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O Incrível Exército de Brancaleone

Por Filipe Chamy

O incrível exército de Brancaleone
Direção: Mario Monicelli
L’Armata Brancaleone, Itália, 1966.

Desde os créditos de abertura, O incrível exército de Brancaleone justifica-se como uma sátira genial: numa animação imitando o estilo de arte plástica da época (Idade Média!), o humor bárbaro que dá o tom do filme afigura-se como uma espécie de prévia dos acontecimentos bizarros retratados na talvez obra máxima de Mario Monicelli.

Composto de uma sucessão de eventos extraordinários e repletos de sagacidade humorística, o filme também é imortal por sua extensa galeria de personagens grotescos: um velho judeu ridículo, um gorducho que depois viveria uma certa aventura conjugal com um animal silvestre (!), um renegado filho bastardo de um rei, um monge de voz estridente e cérebro de passarinho... mas o maior de todos, sem a menor hesitação, é o tipo do título, o impressionante Brancaleone da Nórcia. É difícil não associar a imensa qualidade do filme à da atuação esplendorosa de seu intérprete, Vittorio Gassman. Se é verdade que todos — sem exceção — os papéis são muito bem escritos e seus atores não menos perfeitamente encaixados, não é menos verdade que o grande ladrão de cena é Gassman, numa personificação absurdamente brilhante e verdadeira, possuidor da certeza dos movimentos e ações do general fracassado. A maior força do filme reside nos ombros dessa aparição maltrapilha, surrada, suja, esfarrapada. Que também é um herói honesto, corajoso, dedicado e intrépido. Quando não se depara com empecilhos imprevistos, como a recusa de seu cavalo amarelo Aqüilante de lhe servir de montaria — mesmo com Brancaleone o convidando com beijinhos e um torrão de açúcar. É um momento único e especial na carreira de um já grande intérprete. Seja dividindo cenas com os também grandes Gian Maria Volontè e Enrico Maria Salerno, com as belas e perigosas mulheres com que se depara, com o fanatismo religioso, a incoerência do sistema feudal, a brutalidade da guerra, a inconstância dos tempos de peste, Brancaleone destroça todas as convenções com seu comportamento franco e desastrado. Repleto de boas intenções, mas com um não tão bom treinamento, o bravo general da Nórcia procura o amor e a glória, mas talvez por sua própria incompetência (involuntária) acaba pondo tudo a perder. E não é tão caricato como possa parecer: é um retrato humano e valoroso, com os azares próprios da vida.

Mario Monicelli, especialista em comédias, entende a concepção mitológica da farsa, mesmo que para isso corra o risco de apenas parecer engraçado. Além do imediato, é um exercício de um diretor que sabe as regras do jogo. Tudo orquestrado, sem intrusões indevidas, a comédia e a ação aventuresca se instalam com a potência de um filme marcante.

O filme teve uma continuação, quatro anos depois, intitulada Brancaleone nas cruzadas, do ponto em que esta primeira parte se encerra. Ligeiramente inferior, tem na essência todas as características importantes deste clássico. Além da confirmação (inútil) do talento dos envolvidos, ainda que o elenco tenha sido praticamente todo renovado. Menos, é claro, o grande Gassman/Brancaleone, alma da saga.

No fim, é inevitável chegar à conclusão de que não há quem escape incólume do charme da música-tema, repetida incessantes vezes — e usada de maneiras diferentes e perspicazes, notadamente em uma cena sobre confusão de rota. Na verdade, é apenas um dos fascínios de O incrível exército de Brancaleone. Quintessência do prazer do espetáculo, o filme permanece impávido no panteão das grandes comédias do cinema. O espectador, bem guiado, lembra-se de todos os campos e locais percorridos pela armada do general frustrado, as pessoas que encontrou, as coisas que disse e por que passou. Não é pouco. Analisando-se um tempo, quantas comédias realmente ficam na memória? Só as maiores.



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