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Dossiê Jodorowsky

A Montanha Sagrada
Direção: Alejandro Jodorowsky
The Holy Mountain, México/EUA, 1973.

Por Daniel Salomão Roque

"A Montanha Sagrada" não é um filme convencional. A princípio, isto pode soar demasiado óbvio, tornando inevitável o surgimento de sorrisos sarcásticos na cara dos leitores que já tiveram o privilégio de assistir a esta obra-prima; no entanto, nunca é demais avisar. Lançado em 1973 na mostra não-competitiva do Festival de Cannes, dois anos após "El Topo" ter se tornado uma febre no circuito underground americano, este clássico absoluto do cinema extremo é estranho e indigesto até mesmo para os padrões de Jodorowsky. Imagens delirantes, fragmentos de puro absurdo, flagrantes que desafiam nossa concepção da realidade e a falta de qualquer concessão fazem desta fita uma das experiências mais perturbadoras de toda a sétima arte.

Para nos transportar ao universo da história, Jodorowsky optou por uma estrutura bastante rígida, constituída por um prólogo e três partes. No prólogo, somos cúmplices do ritual iniciático onde uma espécie de guru, trajado de negro da cabeça aos pés, com o rosto encoberto por uma imensa cartola e acompanhado de duas mulheres, desnuda ambas, retira seus ornamentos (maquiagem, penduricalhos, etc) e raspa suas cabeças, terminando por posicioná-las cara a cara, unidas pela testa. Arrebatadora, esta seqüência aparentemente desconexa deságua na primeira parte, onde testemunhamos o despertar de um homem primitivo, fisicamente idêntico a Jesus Cristo que, ao lado de um anão sem braços nem pernas, vaga pelo centro histórico do México numa jornada pontuada pelas mais diversas heresias e bizarrices. O destino deste homem se cruza com o de um misterioso alquimista (interpretado pelo próprio Jodorowsky), que após submetê-lo a algumas provações espirituais, o coloca em frente aos seres mais poderosos do universo. Aqui tem início a segunda parte do enredo, onde os seres em questão, um a um, se apresentam ao espectador: dizem seu nome, de qual planeta do Sistema Solar vieram, seu ramo de atividade financeira, mostram sua vida cotidiana e discursam sobre seus ideais. Findas as apresentações, o alquimista revela o objetivo por trás daquele encontro: o grupo ali reunido partiria numa viagem mística em direção ao cume da Montanha Sagrada, moradia de nove entidades imortais que secretamente governam o cosmos; chegando lá, destituiriam estes governantes, se converteriam em deuses e tomariam para si o controle de tudo o que existe, num percurso tortuoso que marca a conclusão da trama.

O que nas mãos de alguém menos habilidoso e excessivamente apegado a regras desembocaria num esquematismo digno de bocejos, nas mãos de Jodo se transforma em instrumento de subversão. Longe de ser uma ferramenta castradora, esta divisão apenas realça a força anárquica do filme, já que ao escrevê-lo o chileno não teve o menor pudor de virar do avesso todas as normas vigentes nos manuais de construção dramática. O prólogo não é nenhum pouco auto-explicativo, os primeiros quarenta minutos praticamente não possuem diálogos, a apresentação dos personagens dura quase metade da obra e o único fiapo de conflito surge apenas nos momentos finais (ainda assim, de maneira completamente surreal). Por fim, a narrativa que embala esse verdadeiro pandemônio é ultra-fragmentada, convertendo em semi-curta-metragens cada uma de suas esquisitíssimas cenas. E que cenas!

Tido como o mais chocante capítulo da filmografia jodorowskyana, "A Montanha Sagrada" é também o mais engraçado. Suas metáforas transbordam deboche: além do supracitado grupo de megalomaníacos que literalmente desejam destronar as divindades para governar o universo a seu bel-prazer, temos um cego-surdo-mudo que só toma decisões depois de esfregar os dedos no clitóris da falecida esposa (lubrificado equivale a "sim", seco equivale a "não"); aparatos tecnológicos que permitem aos mortos interagirem nos seus próprios funerais; uma máquina de fazer sexo cuja vagina mecânica dá à luz um bebê-eletrônico; condomínios de luxo onde as casas nada mais são que claustrofóbicos caixões (chamados de "abrigos"), e por aí vai. Muito de seu choque é oriundo desse obscuro senso de humor: a toda hora e sem nenhum resquício de piedade, a obra nos cospe algumas verdades bastante amargas, de forma tão absurda e escandalosa que a nós, só nos resta rir; se não rimos da constrangedora percepção de que temos muito em comum com pessoas tão desprezíveis, na melhor das hipóteses a repulsa causada pela barbárie desenfreada irá tratar de meter um riso nervoso em nossos lábios.

