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Dossiê Jodorowsky

Fando e Lis
Direção: Alejandro Jodorowsky
Fando y Lis, México, 1968.

Por Daniel Salomão Roque

Em 1957, Alejandro Jodorowsky já havia feito "A Gravata", curta-metragem que apesar de evidenciar um talento raro e promissor, se direcionava mais ao exercício da pantomima e deixava a linguagem cinematográfica em segundo plano. Conduzido de forma completamente distinta dos trabalhos que mais tarde consagrariam o diretor, este filme ficou cinqüenta anos desaparecido e, na época de sua conclusão, não foi visto por quase ninguém. Portanto, o efetivo início da carreira de Jodo enquanto cineasta ocorreria apenas onze anos mais tarde, com "Fando e Lis" (1968, baseado na peça de Fernando Arrabal*), o primeiro dos seis longas que (por enquanto) compõem sua filmografia.

A estréia de um grande cineasta via de regra já carrega todos os elementos característicos de sua personalidade, e o caso do psicomago não foi diferente. Desconsiderando a natural evolução que acompanha a trajetória do artista, podemos dizer que todo o Jodorowsky está contido em "Fando e Lis". Aqui já podemos vislumbrar a jornada espiritual de personagens estranhos que vagam por paisagens marcadas pela desolação, localizadas numa realidade paralela à nossa; a atmosfera hipnótica de influência surrealista; a obsessão pelos símbolos; a mistura de esoterismo com crítica religiosa; a ênfase na beleza do grotesco; etc. De certo modo, muito da essência de Jodo está resumida de forma oculta nos créditos iniciais deste filme, quando surge na tela uma dedicatória para Samuel Rosenberg, um mongolóide de rosto disforme pelo qual o chileno se encantou, a ponto de contratá-lo como chofer e assistente de palco. Quando Rosenberg se suicidou, seu pai, que era um joalheiro milionário, presenteou o multimídia com 100 mil dólares em retribuição a tudo o que tinha feito pelo falecido. Há muito tempo querendo filmar, o chileno utilizou esta verba para financiar seu longa.

A premissa de "Fando e Lis" é uma das mais desgastadas da história do cinema: narrar o triste cotidiano de um casal em crise. Este aparente clichê é responsável por boa parte de seu charme, já que a fita difere radicalmente de tudo o que possa ter sido criado a partir do tema. Lis é paralítica, Fando a carrega nas costas; os dois vivem numa espécie de futuro pós-apocalíptico e sonham em um dia chegar à Tar, moradia da plenitude espiritual e única cidade sobrevivente da Grande Catástrofe. Enquanto caminham rumo a este lugar que talvez nem exista, marido e mulher consolam um ao outro, se afagam e manifestam afeto mútuo; porém, também entram em conflito, se agridem, descarregam no parceiro todas as suas frustrações: eles se odeiam demais para permanecerem juntos, mas se amam muito para viverem separados. E, claro, como estamos falando de um filme dirigido por Alejandro Jodorowsky, o supracitado paradoxo amoroso, perturbador por si só, tem seu poder de fogo redobrado ao tornar-se pretexto para centenas de metáforas, analogias e obstáculos inacreditavelmente bizarros que vão surgindo pelo caminho dos protagonistas.

Junto com "Santa Sangre", "Fando e Lis" é a mais psicanalítica obra de Jodorowsky no cinema. Formado em psicologia e grande estudioso de Freud, Jung, Lacan e outros teóricos do subconsciente, o cineasta impregnou a fita de situações relacionadas à mais obscura região do cérebro humano, representado pelos dois supracitados personagens. Fando é mimado, infantil, carrega a todo momento um tamborzinho de brinquedo, enquanto Lis é passiva, submissa, apática, chorosa, com trejeitos e limitações que remetem à personagem interpretada por Giulietta Masina no filme "A Estrada da Vida", de Fellini. Os atos impensados que cometem, a inusitada abordagem que eles têm do mundo e seus hábitos desengonçados são quase sempre frutos de traumas, frustrações e episódios infelizes da infância. Lis foi molestada quando criança, tragédia que a câmera nos mostra de forma extremamente simbólica. Por intermédio de um flashback, vemos uma garotinha sentada na platéia de um teatro, assistindo tranquilamente a uma peça; sem aviso prévio, os atores lhe convidam a subir no palco e a levam para o camarim; seduzida pelo apelo de um deles ("Venha conhecer o nosso mundo!"), não muito tempo depois ela estaria imersa em jogos e brincadeiras cujas regras desconhece. O passado de Fando nos é revelado através do mesmo artifício, mas agora as metáforas são bem menos sutis: atordoado por um complexo de Édipo, ele é bombardeado pela sinistra lembrança do velório de sua mãe, uma figura narcisista tida pelos "fãs" como "a melhor defunta" e que implora aos presentes para que sintam seu corpo esfriar "estupendamente"; a cena culmina com filho e progenitora se beijando na boca. Estes e outros eventos não influenciam apenas o modo como os protagonistas se enxergam, mas também o jeito como encaram o universo e a relação amorosa que mantêm: em certa altura da história, testemunhamos o casal farreando num quarto qualquer; ao som de jazz, eles quebram vários objetos, inundam a parede com tinta e escrevem seus nomes no corpo do parceiro, como se enxergassem suas próprias personalidades na figura do outro. Fando abandona Lis no meio de criaturas macabras surgidas da lama, com aspecto semelhante aos zumbis podrões dos filmes B; de olhos vendados, beija outro homem pensando que a boca era da bela mulher que tinha visto minutos antes; num misto de vergonha e prazer, dança com uma multidão de travestis que surgem de repente. Lis é ridicularizada por ser paralítica; tem o sangue extraído, servido em tacinhas e bebido por um médico hematófago acompanhado de um cego; aparenta atingir o orgasmo quando, nua, é posicionada em frente a um ancião magrelo e desdentado enquanto tem uma infinidade de crânios derrubados sobre o corpo. Na busca desesperada pelo paraíso terrestre, os dois não percebem que os terríveis obstáculos que encontram são meras projeções oriundas de seus recalques, instintos animalescos, fraquezas e medos não superados.

Jodorowsky sempre afirmou ter dirigido “Fando e Lis” de maneira instintiva, sem saber absolutamente nada de cinema. Visivelmente artesanal, a confecção deste filme não foi em nada prejudicada pelo primitivismo do autor: numa parábola marcada pelo sentimento de inocência corrompida, a rusticidade de seus métodos e a improvisação generalizada caíram como uma luva. Jodo, em sua única película fotografada em preto e branco, se aproveitou da ausência de cores para exprimir com máxima intensidade a degradação do ambiente a ser retratado. Completam o quadro: câmera na mão, trilha sonora irônica e transições bruscas que mesclam as cenas fazendo uso de cortes ultra-rápidos, elementos de um conjunto que ultrapassa a categoria de técnica narrativa para tornar-se um personagem à parte. O que difere um verdadeiro artista de um impostor é que este último é incapaz de manipular a seu favor a precariedade dos recursos e a falta de conhecimento teórico. Esta obra-prima, injustamente lembrada por alguns como um mero decalque de Buñuel, é uma das muitas provas de que o chileno pertence ao primeiro grupo: poucos conseguem expressar a mais absoluta liberdade através de um conto sobre pessoas aprisionadas em seus próprios egos.



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