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Dossiê Jodorowsky

O Pato Donald e o Zen-Budismo
Por Alejandro Jodorowsky – Publicado originalmente no site oficial do artista
Traduzido por Daniel Salomão Roque e Maria José Roque de Souza

Às vezes, lendo distraidamente um livro, somos surpreendidos por umas linhas que nos mergulham em uma espécie de terror benéfico. Parece que só podemos compreender o que conhecemos... Gurdjieff disse que as idéias necessitam de tempo para serem compreendidas. A consciência as guarda como o estômago de um ruminante, e pouco a pouco as vai digerindo até que as novas concepções penetram totalmente no indivíduo. Porém, de vez em quando também nos metem uma espécie de “gol psicológico”: algo novo surge bruscamente no nosso ser, driblando todo os tipos de defesas. E como toda nova idéia assimilada necessariamente produz uma mudança (“Mudança” é igual a “Morte”), por inércia, nos aterrorizamos.

Nestes últimos dias, senti duas vezes este terror de compreensão. A primeira, lendo “Touthankamon”, de Christine Desroches-Noblecourt. A autora, depois de dedicar todo um capítulo a desmitificar as lendas das “vinganças dos faraós” inventadas por jornalistas marrons, termina reconhecendo que apenas dois eventos poderiam merecer a alcunha de “sobrenaturais”. O primeiro se refere ao blecaute que deixou sob escuridão toda a cidade de Cairo, no mesmo momento em que morreu Lorde Carnavon, o mecenas que protegeu o descobridor da tumba de Tutankamon. Uma pesquisa levada a cabo não pode explicar essa estranha quebra de corrente (a palavra “casualidade” aflorou em minha mente. Um fato casual e poeticamente belo, e isso é tudo, eu me disse. Porém, o seguinte trecho me arrepiou os cabelos). “Na Inglaterra, no exato momento da morte de Lorde Carnavon, levando em consideração a diferença de horários, o cachorro preferido deste começou a latir sem que nada pudesse calá-lo, até que caiu morto”. Os acontecimentos são reais. Qualquer pessoa pode verificá-los consultando o livro que mencionei. Se a mente de um cão tem o poder de viajar da Inglaterra ao Egito e inteirar-se da morte de seu dono, o que não poderá o cérebro humano? Terei empregado corretamente a palavra “cérebro”? Responder minha última pergunta implica relatar como senti o “terror benéfico” pela segunda vez.

Ultimamente, minhas leituras têm se concentrado no livro “Woumen-koan” (48 koans clássicos do zen-budismo) e numa coletânea de histórias do Pato Donald. A historinha “O Pato Bombeiro” corresponde exatamente à mensagem dos koans 42 e 44. Comecemos pelo Pato Donald. Eis aqui um resumo do conto: o chefe dos bombeiros convida o Pato Donald a fazer parte do corpo de voluntários. Ele dá a notícia a seus pequenos sobrinhos, que também querem participar, mas seu tio, considerando-os uns bobos, os obriga a ficar em casa. Dão-lhe uma equipe com a condição de que ao escutar o alarme, saia imediatamente com ela em direção ao incêndio. Se chegar pontualmente, receberá uma medalha de cobre. O pato, orgulhosamente, esvazia um cofre dizendo que servirá para guardar as medalhas que ganhará. De noite, a buzina soa mas o pato não desperta. Seus sobrinhos o acordam do sonho. O pato se lança em direção ao incêndio esquecendo o capacete, as calças, o machado e todo o resto. Quando consegue se equipar, já é tarde. A casa que queria apagar tornou-se um montão de escombros e os bombeiros já haviam ido embora. No dia seguinte, o chefe o chama e lhe dá um cargo menos importante. Tiraram dele o machado e em seu lugar entregaram um pequeno extintor. Naquela noite, voltou a soar o alarme e o pato mais uma vez continuou dormindo. Foi acordado por seus sobrinhos. Desta vez, se veste com muito cuidado, mas devido à sua pressa acaba levando uma bomba de inseticida ao invés do extintor. Ao tentar apagar o fogo, acaba fazendo com que ele se alastre. No dia seguinte, o chefe o rebaixa ainda mais: agora apagará o fogo com um saco molhado. Para ajudá-lo, seus sobrinhos decidem provocar na rua um pequeno incêndio, para que seu tio não se sinta tão deprimido e trabalhe um pouco. O pato, entretanto, encontra um pacote de bombinhas e as guarda no bolso por considerá-las perigosas. “Tio, há um incêndio no meio da rua, pegue seu saco molhado e salve a cidade!”. O pato apaga o pequeno fogo, mas acaba incendiando a própria jaqueta. Corre para casa. As bombinhas explodem. A sala de estar começa a incendiar-se. Os meninos pegam uma mangueira e apagam o fogo. Chega o Chefe dos Bombeiros e os admite na companhia. Essa noite, ao soar o alarme, os garotos acordam gritando “Temos que ir, depressa! Nenhum obstáculo nos deterá!”, partem em direção ao incêndio num moderníssimo carro muito bem equipado, enquanto o tio os observa de pé, no meio da rua, com o saco molhado nas costas, murmurando: “Como são sortudos!”