A ganância, futilidade e falta de escrúpulos do ser humano são alguns dos principais alvos de Jodorowsky, mas não os únicos: tão ou mais visado que os sentimentos mencionados, é o caráter antiquado e alienante das religiões organizadas. Muito embora haja várias cenas que não nomeiam os bois, ou que se direcionam a mais de uma instituição, o catolicismo é disparado o grande foco de pedradas. Sendo cinema na sua mais pura essência, o filme evidentemente não aborda estes assuntos através de discursos intermináveis, mas com fotogramas que primam pela singularidade, iconoclastia e beleza pictórica. Por exemplo, numa cena que emula a ambientação dos épicos italianos da década de 60, o homem primitivo (sempre acompanhado do anãozinho aleijado) é obrigado a percorrer uma Via Crucis contemporânea, interrompida por um convite à bebedeira feito por soldados romanos. Inconsciente de tanto ingerir álcool, ele é colocado nos braços de um gordão bigodudo vestido como Virgem Maria, numa citação direta à Pietà, a famosa escultura em que Michelangelo retrata a mãe de Jesus segurando o corpo do filho. Desmaiado, é levado a um galpão e tem o corpo moldado com banha de porco, gerando a matriz de milhares e milhares de imagens religiosas, meras quinquilharias comercializáveis; posteriormente, já acordado, encontra-se com seus apóstolos: doze prostitutas, entre elas uma criança com cerca de oito anos de idade, que voltam da igreja onde fazem ponto. Para expressar-se com tamanho grau de eficiência fazendo uso de tão poucos diálogos, Jodorowsky se inspira em dezenas de referências artísticas, e o resultado é um mosaico de peças díspares e fascinantes. Iconografia esotérica, arte sacra, atmosfera surrealista, arquitetura gótica, linguagem de HQ, expressionismo, kitsch, pop art, pintura abstrata, psicodelia, Fellini, Buñuel, civilizações pré-colombianas, mitologia grega e cultura popular mexicana jamais formaram um conjunto tão coeso quanto o que vemos aqui.

Não raras vezes, o anti-clericalismo confunde as pessoas, fazendo um bocado de gente pensar que o cunho do filme é ateísta. Ledo engano: misticismo e espiritualidade pululam por todos os poros da película, sendo reverenciados de maneira muito particular. Neste sentido, o final da fita é o caso mais ilustrativo tanto das crenças de seu autor quanto do equívoco de parte do público. Quando o grupo chega ao cume, descobre que tudo não passava de uma farsa elaborada pelo alquimista, que ri da situação e revela a grande verdade oculta: todos eles são míseros personagens de um filme. A câmera se afasta, vemos a equipe técnica carregando equipamentos no set de gravação e ouvimos um conselho: "Digam adeus à Montanha Sagrada, a vida real nos aguarda". Se por um lado isso parece indicar que a busca pelo sagrado é inútil pelo simples fato de que essas coisas não existem, a lembrança de que Jodorowsky é um dos tarólogos mais requisitados do mundo e uma assumidade em esoterismo nos sugere uma outra conclusão: a busca pelo sagrado é sim inútil; não pela sua inexistência, mas pela sua onipresença - a iluminação não é atingida através do isolamento e do auto-sacrifício em prol de uma meta inatingível; ela ocorre na vida cotidiana, com a percepção de que o divino e o sublime se manifestam em tudo o que possamos imaginar. Interpretações a parte, ao escancarar o caráter ilusório da odisséia de seus personagens, Jodorowsky confirma sua mais conhecida frase: "Eu exijo do cinema o que os americanos exigem das drogas psicodélicas".



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