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Coluna CINEMA Extremo
ONDE O CINEMA PODE SER VIOLENTO...
Por Marcelo Carrard

Onibaba
Direção: Kaneto Shindo
Japão, 1964.

Minhas cinematografias nacionais favoritas, que tocam mais fundo o meu coração, sempre foram as da Itália, da França e em especial do Japão. Longe de um esquema industrial pesado como o de Hollywood, suas produções, mesmo as de estúdios grandes, proporcionaram aos seus diretores uma diversidade criativa única, para a sorte dos cinéfilos de bom gosto. Dentro da vasta produção de filmes do Japão, alguns autores romperam as barreiras geográficas e se tornaram gênios reconhecidos mundialmente como Akira Kurosawa, Mizoguchi e Ozu. Em torno dos mestres orbitavam autores de grande talento como Norifumi Suzuki e os rebeldes da Nouvelle Vague Japonesa como Imamura, Yoshida e Oshima. Um desses mestres, porém, se destaca por duas Obras-Primas dirigidas por ele nos emblemáticos anos 60, seu nome KANETO SHINDO.

No ano de 1964 a arte cinematográfica ficou mais enriquecida com o lançamento do magnífico ONIBABA, um filme inesquecível que Shindo lançou justamente no momento em que estava florescendo a Nouvelle Vague no Japão, fortemente influenciada pela matriz francesa. Mesmo Shindo sendo mais velho que seus jovens colegas que iniciavam suas carreiras naquele momento, conseguiu com ONIBABA uma ousadia formal muito eficiente, criando um filme de imagens inesquecíveis e que não deixam nenhum espectador indiferente.

A trama é ambientada em uma terra desolada pela guerra e pela fome em um Japão onde os samurais estavam condenados ao crepúsculo de sua glória, desglamourizando o papel do herói deixando livre o terreno para o caos e o desespero. Em sua abertura já sentimos o clima começando a ser construído pelas imagens em Preto e Branco fotografadas com maestria por KIYOMI KURODA, sublinhadas por uma trilha-sonora marcante de HIKARU HAYASHI.. O ambiente hostil onde seres lutam pela sobrevivência é representado pela dupla de personagens femininas que protagonizam a história: a mulher velha, interpretada por NOBUKO OTOWA, e a mulher jovem, interpretada por Jitsuko Yoshimura. Como abutres elas sobrevivem do furto dos valores e mantimentos dos mortos em lutas entre rebeldes e samurais, ou em vítimas indiretas delas próprias. A mulher velha surge como abjeta representação do Monstruoso-Feminino em seus closes ao comer ou observar o mundo que a cerca. A mulher jovem surge como sublime representação de uma ninfa, bela e sensual em sua busca de consumar o desejo. Essa busca se inicia e permeia todo o filme com a chegada de uma sedutora figura masculina que será o ponto de discórdia entre essas duas mulheres e sua rivalidade dentro daquele universo onde o inferno é representado por um buraco no chão onde são jogados os corpos das vítimas após serem saqueados.

A maneira como Shindo simboliza o desejo é uma das mais belas de toda a História do Cinema. A vegetação baila ao sabor do vento que percorre o corpo da jovem mulher em sua hipnótica corrida noturna de encontro com o amante. A iluminação dos corpos despidos, o desejo se consumando e a dança das plantas ao sabor do vento criam uma composição única e inesquecível onde o som da natureza surge de maneira quase sobrenatural como representação da vertigem dos amantes. Mas obviamente a figura da mulher mais velha surge para impedir a consumação desse desejo com a configuração de uma figura com uma máscara que para nossa leitura ocidental seria a de um demônio, de um mensageiro punitivo sobre a mulher pecadora que ousa buscar o seu gôzo, o seu homem. Na concepção oriental essa imagem tem outros desdobramentos e a figura com a máscara demoníaca surge como o impedimento desse desejo provocado pela inveja de sua rival, em uma brincadeira inocente para amedrontar nossa ninfa de doce ingenuidade, que apenas quer encontrar o seu amante.

Nessa trama onde surgem máscaras arquetípicas uma outra figura masculina aparece em cena na figura de um samurai mascarado. Esse homem justamente será o obsessivo objeto da curiosidade da mulher velha, e sua condenação também. O desejo de remover a máscara desse homem misterioso surge como uma mórbida curiosidade feminina de querer desvendar os mistérios do homem, saber o que ele esconde. Em ONIBABA esse profundo desejo da mulher velha ganha tintas psicanalíticas fortes. A descida ao “Inferno”, na cova onde estão os corpos em decomposição em meio aos ossos criam uma composição mórbida de grande força imagética. Onibaba é um filme de grande força imagética onde as palavras são apenas um detalhe, as imagens dizem tudo com intensa força narrativa.

A máscara sob o rosto da mulher surgindo como condenação de seus atos homicidas me remeteu diretamente ao clássico de Mario Bava: Black Sunday aka A Máscara de Satá, feito quatro anos antes onde vemos imagens ricamente fotografadas em preto e branco retratando o embate entre duas mulheres e onde a máscara surge como representação do ato punitivo de seus crimes. O embate entre as mulheres de Onibaba é de grande e inesquecível força dramática nessa história em que o diretor mergulha fundo nos abismos da alma feminina. Uma obra de grande importância que felizmente começa a ser mais reconhecida pelas novas gerações após ser consagrada por um seleto grupo de críticos e cinéfilos no passado, principalmente após seu lançamento em DVD em uma Edição excelente da Criterion, infelizmente inédita no Brasil.



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