Nesta fábula se apresentam muitos temas, desde o herói dorminhoco até o fogo prometeico, passando pela eliminação de objetos como um caminho para chegar ao verdadeiro Eu. Gostaria de citar a epopéia de Gilgamesh. Na prancha 11, um Imortal, para provar a Gilgamesh sua própria debilidade, lhe recomenda que trate de não dormir durante seis dias e sete noites. Gilgamesh cerra levemente os olhos e adormece. O Imortal diz a sua mulher: “Olhe para este homem que quer viver eternamente e que não é capaz sequer de libertar-se do sono. Quando despertar, vai negar que dormiu porque todos os homens são mentirosos. Tu lhe proporcionarás a prova em contrário. Todo dia, fabrique um pão e ponha ao lado dele”. Ao sétimo dia, o Imortal desperta Gilgamesh que reage furioso: “Como?!? Apenas entrecerro os olhos e já me empurras para despertar-me!” Mas, quando lhe mostram os pães, o primeiro mais envelhecido que os recem fabricados, Gilgamesh se dá conta que dormiu seis dias e sete noites...

Dostoievsky, em “Crime e Castigo”, descreve brilhantemente este ato de mentir a si mesmo. Um preso, condenado à morte, quer passar sua última noite dormindo. Desperta por um minuto. Nesse instante desperta também um cão que ladra por um minuto. Dormem ambos. Horas mais tarde, sucede o mesmo: o preso desperta um minuto ao mesmo tempo que o cão ladra um minuto. Ao amanhecer acontece o mesmo pela terceira vez. O preso acorda pela manhã dizendo que não pôde dormir direito porque durante toda a noite ladrou um cão.

A julgar pelos textos mesopotâmicos, a mais antiga preocupação dos homens é “despertar totalmente”. Todas as doutrinas esotéricas sublinham esta “manha” do homem que o faz unir seus pequenos estados de consciência, como o prisioneiro de Dostoyewski, e esquecer que entre eles existem grandes lagoas de sono. A totalidade do Budismo Zen está baseada neste despertar ou iluminação chamada “Satori”. Não há Zen sem Satori, que é o alfa e o ômega do Budismo Zen. O Zen desprovido de Satori é como um sol sem luz nem calor... O Satori pode ser definido como um olhar intuitivo na natureza das coisas, em contraste com a compreensão lógica ou analítica. Praticamente significa o descobrimento de um mundo novo, desapercebido até agora por causa da confusão de um espírito formado no dualismo. Ao alcançar o Satori, tudo que nos rodeia é visto sob um ângulo de percepção até agora desconhecido. Para os que obtêm o Satori, o mundo muda...

Passemos ao koan 44: “O bastão de Pa-Tsiao”. O mestre Pa-Tsiao diz aos monges em seu sermão: “Se tendes um bastão, vos darei outro bastão. Se não tendes bastão vos deixarei sem”. Estas mesmas frases se encontram quase idênticas no Novo Testamento: “Porque se dará a quem tem muito, e terá abundância; mas ao que tem pouco o pouco lhe será tirado”. (São Mateus, 13,12; 25,29) “Cuidado com o modo com que escutáis, porque a quem tem se lhe dará e a quem não tem até o que acredita ter lhe será arrebatado”. (São Lucas, 8,18; 19,26).

