html> Revista Zingu! - arquivo. Novo endereço: www.revistazingu.net
Gêmeos - Mórbida Semelhança

Por Filipe Chamy


Gêmeos – Mórbida semelhança
Direção: David Cronenberg
Dead Ringers, EUA, 1988.

O terror nasce da consciência do medo.

David Cronenberg sempre entendeu esse princípio imutável. Seus filmes começam calmos, quase bucólicos, e gradativamente embarcam num crescendo de pânico e horror, insuportável constatação da identidade. No caso dos gêmeos Beverly e Elliot (feitos, respectivamente, por Jeremy Irons e Jeremy Irons), o beco torna-se sem saída quando a farsa é descoberta: uma moça descobre que estava tendo relações com os dois irmãos, e, acuados, eles demonstram seus caracteres sem disfarces, durante um jantar inconcluso: Elliot, frio, cínico, provocador, se julga o protetor do frágil, sensível e emotivo Beverly (e o nome feminino naturalmente é um dos motivos de sua alma feminina).

Crescendo juntos, Elliot e Beverly aproximaram-se dos mesmos interesses, tanto que ambos viram ginecologistas e desenvolvem métodos e instrumentos para tratamento de mulheres inférteis. Mas a pior infertilidade é a mental, por isso não é surpresa a ninguém que a estabilidade dessa paz aparente seja apenas impressão, e que a depressão e a crueldade estejam precisamente nessas brechas de anormalidade, que se instalam e perpetuam, ocasionando coisas estranhas e fenômenos inexplicáveis.

O que mais chama a atenção no filme é a dubiedade da escolha do mesmo ator para fazer dois papéis tão diferentes (ou não). Num certo momento, aparecem duas gêmeas, as duas muito graciosas, mas claramente identificáveis como possuidoras, cada uma, de um grupo de características que as define. Na ocasião, um dos gêmeos, confuso com a nudez de sua obscuridade, pede para que cada irmã o chame de um nome, ora o dele, ora o do irmão. Esse desconforto com a própria existência é algo que Jeremy Irons passa de maneira crível e eficaz, com seu sotaque carregado e o cabelo estrategicamente mexido, para talvez deixar o espectador perplexo; muitas vezes, não é possível saber com exatidão qual o gêmeo que se expressa, se ele mente, se é um irmão se passando pelo outro, se a imagem nos engana ou informa.

Cronenberg não abusa tanto de seu extraordinário e conhecido gosto pelo gore. O maior vilão é o que se passa dentro das cabeças, e nisso muito justamente a coincidência com a vida é atroz.

Há uma certa incompreensão generalizada sobre filmes como este Gêmeos. Falam que é raso psicologicamente, apelativo visualmente, mas ninguém ousará negar que é ótimo cinematograficamente. Porque nenhum filme é feito para agradar a todos, nenhuma arte tem em todas as pessoas o seu público. Enquanto David Cronenberg continuar fiel a si mesmo, parirá obras como esta, em que todos os elementos de direção estão afinados e alinhados para um resultado lustroso e potente, com o poder de atrair os olhos e os pensamentos.

Quanto ao resultado dessa jornada apavorante empreendida pelos gêmeos ginecologistas, não há bem o que falar sem revelar detalhes importantes da trama. Há que se saber apenas o essencial, que é a quebra dos padrões amorosos e fraternais, respectivamente com a tal mulher enganada e com o(s) irmão(s). Gêmeos são iguais para todos que não os conhecem, como a própria fêmea uma hora nota. Mas a história por que passam é de fato incomum, apesar de semi-verídica: aconteceu quase do mesmo jeito que o filme retrata — na verdade, do final vem o resto. E o final verdadeiro saiu em um livro no fim dos anos 1970.

Portanto, Gêmeos – Mórbida semelhança não deve ser procurado pelos fãs do terror convencional, nem do drama barato, mas por todos aqueles que procuram entender o que vêem não como a vida, mas como um dos reflexos dela. Imagem, como o cinema.




<< Capa