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Dossiê Jodorowsky

ENTREVISTA EXCLUSIVA COM ALEJANDRO JODOROWSKY

Por Daniel Salomão Roque, Filipe Chamy e Marcelo Carrard
Tradução: Daniel Salomão Roque e Filipe Chamy
Revisão e texto introdutório: Filipe Chamy

O que parecia impossível aconteceu: o grande mestre do cinema Alejandro Jodorowsky veio ao Brasil em 2007. A Zingu! naturalmente não poderia deixar de acompanhar esse acontecimento, e três de seus colaboradores, fãs devotos da obra do artista chileno, tiveram a grata oportunidade de conhecê-lo pessoalmente e ouvir palestras proferidas pelo diretor em São Paulo, no Centro Cultural Banco do Brasil. Como um evento singular como esse merece ação à altura, pedimos ao próprio Jodorowsky que nos fornecesse seu e-mail para uma entrevista. Contatado, o genial cineasta foi muito educado e respondeu prontamente às nossas perguntas. O resultado está nas vinte questões seguintes.

Z- Você acredita que o cinema é uma arte que está morrendo?

J- Nesta era comercial, todas as artes estão morrendo. O cinema se transformou num produto industrial. Vive pelos milhões de dólares que produz. As serpentes cascavéis também estão vivas, são belas, seus ruídos são muito envolventes, porém são venenosas. O cinema industrial envenena a alma.

Z- Você acha que o cinema ideal é baseado em imagens ou mais voltado à literatura? Talvez um misto desses dois tipos? E o teatro, nunca se deve filmar uma peça?

J- O cinema é cinema, não é teatro, não é literatura. Na tela só se deve falar quando o que se diz não pode ser traduzido em imagens.

Z- Você sempre diz que cinema que não cura não é um bom cinema, certo? Mas você acha que a cura diz respeito ao que o público tira de um filme ou é o diretor que supostamente deveria trazer esse tipo de terapia para os espectadores?

J- Ambas as coisas. Um filme ruim acaba se transformando em algo de qualidade, com um espectador criativo. Um bom filme murcha com um mau espectador. Entretanto, um cinema terapêutico, até agora nunca realizado, é outra coisa. Não é construído para contar uma história, a não ser que se apresente como uma experiência onde o que importa é a história do espectador.

Z- Você já quis fazer um documentário?

J- Sim. Se meus dois projetos, "Bouncer" e "King shot", não puderem se realizar em 2008, com absoluta certeza filmarei meu documentário "Psicomagia".

Z- O senhor poderia nos fornecer detalhes de "Psicomagia", seu próximo projeto cinematográfico? Ele terá muitas semelhanças com o livro homônimo?

J- Sim. Nenhum ator. Apenas casos reais filmados com as pessoas a quem ajudei a sair de seus problemas.

Z- Qual é, na sua opinião, a coisa mais importante que um diretor de cinema deve ter para seguir em seu trabalho?

J- Em cada fotograma deve despejar sua vida inteira.

Z- Nós acreditamos que conhecemos suas influências surrealistas, como Fellini e Buñuel. Mas sabemos muito pouco acerca de outros tipos de filmes de que você gosta. E sobre diretores que não necessariamente te influenciaram [e que você admira].

J- Tod Browning... Fritz Lang... Takashi Miike... Sergio Sollima... Frank Capra... Masahiro Shinoda... Joaquim Pedro de Andrade... Glauber Rocha... Guillermo del Toro... Todos os filmes de Zatoichi... Etc....Etc... Etc...

Z- Você mudou de opinião sobre alguma coisa em suas principais obras até agora?

J- Não. Minhas obras nascem diretamente do meu inconsciente. Possuem as características dos sonhos. Um sonho não muda.

Z- O senhor chegou a afirmar que ao fazer "The holy mountain", tinha como objetivo inicial a criação de um equivalente cinematográfico aos grandes livros sagrados; no entanto, o filme é bastante crítico no que se refere às religiões organizadas e seus dogmas. Como encara essa questão?

J- Simplesmente é um filme "bastante crítico no que se refere às religiões organizadas e seus dogmas". Penso que as religiões, atualmente, estão convertidas num perigo social. Misturadas à política, são pretexto para guerras e matanças. Pode-se ser místico sem enveredar por superstições intolerantes.

Z- Em 1990, "Santa Sangre" foi completamente ignorado quando exibido na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Em 2007, três das maiores capitais brasileiras fizeram uma retrospectiva de sua carreira, exibiram todos os seus filmes e lhe receberam pessoalmente, num evento cujo sucesso de público surpreendeu a todos por aqui. Na sua opinião, a que se deve isso tudo? Acha que as pessoas mudaram muito nesses dezessete anos?