Analisemos estas frases à luz do Pato Donald. Nosso personagem recebe um “chamado” pedindo-lhe que apague o fogo. Recebe um bastão sagrado em forma de machado. (Todos os mestres zen-budistas usam em seus sermões este bastão, que tem sua raiz no Tao. O Taoísmo extraiu este símbolo do relógio de sol. Enterrava-se uma varinha na terra e, seguindo a mudança da sombra, podia-se ver a hora, a passagem do dia para a noite, do verão para o inverno. O bastão estava entre a luz e a sombra e através de sua presença as duas poderosas forças do Universo, Yin e Yang, se manifestavam. O bastão vinha a significar o Eu original. Um bastão que, por mais que se alongue, nunca chega ao excesso; por mais que se encurte, nunca se esgota (Como diz Nicolás de Cues, o “Máximo absoluto e o Mínimo absoluto coincidem”...). Ao receber o chamado místico, o Pato Donald peca por orgulho. Quebra a lei: “Pensa na obra e não nos frutos”. (Bagavadghitta) Pavoneia-se com os frutos que obterá: um posto de grande responsabilidade do qual seu eu narcisístico conseguirá carícias e uma medalha de bronze. (Se fosse um valor verdadeiro, a medalha seria de ouro). Além disso, pensa em guardar estes prêmios em um baú, símbolo de seu ego fechado. A idéia do prêmio aterrorizou todos os santos. Sempre pedem que lhes seja dado o inferno por medo de amar a Cristo apenas pelo desejo de obter o paraíso e não por Ele mesmo. Os sobrinhos que encarnam a luta de gerações – são os novos exemplares de homens, jovens, associados em grupos (“melhores são dois que um, porque se um cair, quem o levantará?” “Um feixe de varas não se quebra com facilidade” – Eclesiastes) – representam o moderno pensamento coletivo, a gestalt, a realização social antes que individual. Eles são três e ao mesmo tempo um. Falam uma frase dividindo as palavras entre si. Assim: A.- O alarme toca... B.- ... e o tio deve... C.- estar dormindo” Estes sobrinhos, relegados pelo pensamento ególatra são os que despertam ao soar o alarme. São os que se preocupam em apagar o fogo anonimamente, são os que pensam na obra e, por último, são os que tratam de ajudar ao Outro. Eles “têm” e por isso lhes é dado o melhor carro de bombeiros. O Pato Donald “não tem”. Por isso mesmo tudo lhe vai sendo tirado. Ao final nem mesmo pode apagar o fogo que há nele mesmo. Este fogo interior pede água. Que significa isso?

Teillard de Chardin nos dá a resposta: “ O fogo, este princípio do ser... No princípio havia o Verbo... não havia o frio nem as trevas; havia o Fogo... e em virtude de sua imersão no seio do Mundo, as grandes águas da matéria, sem um tremor, se carregaram de vida. Aparentemente nada tremeu sob a inefável transformação. E, sem embargo, misteriosa e realmente, ao contato da substancial Palavra, o Universo, imensa Hóstia, se fez Carne. Toda matéria está desde agora encarnada, Deus meu, por tua encarnação”. O chamado da Palavra-Fogo-Divino necessita do Pato Donald para que este a regue, a água de sua matéria. O Pato, ao dormir, não deixa que se efetue a comunhão e ao não apagar o fogo, a divindade não pode encarnar-se nele.

Passemos ao koan 42, “A mulher sai de sua concentração”. Uma mulher cai em concentração junto ao Buda. Outros santos se queixam discutindo se ela merece esta honra de estar junto a ele. Este lhes diz que tirem-na de sua meditação. Nenhum deles consegue. Então, Buda se acerca da mulher, estala os dedos e ela desperta imediatamente. O conteúdo é muito claro: nem a ciência, nem a discussão, nem a investigação podem dar o Satori. Só a Ignorância, sem forma, o encontra. Houang-Po diz em sua “Essência da lei que se transmite pelo espírito”: “Mesmo que todas as divindades passem sobre as areias do Ganges, estas não são felizes. Mesmo que todos os cordeiros, insetos e formigas passem deixando nelas suas pegadas as areias não se encolerizam. As areias não desejam nem invejam tesouros maravilhosos e perfumes refinados. Tampouco odeiam as carniças nem a imundície mal cheirosa. Este espírito é o espírito sem consciência”.

O Pato Donald, moderno Prometeu, recebe o chamado para que apague sua pequena fogueira mental, produto de uns poucos fogos de artifício, e se submerge no grande fogo-inconsciente-universal. É evidente que a anormalidade do excesso de pensamento dualístico faz sofrer ao homem. Eis aqui por que o Pato guincha quando sua casa começa a queimar. Necessita do Satori, mas o teme. Deixa a oportunidade e, tristemente, aferrado ao seu fardo filosófico, vê distanciarem-se as novas gerações dizendo para consolar-se: “Como são sortudos!”, acreditando que algo lhes foi dado sem trabalho algum, e não que obtiveram por um esforço interior constante que respondia a todas as chamadas.

Pobre Pato Donald! Tudo lhe será tirado, porque, aferrado a suas concepções mentais emperradas, espera que lhe dêem, sem trabalhar para conseguir. E, como conseguir? O caminho para o Pato Donald está traçado no conto: deve dedicar-se a limpar seu baú, tirando dele todas as medalhas de cobre.



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