conhecidos foram embora, senti que ainda não tinha curtido o suficiente e resolvi permanecer no local. Uma intuição me disse que eu deveria retornar à cafeteria, e foi o que fiz. Chegando lá, encontrei o recinto absolutamente vazio: os funcionários da Fnac circulavam de um lado para o outro e alguns membros da editora Devir conversavam entre si, mas Jodo estava 100% disponível. Então, por uma coincidência cósmica, esbarro em ninguém menos que Rodolfo Zalla, uma das figuras mais importantes da história dos quadrinhos nacionais. Atordoado, tiro da bolsa e lhe mostro um exemplar da revista Mestres do Terror, editada por ele nos anos 80 e que eu havia levado para ler no horário de almoço do serviço: surpreso e visivelmente feliz, o desenhista sacou uma caneta do bolso e autografou o gibi. Nascido na Argentina e fluente em espanhol, Zalla cometeu a enorme gentileza de ser o intérprete da pequena conversação que tive com o cineasta, onde falei da supracitada exibição de “El Topo” que organizei na minha cidade natal e do quanto aquilo tudo significava para mim. Finalmente, entreguei ao psicomago alguns recortes de jornalecos que cobriram a tal sessão, lhe agradeci por tudo e me despedi. Zalla me perguntou se eu tinha pressa e, com minha resposta negativa, convidou-me a beber algo. Sentamos numa das mesinhas da cafeteria e passamos o resto da noite tomando vinho e conversando sobre quadrinhos: ele me disse estar lá por considerar Jodorowsky um dos melhores roteiristas de todos os tempos e confessou não ter assistido a nenhum de seus filmes; diante de tanta humildade e educação, fiz questão de pegar seu endereço para lhe enviar cópias dos DVDs. Quando nos demos conta, já era tarde pra cacete e a loja estava fechando: ao ser perguntado se não gostaria de encerrar o papo num boteco qualquer, respondi que adoraria, mas não poderia por precisar pegar o metrô e trabalhar no dia seguinte. Aproveitei a ocasião e lhe falei a respeito da Zingu!: indaguei se gostaria de ser entrevistado em alguma das próximas edições e o argentino adorou a idéia. Aguardemos!

Ao chegar em casa, não pude desperdiçar sequer um minuto das poucas horas de sono que me restavam, pois o dia seguinte, 06 de dezembro, seria bem movimentado: o gênio mais uma vez agraciaria o CCBB com sua presença, desta vez conversando com o público a respeito de cinema. Foi o melhor momento de todo o festival, e talvez por isso eu tivesse que provar aos deuses ser merecedor da dádiva em questão: dormi mal, tomei na cabeça a chuva mais forte de 2007, peguei as conduções mais lotadas de que já tive notícia e, para coroar a má sorte, fui assaltado ao sair da estação de metrô. E como valeu a pena passar por tudo isso! Ensopado, com frio e sem dinheiro para nada, vi Jodorowsky falar dos bastidores de cada um dos seus filmes, das suas predileções cinematográficas, dos seus ideais estéticos e da sua filosofia de vida. Zombou dos acadêmicos e disse ser a primeira vez em que palestrava sobre o assunto: “Deus me livre de ser um professor de cinema!”. A platéia contava com algumas criaturas sem muito senso de ridículo que proporcionaram ótimos momentos de humor involuntário: era o caso do senhor-bilhete-de-loteria, que dessa vez resolveu perguntar ao artista se Cantinflas era “maricón”, e de uma mulher que causou o maior barraco em protesto à violência contra animais, muito recorrente na sua filmografia. Tomei coragem e, exatamente na hora em que iria lhe fazer uma pergunta, meu gravador caiu no chão, provocando um grande barulho. Pedi desculpas e um minuto para colocar as pilhas de volta, no que Jodo me aconselhou: “Não há necessidade de gravar tudo, confie na sua memória!” Alertei que a mesma era péssima e fui avisado de que ela iria melhorar (a julgar pelas minhas lembranças do evento, melhorou mesmo). Carlos Reichenbach, que provavelmente é o maior divulgador da sua obra no Brasil, foi apresentado a ele e depois nos contou que os organizadores pretendiam levar José Mojica Marins, o eterno Zé do Caixão, para fazer uma consulta de tarot na conferência sobre as cartas. Sensacional foi pouco!

No sábado, 08 de dezembro, infelizmente não consegui chegar a tempo de pegar a senha que me permitiria presenciar (e quem sabe, participar) da terapia coletiva exercida pelo psicomago: de longe a mais concorrida das três palestras, a última teve seus ingressos esgotados em menos de duas horas. Este pequeno incidente me deixou profundamente chateado, mas logo tal dissabor foi encoberto pelas fantásticas e inesquecíveis lembranças que o festival cravou na memória deste que vos escreve. Para concluir o texto, não posso deixar de cutucar Marcus Mello, um dos responsáveis pela vinda do homem ao Brasil: o indivíduo saiu alardeando aos quatro ventos de que este era o evento cinematográfico do ano. Tsc, tsc, ledo engano. O rapaz provavelmente é modesto demais e ficou com vergonha de falar a verdade: mais do que o evento cinematográfico do ano, este foi o evento CULTURAL da DÉCADA. E tenho dito!

OBS: Mais tarde, fiquei sabendo que Mojica não compareceu; em compensação, a atriz Maria Alice Vergueiro, mais conhecida do grande público pela sua interpretação da velha maconheira no curta “Tapa na Pantera”, foi a primeira sortuda a ter sua intimidade revelada no palco.



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