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Dossiê Jodorowsky
SANGRE DE MI SANGRE: UM CONTATO IMEDIATO DE TERCEIRO GRAU COM AXEL JODOROWSKY

- Por Priscila Farias – Publicado originalmente no #16 da Revista Animal –
Seleção e transcrição de Daniel Salomão Roque

Apontado pela crítica européia e americana como grande cult movie dos anos 90 (a atendível Gore Zone o definiu como “o mais rico e original filme de horror de 1990”), “Santa Sangre”, estrelado por Axel Jodorowsky, passou quase despercebido pelas telas paulistas. Rodado em 1989 no México, deveria ter sido apresentado na 13ª edição da Mostra de Cinema de São Paulo e se o público daqui teve a oportunidade de vê-lo em 1990, foi pura sorte: por pouco, a cópia não chega de novo. Quem gosta de quadrinhos tinha pelo menos um bom motivo para assistir “Santa Sangre”: o filme foi escrito e dirigido por Alejandro Jodorowsky (algum de vocês ainda não leu O Incal?), um dos mais respeitados roteiristas de HQ da atualidade.

O filme “Santa Sangre” (2º lugar na preferência da crítica e em 9º na preferência do público na 14ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo) conta a história de Fênix (Axel Jodorowsky), um garoto criado no circo, filho de um atirador de facas alcoólatra e de uma sacerdotisa de uma seita religiosa nada ortodoxa – Santa Sangre – que venera uma virgem mutilada, tendo como altar uma piscina de sangue. O garoto presencia o mutilamento de sua mãe (o pai amputa seus braços) e a morte de seu pai, que se suicida cortando a garganta depois que a mulher joga ácido no seu sexo, quando o pega no flagra transando com a mulher tatuada. Fênix vai parar num manicômio e, já adolescente, foge de lá para seguir sua mãe, que passa a dominar os braços do filho, utilizando-os para os fins mais diversos: de espetáculo de cabaré ao assassinato, passando pelo piano e o crochê. O filme deveria ser mais gore se os produtores não tivessem cortado algumas cenas mais violentas (rios de sangue na morte do pai e no amputamento da mãe, por exemplo). A idéia original do filme partiu de uma conversa de Alejandro Jodorowsky com um famoso assassino psicopata mexicano – Jorge Cardona – que matou mais de trinta mulheres e as enterrou no quintal.

Domingo, 6 horas da tarde. Saio da sala do Majestic com a sensação de estar flutuando e mal posso acreditar no que vejo: lá estava Axel Jodorowsky, o instigante ator principal de Santa Sangre, aparentemente disponível. Quase entro em pânico. “Olá! Eu gostaria muito de entrevistar você, mas não sei por onde começar”, arrisco, enquanto o Newton Foot corre até a banca mais próxima para comprar um exemplar da Animal. “Tudo bem...” – emenda Axel – “...se você não sabe o que perguntar, eu mesmo faço as perguntas e as respondo”. Alguns chopps mais tarde, ele me explica que sua vinda a São Paulo realmente não fora programada, mas aproveitando o fato de estar no Chile para outro festival, telefonou a Leon Cakoff e veio, trazendo na bagagem uma cópia do filme.

Axel nasceu no México, em 1965, e hoje mora em Paris, assim como seus pais e seus irmãos. A história de sua família – coisa que ele adora contar – é bastante complicada. Resumindo um pouco, seu pai nasceu no Chile, filho de judeus russos imigrados. Já a família de sua mãe mistura irlandeses e mexicanos, entre eles o célebre lutador de luta-livre, o Santo – “O original. Depois de sua morte, meu avô foi substituído por outros lutadores, igualmente mascarados”, jura Axel.

“Se eu não fosse ator, com certeza seria criminoso”, afirma. No entanto, além de pintar quadros e ter trabalhado com teatro e performance, é formado em artes circenses e pantomima, pela escola parisiense de Marcel Marceau. “Santa Sangre” é seu primeiro filme, e a primeira vez que trabalha com o pai. – “Acho que ele queria um ator americano, alguém famoso. Mas depois de assistir o meu trabalho de graduação, resolveu que eu poderia interpretar o papel principal”.

A trama do filme aborda alguns temas recorrentes no trabalho de Alejandro mas, ao contrário dos trabalhos esteticamente mais clean e futuristas que realizou com Moebius, Arno ou Cadelo, “Santa Sangre” é violentamente terrestre e, como se supõe pelo nome, explicitamente splatter. “’Santa Sangre’ pode ser considerado um filme gore psicológico”, arrisca Axel. “O gore foi uma das fontes de inspiração para o roteiro, assim como os filmes expressionistas alemães, o cinema japonês e os neo-realistas italianos”. Apesar disso, é um filme cheio de sutilezas e simbologias. “Existem três níveis de compreensão para o filme: o da história em si, o drama psicológico e o nível simbólico. A águia tatuada no peito, por exemplo, simboliza o poder do pai americano...Fênix só consegue se libertar quando reencontra (sua) Alma e queima a mãe”.

Os braços, as mãos (ou a falta deles) são um tema bastante recorrente na obra de Alejandro, segundo Axel, porque eles simbolizam a ação: ter os braços amputados significa perder a mobilidade, o movimento. Já as relações sadomasoquistas, nem tanto. “Mas nós vivemos imersos no sadismo, no masoquismo, no sangue... bem como no canibalismo, no narcisismo, nas relações edipianas. São realidades inconscientes das quais queremos escapar, mas nem sempre sabemos como fazê-lo. Às vezes, nos esquecemos de fazê-lo”.

Axel pergunta para Axel: “Qual é o processo para se fazer um filme?”. “Fazer um filme que realmente dê algo às pessoas requer um esforço muito grande se você é honesto. E este é um filme honesto. É um presente, sem concessões, do fundo do coração. Sempre tive a esperança de que as coisas que faço não sejam vistas apenas como entretenimento. Quero fazer algo que modifique positivamente o ser humano”.

Axel pergunta para Axel: “Qual é a sua posição, enquanto ser humano?”. “Eu gostaria de ser um neo-místico free-lance. O mundo hoje está tão louco que precisamos ser samurais para sobreviver”. Axel gosta de emoções fortes. “Detesto filmes que tratam temas folclóricos superficialmente, e também aqueles filmes com muito blábláblá e sem ação verdadeira. Isto é masturbação intelectual. Um filme deve se basear na ação e na emoção, e não nas palavras”. Por isso não gostou nem um pouco de “Mahabarata”, o filme vencedor do prêmio do público na 14ª Mostra de Cinema de São Paulo. Provavelmente este sentimento já estava presente quando fazia performances em Paris, - faz questão de frisar que não faz mais isso -, nas quais sacrificava galinhas e amarrava inocentes coelhinhos nos pulsos. “Para ter consciência, você precisa passar pelo caos”, justifica. Seguindo os passos de seu pai, Axel sonha dirigir seu próprio filme, para o qual já tem roteiro escrito. Em 91 deve participar, como ator, de pelo menos duas produções. Está seriamente preocupado e ansioso para realizar seus novos projetos. Almeja a genialidade.

Provavelmente, em um futuro próximo, o veremos interpretar um neo-místico cristão, disputando o cadáver de uma anã cheirosa (acertei, guapo?) ou coisa parecida. Em todo caso, fiquem de olho e, se a benevolência de algum distribuidor fizer com que “Santa Sangre” ou algum outro Jodorowsky chegue a uma tela ao seu alcance, vá correndo assistir.



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