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Dossiê Jodorowsky

TESOUROS DOS QUADRINHOS
Clássicos absolutos das HQs, de todas as épocas e estilos.
Por Filipe Chamy


Bórgia (2004-8) — Alejandro Jodorowsky & Milo Manara

A primeira parceria de dois gigantes dos quadrinhos parece à primeira vista uma convencional crítica à Igreja católica. Mas acreditar nessa simplicidade é subestimar ambos os artistas.

Bórgia não é a obra mais importante de Jodorowsky, mas merece especial atenção por mostrar que o grande mestre da nona arte continua apaixonado por essa expressão e não menospreza seus ansiosos leitores. Não só é um ataque feroz à hipocrisia religiosa, nem só um painel da época — escancarada sob a nudez de suas obscuridades —, é a saga de uma família (tema importante nos trabalhos do escritor) e exposições explícitas de cânceres humanos, como falsidade, intolerância, mentira, arrogância, corrupção, poder.

Sangue para o papa, o primeiro volume, é sobre a Roma podre e devassa devastada pelo papado sórdido de Inocêncio VIII. A pilantragem sempre era a ordem do dia, e as vãs esperanças do povo subjugado eram recompensadas com sofrimento, caos e barbáries de toda espécie. Um reinado apocalíptico, digamos logo. Com o falecimento dessa monstruosa criatura, Rodrigo Bórgia tenta subir ao seu posto. Não de maneira honrada, claro (pois como esperar que um papa daqueles tempos tenha tamanha honestidade?), mas abusando de jogos de influência e vilanias sujas e cruéis. E ele ascende ao trono de sumo pontífice, mesmo sendo um homem perverso, megalômano, infiel, mentiroso, uma coletânea de depravações morais. Conhecemos também nesta parte seus filhos, entre os quais Lucrécia. E vemos que a Igreja não só tolerava ações repugnantes como as incentivava e praticava (hoje a historiografia prova que Jodorowsky pouco ou nada exagerou).

O poder e o incesto desnuda (não podemos esquecer que Milo Manara é o desenhista) a vida do agora Alexandre VI, outrora Rodrigo Bórgia. Não há limites para sua sede de conquista e o profano nunca pode ser totalmente separado do sacro. É uma questão quase etérea a que repousa sobre a definição do caráter dessa pessoa, tão complexa mas quase bestial, sem racionalidade. Alguém que é capaz de incentivar o incesto entre seus próprios filhos, por exemplo. E Lucrécia Bórgia aqui aparece absurdamente sensual, magnífica e perfeita, talvez a mulher mais linda saída do traço de Manara. Mas alguém que é instruída por Maquiavel, vai a uma instituição comandada por freiras prostituídas e ainda assim experimenta uma alegria quase infantil ao despir-se imediatamente para experimentar um vestido na frente de inúmeras pessoas (entre as quais um estranhamente sereno Maquiavel) também não pode ser considerada normal, não como a sociedade o entende. A vaidade é parte de sua essência, e sua inconseqüência só pode ser comparada à sua infâmia e à sua noção de estratégia política, marca da herança da sanguinolenta família Bórgia.

Milo Manara, auxiliado pelo brilhante e preciso roteiro de Jodorowsky, cria visões delirantes de pesadelo e cores ora nefastas ora joviais. Personagens assustadoramente fellinianos (pois Fellini influenciou muito os dois autores), delírios expressionistas, a arte do italiano está em seu auge e salta aos olhos sua competência com aquarelas e panorâmicas. Tudo associado ao belíssimo texto, coeso, profundo, sagaz e eficiente, chocante sempre — porque é difícil acreditar ou acostumar-se a tantas imundícies. Ou pelo menos é triste pensar, com amargura, que muitos dos horrores de hoje vieram dessa base sangrenta, da incompreensão deliberada e (in)consciente, da Igreja, dos ricos e poderosos.

Jodorowsky acabou em outubro de 2007 o terceiro tomo da saga. Quando Manara terminar de ilustrá-lo, teremos a fulminante conclusão da trilogia dos Bórgias. Azar de Roma e sorte nossa.



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