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Uma Mulher é uma Mulher

Por Filipe Chamy

Uma Mulher É Uma Mulher
Direção: Jean-Luc Godard
Une femme est une femme, França, 1961.

Angela quer ter um filho.

Não é nada exatamente assombroso, ainda mais se levarmos em conta que ela lê Marie Claire (chique é ser inteligente).

Godard antecipa aqui um feminismo moderno, não o da reivindicação irracional, mas o da mulher consciente de seus gostos. Não é à toa que a própria Angela pesquisa sobre partos e gravidezes, ela se sente compelida a buscar o que quer. Mas, como para fabricar uma criança é preciso mais de uma pessoa, Angela quer que seu companheiro Émile a ajude no intento. Ele não é um grande entusiasta dessa idéia, ou melhor, de nenhuma. É daquele tipo que tanto faz como tanto fez, mas não deseja conseqüências tão perenes. Angela, de orgulho ferido, aposta em joguinhos tolos com Alfred, que supostamente deverão provocar o ciúme de seu Émile. E disputas absurdas (e genialmente coreografadas pela câmera metalingüística de Godard) têm lugar nessa jornada rumo ao nada, pura constatação do cotidiano.

A música pode ser cafona (e não o é), Paris pode ter mudado (ou não), mas uma mulher ainda é uma mulher. Num momento chora, no outro sonha, no outro briga, em outro parece a pessoa mais dócil, para cinco minutos depois surpreender com novas incoerências. Anna Karina, a musa de grandes olhos e franja, corpo maravilhosa e docemente esbelto, pulula de quadro para quadro com a sutileza selvagem de uma verdadeira fêmea. Não há espaço para homens, que são ridicularizados — e sendo eles Jean-Claude Brialy e Jean-Paul Belmondo, imagine-se agora o poder da moça! —, não há como também capturar o domínio de presença feminino, pois as características da mulher não são unívocas.

Dividindo espaço entre as cores e formas, Godard narra com bizarra ternura uma história em que não há culpados nem vítimas, mas seres que conquistam por seu aspecto inócuo. São fantasmas sociais, com aspirações, projetos e ações vulgares. Angela quer um filho, Alfred quer Angela, Émile quer sua liberdade (e Angela), Godard quer cinema, o espectador quer diversão. A arte da coisa está em seu aspecto experimental, sua curiosidade latente, o lado cômico da inventividade que o jovem Jean-Luc então descobria.

Pode-se chamar Godard de tudo, menos de ignorante. Não é possível qualificar suas pretensões de burras, ingênuas. Ele sempre soube o que fazia, e se o filme é leve e tolo na superfície, é porque as pessoas se recusam a enxergar mais que o imediato. Sua competência técnica e o discurso absurdamente próprio e contra o convencional estão lá. Ainda que Angela pareça irritante, que os homens pareçam marionetes. O que há que se guardar é, por exemplo, a batalha literária (que já seria em si uma antecipação dos diálogos intelectuais vindos à luz em 1968 e com o movimento pró-igualdade feminina [como uma igualdade pode ter sexo?]) que anima a disputa do casal “estabilizado”. Pois uma pessoa é definida por seus gostos e predileções, e tudo isso é importante na hora de se definir os rumos de uma família (ainda que esta não exista no momento).

Mentiras e desencontros são constantes em qualquer relacionamento (e, dizem os cínicos, necessários), por isso é com certa esperança que acompanhamos o desenrolar dos acontecimentos — ou da trama —, com intuição que a imagem não nos ilude (Cinema é verdade 24 vezes por segundo) e que aquele casal pode enfim se acertar. Pior para o outro pretendente (mas para Belmondo mulheres nunca faltaram). Mas Anna Karina, como sua voz infantil revela (e seu jeito nunca disfarça), prova que uma mulher sempre será uma mulher, ainda que tudo no mundo conspire para masculinizá-la. Futuramente é discutível se Godard deliberadamente resolveu desconhecer essa verdade. Aqui ela é plenamente válida.



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