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Dossiê Jodorowsky

TESOUROS DOS QUADRINHOS
Clássicos absolutos das HQs, de todas as épocas e estilos.
Por Daniel Salomão Roque

O INCAL, de Alejandro Jodorowsky & Moebius (1980)

Um pequeno incidente que dá origem a uma conspiração universal: este é o mote de uma das obras máximas dos quadrinhos de ficção-científica da década de 80. Contratado por uma respeitável senhora que deseja ser conduzida em segurança até o Círculo Vermelho, perigoso antro de prostituição e libertinagem, John Difool, um detetive “classe R” de quinta categoria, é pivô de um mal-entendido e, visando escapar de um mercenário que deseja matá-lo a todo custo, foge pelo esgoto, onde encontra uma estranha criatura que lhe entrega um pequeno e misterioso objeto: o Incal. Não muito tempo depois, o pobre e ignorante detetive seria espancado por homens mascarados nas imediações do Beco do Suicídio, antes de ser jogado no grande lago de ácido e ser salvo por um triz. A partir daí, a encrenca adquire proporções cada vez maiores, ao passo que o protagonista se torna cada vez mais sábio e consciente do problema que causou. “O Incal” é a mais festejada incursão de Alejandro Jodorowsky nas HQs e o trabalho responsável pela sua consagração como gênio da nona arte. Escrita por ele e desenhada por seu maior parceiro, o francês Jean “Moebius” Giraud, a série teve início em 1980 e foi concluída em 1988, período no qual os dois artistas conceberam os mais diversos projetos: as aventuras de John Difool eram desenvolvidas com tranqüilidade pelo desenhista e pelo escritor em seus momentos de folga, o que explica a grandiosidade da história e suas muitas nuances.

Iniciado em meio a uma crise na carreira dos autores, “O Incal” é derivado de um fracasso - a adaptação cinematográfica de “Duna”, que teria Jodorowsky na direção e Moebius na concepção visual. O naufrágio do projeto causou uma enorme desilusão em Jodorowsky, que ficou desligado do cinema até voltar com o péssimo “Tusk”. Moebius, pelo contrário, não foi prejudicado pela situação: o brilhante trabalho que começava a desenvolver na revolucionária revista Metal Hurlant e os deslumbrantes desenhos que fizera para a nunca lançada obra-prima do cineasta chileno lhe renderam inúmeros convites de Hollywood, mas no fundo sentia-se tão frustrado quanto seu amigo. A solução? Unir esforços e canalizar nos quadrinhos toda a energia criativa que acumularam para a sétima arte. Em 1977 eles já haviam provado do que eram capazes ao lançar “Os Olhos do Gato”, um genial conto ilustrado que misturava horror, sci-fi, metafísica, Doré e Lovecraft: todo mundo tinha plena noção de que a dupla não decepcionaria.

Para quem assistiu a filmes como “El Topo” e “A Montanha Sagrada”, a comparação entre o Jodo-cineasta e o Jodo-roteirista é no mínimo inevitável. Em relação a sua obra cinematográfica, “O Incal” guarda tantas semelhanças quanto diferenças, provocando no leitor uma estranha sensação que envolve o sentimento de já estar familiarizado com o que se lê, ao mesmo tempo em que o estilo soa completamente distinto. O humor sarcástico, o misticismo e o teor espiritualista de suas fitas mais conhecidas continuam aqui, mas agora com contornos mais acessíveis, ocultos sob uma empolgante e espalhafatosa aventura de fantasia. Se no cinema Jodorowsky quase sempre colocou a trama em segundo plano, nesta série ele lhe dá o papel principal.

Cabe a observação de que um enredo razoavelmente convencional de Jodorowsky supera em porra-louquice os roteiros mais alucinados de quase todos os seus colegas. Neste caso específico, o mestre concebeu uma história intrincadíssima, impossível de ser desvendada em toda a sua plenitude com apenas uma leitura: além das influências de praxe, o autor empregou também conceitos de física quântica, brincou com as convenções do film noir e buscou inspiração na literatura de Philip K. Dick e Mickey Spillane. “A Morte num Beijo” aka “Kiss me Deadly”, o deslumbrante filme baseado num romance de Spillane e dirigido por Robert Aldrich, foi muitas vezes apontado por Jodo como uma das principais referências para “O Incal”. De fato, a comparação faz todo o sentido e as conexões que as obras mantêm entre si não são poucas. Tanto numa quanto na outra temos um “private eye” burro e chauvinista se envolvendo acidentalmente numa enrascada cuja gravidade se intensifica em progressão geométrica: o filme de Aldrich culmina na hecatombe nuclear, enquanto a graphic novel de Jodo & Moebius atinge o clímax no encontro que John Difool tem com Deus. A extensa e bizarra galeria de personagens, responsável por manter público e protagonista num estado de sintonia caracterizado pela confusão mental, é outro elemento caro a ambas. Jodorowsky radicaliza essa proposta e cria um imenso universo dotado de mitologia própria, que seria explorada com mais profundidade em algumas de suas HQs posteriores. A juventude de John Difool seria esmiuçada em “Antes do Incal”, e os eventos posteriores à série original estão sendo revelados em “Depois do...”, esta última ainda inconclusa; o Metabarão, assassino de aluguel que se torna amigo do detetive após ser contratado para matá-lo, tem sua árvore genealógica explorada em “A Casta dos Metabarões”; o mesmo ocorre com os malévolos Tecnopapas, que são dissecados num álbum homônimo.

Item obrigatório para qualquer um que se considere fã de quadrinhos, “O Incal” mudou para sempre a cara da nona arte, lançando conceitos e tendências que seriam aproveitados por nomes como Alan Moore e Grant Morrison. Decorridos quase 30 anos de seu surgimento, esta jóia finalmente foi editada no Brasil, graças à editora Devir. Antes tarde do que nunca!




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