J- O que mudou foi minha briga com o produtor Allen Klein, que durante 30 anos seqüestrou meus filmes, impedindo que o público os visse. Ao solucionar o problema, meus filmes passaram a ser distribuídos. Foram considerados "clássicos" pelo último Festival de Cannes. Antes tarde do que nunca.

Z- Como você conheceu Claudio Argento, o produtor de “Santa Sangre”?

J- Ele veio me buscar na minha casa, em Paris. Me propôs filmar um serial killer, assassino de belas fêmeas... aceitei fazê-lo, mas ao meu modo.

Z- Existem algumas conexões curiosas entre "Santa Sangre" e a figura de Santo, a lenda da luta-livre. Seu filho Axel, ao ser entrevistado por uma revista brasileira, afirmou possuir um grau de parentesco com ele; René Cardona Jr, que dirigiu algumas das fitas protagonizadas pelo lutador mexicano, foi produtor executivo do seu filme; por último, temos a cena na qual você mostra uma espécie de sósia feminina do Santo. Qual a sua relação com ele? Chegou a conhecê-lo pessoalmente? É um fã de seu trabalho?

J- Quando se vive muito tempo no México, como eu o fiz, não se pode deixar de admirar a arte popular. E uma das maiores manifestações dessa arte popular são os trajes e as máscaras dos lutadores. O Santo viveu mascarado por toda a vida e foi enterrado com sua máscara. Representa o homem que abandonou o próprio ego para converter-se num arquétipo essencial.

Z- O senhor costuma dizer que não gosta de filmar com atores famosos, por serem egocêntricos e ofuscarem a verdadeira essência dos personagens. Tendo trabalhado com alguns dos melhores desenhistas do mundo, nunca lhe ocorreu se aventurar pelo cinema de animação? Aliás, o que acha dos desenhos animados?

J- É uma grande forma de arte. Desgraçadamente estão absorvidos pelos interesses comerciais. Walt Disney é um demônio imbecil.

Z- Aqui no Brasil, nenhum de seus filmes foi distribuído comercialmente, e até pouco tempo atrás o senhor era conhecido apenas como roteirista de quadrinhos. Essa situação só mudou com o advento da Internet, e hoje nove entre dez fãs brasileiros da sua obra cinematográfica só conseguiram travar contato com ela através de downloads gratuitos. Levando isso tudo em consideração, o que acha da Web como forma alternativa de distribuição de filmes alheios à grande indústria?

J- Esse é o caminho pelo qual um verdadeiro artista pode se libertar da indústria. Meu documentário "Psicomagia" será anunciado como "um filme feito para perder dinheiro" e será exibido gratuitamente na web.

Z- Você fala muitas línguas, mas acredita que a maior linguagem é a corporal, aquela que vem do corpo?

J- Não. Existem quatro linguagens básicas: a oral, a emocional, a sexual e a corporal. Todas as quatro são importantes. Quando uma delas invade a área das outras, então há o desequilíbrio.

Z- Quais são seus pintores favoritos na História da Arte? Por quê?

J- Por amar os monstros, admiro a Géronimo Bosch, Goya e Alfred Kubin.

Z- Você é um compositor também, pode por favor falar um pouco sobre música?

J- Para mim, a música dos filmes norte-americanos é desagradável: é música que acompanha as imagens, ao fundo da consciência auditiva do espectador. Eu uso a música como uma personagem importante, lhe concedo o primeiro plano.

Z- Você não vê muitas diferenças nos meios de expressão? Se tem uma idéia, dá na mesma colocá-la em um gibi, em um filme ou em um livro?

J- Não "tenho uma idéia". As coisas me chegam atreladas à expressão que lhes devo dar. O que se conta numa história em quadrinhos é impossível de ser contado bem num filme ou num romance. Cada arte tem à sua disposição um conjunto de idéias que apenas são possíveis de se expressar em seu domínio particular.

Z- Qual sua opinião sobre as adaptações cinematográficas dos quadrinhos de Frank Miller, “300” e “Sin City”?

J- Dois filmes com uma técnica genial e um conteúdo estúpido. Todos os talentos norte-americanos acabam se transformando em putas.

Z- Todos estão ansiosos pelo desfecho de "Bórgia", saga na qual o senhor está trabalhando com Milo Manara. Há alguma previsão de lançamento para o próximo volume? O que podemos esperar?

J- Terminei de escrever o terceiro volume em outubro de 2007. Manara ainda está desenhando. Vai demorar um pouco porque é um livro duplo, de quase cem páginas. Ejaculei espiritualmente várias vezes enquanto eu o estive escrevendo.

FELIZ ANO NOVO:
Alejandro Jodorowsky.



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