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Dossiê Jodorowsky

Jodorowskys Não-Jodorowskyanos

Tusk
Direção: Alejandro Jodorowsky
França, 1980.
Sinopse: A história se desenvolve na Índia colonial, no seio de rica família inglesa. Ao mesmo tempo, nascem um elefante e uma menina. Entre ambos, se estabelecerá uma singular e misteriosa relação empática na qual nada nem ninguém poderá interferir.

O Ladrão do Arco-Íris
Direção: Alejandro Jodorowsky
The Rainbow Thief, Reino Unido, 1990.
Sinopse: Último filme de Alejandro Jodorowsky, é a história de Dima (Omar Sharif) e do Príncipe Meleagre (Peter O'Toole), dois personagens marginais que vivem nos esgotos, debaixo das ruas da cidade e que buscam o mítico pote mágico no final do arco-íris.

Por Daniel Salomão Roque

Numa filmografia brilhante como é a de Jodorowsky, dois filmes se destacam não pela habitual genialidade do cineasta, mas por uma série de características negativas ou, na melhor das hipóteses, neutras: estamos falando de "Tusk" e "O Ladrão do Arco-Íris". "Insosso", "pálido" e "carente de personalidade" são expressões plenamente cabíveis a estas obras, mas caso deixemos de lado os eufemismos e estejamos dispostos a detalhar um pouco mais nossa crítica, podemos afirmar que tanto um quanto o outro, cada um a seu modo, são tolos, redundantes, constrangedores e repletos de maus momentos. Não à toa, são fitas renegadas pelo seu diretor, que afirma enfaticamente não ser o autor de nenhuma delas. A óbvia disparidade em relação aos maravilhosos "Fando e Lis", "El Topo", "A Montanha Sagrada" e "Santa Sangre" não é o único ponto que os dois filmes têm em comum. Tratam-se de dois projetos realizados por encomenda, onde o autor encontrava-se numa situação paradoxal: ao mesmo tempo em que havia sido contratado justamente por ter construído um universo que dialogava com a temática destas fitas, não teve o menor resquício de autonomia e liberdade artística em nenhuma das duas.

Falemos primeiro de "O Ladrão do Arco-Íris", que a despeito de ser cronologicamente posterior, constitui um caso menos aberrante e de mais fácil compreensão. Rodado em 1990 na Inglaterra, um ano após o bem-sucedido "Santa Sangre", o filme logo de cara chama a atenção pela presença de três astros do primeiro escalão cinematográfico: Peter O'Toole, Omar Sharif e Christopher Lee. Jodorowsky sempre foi conhecido por evitar ao máximo as grandes estrelas, e esta película serve como prova definitiva de que os conflitos entre o artista chileno e as figuronas reconhecidas pelas platéias mundiais não se resumem ao simples fato de elenco e diretor não se entenderem muito bem: o que verdadeiramente ocorre é uma total incompatibilidade entre ambas as partes. Do princípio ao fim, a obra se demonstra apática, insegura e contida (no mau sentido). Por mais que as tentativas sejam numerosas, as cenas capazes de causar empatia no espectador são poucas e, logo nos primeiros minutos, a falta de química entre os envolvidos torna-se evidente para qualquer um que já tenha assistido aos trabalhos anteriores do cineasta e dos atores principais.

Para entender o porquê deste filme ser assombrado por tão graves problemas, faz-se necessário lembrar de algumas histórias um tanto quanto desagradáveis que assolaram seus bastidores. "O Ladrão do Arco-Íris" foi produzido por Alexander Salkind, magnata da indústria cinematográfica e financiador de obras como "Austerlitz" (Abel Gance), "O Processo" (Orson Welles) e "Superman" (Richard Donner). Sua esposa, Berta Domínguez D., era uma aspirante a roteirista que admirava o estilo de Jodorowsky; é desta senhora o roteiro de "The Rainbow Thief", e a filmagem do mesmo foi um presente de aniversário dado a ela pelo marido endinheirado. Se ao começar deste modo a produção já havia adquirido ares de “crônica de uma morte anunciada”, Salkind foi além e decidiu eliminar qualquer possibilidade de entrosamento ao contratar detetives que permaneceriam escondidos no set apenas para garantir que o diretor não mudaria nenhuma linha do script. Como se este quadro já não fosse desagradável o suficiente, o produtor também fez questão de oferecer todo tipo de regalias ao elenco, enquanto o cineasta era tratado como um empregado da mais baixa categoria.

A escrotice generalizada teve como conseqüência o infeliz resultado que vemos na tela. Por incrível que pareça, “O Ladrão do Arco-Íris” não é um mau filme, pelo menos em termos absolutos. O roteiro é razoavelmente bem amarrado, os aspectos técnicos não deixam a desejar e, para aqueles que procuram nada mais do que entretenimento esquecível com pitadas spielberguianas ou uma fita de temática fantasiosa para ser assistida em família, é uma ótima pedida. Contudo, se lembrarmos que a obra leva a assinatura de um certo Alejandro Jodorowsky, chegaremos à conclusão de que isso tudo é muito pouco.

Se o relativismo é capaz de salvar “O Ladrão do Arco-Íris” da categoria de abacaxi, com “Tusk” as coisas funcionam de outro modo. Estetica e tematicamente, se assemelha a uma imitação barata dos épicos de David Lean, mas sem os inegáveis méritos artísticos do cineasta britânico. Atuações mequetrefes, roteiro bizonho, direção pobre, fotografia desleixada, trilha sonora brega, humor mongol, sentimentalismo de telenovela, ausência de clima e muita encheção de lingüiça: tudo indica estarmos diante de um projeto encomendado, o que o filme provavelmente é. Entretanto, nos seus créditos iniciais constam os dizeres “Uma Fábula Pânica”, o que nos impõe uma dúvida cruel: teria Jodorowsky participado do processo criativo dessa bomba?

Em resumo, mesmo que fosse assinada pelo mais medíocre dos diretores, esta produção francesa de 1980 seria incontestavelmente péssima. É impossível encontrar alguma justificativa para o caráter desastroso do filme, pois de tão renegado, o mesmo acabou mergulhando na obscuridade completa: pouco ou nada se sabe a respeito dele e Jodorowsky nunca o menciona nas entrevistas. “Tusk” adquire contornos ainda mais enigmáticos se levarmos em consideração o fato da película ter sido rodada no mesmo ano em que o artista começou a escrever “O Incal”, obra-prima que consolidou sua reputação de gênio dos quadrinhos. No festival que o CCBB dedicou em homenagem ao multimídia, o filme foi exibido apenas uma vez em cada cidade, sem reprises; de acordo com boatos que circularam pelo público, isto teria ocorrido por exigência do próprio Jodorowsky, que por sua vez nem chegou a mencioná-lo nas suas conferências sobre cinema. Confesso que em seu lugar, faria o mesmo.



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