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Que história espera seu fim lá embaixo?

Por Melody Westenra

Canto Segundo de A Morte Meditada, de Giuseppe Ungaretti

Canto Secondo
(Giuseppe Ungaretti)

Scava le intime vite
Della nostra infelice maschera
(Clausura d’infinito)
Com blandizia fanatica
La buia veglia dei padri

Morte, muta parola,
Sabbia deposta come um letto
Dal sangue,
Ti odo cantare come uma cicala
Nella rosa abbrunata dei riflessi.

1932

Canto Segundo

Escava as íntimas vidas
Da nossa infeliz máscara
(Clausura de infinito)
Com blandícia fanática
A fusca vigília dos pais.

Morte, palavra muda,
Areia deposta como um leito
Pelo Sangue
Te ouço cantar como uma cigarra
Na rosa enlutada dos reflexos.

(Tradução de Haroldo de Campos)

Temos, no poema, a presença de uma figura paterna, patriarcal, que embora traga brandura, meiguice, traz também o fanatismo da doçura paterna, que não mantém distância alguma da pessoalidade das vidas – não respeita limites, fronteiras, máscaras impostas para que uma realidade pesada demais, carregada de morte e de miséria humana – tanto física quando psicológica – se mantenha longe o suficiente para não ameaçar a sanidade.

Essa figura dos pais, desprovida de qualquer lirismo, é invocada num momento em que causa uma dicotomia de valores muito peculiar. Ao mesmo tempo que essa “blandizia fanatica” aponta a clausura em que o eu-lírico se tranca, é invasiva demais, mostra a máscara humana como ela é: não segurança, mas infelicidade. A morte, contrária aos prazeres supostamente supérfluos, tem sua lembrança opressora colocada como obstáculo à felicidade maiúscula, proibida aos que, como o eu-lírico, necessitam dessa máscara para poder encará-la sem sucumbir.

E é essa figura opressora da morte que carrega o poema para um momento de tensão, em que a mencionada dicotomia se torna insuportavelmente óbvia – o leitor tem a visão clara do contraste entre a opressão da figura dos pais, senhores da sabedoria de que não há como se esconder da mudez impregnada pela morte, e a sinceridade e os desejos genuínos dos indivíduos encobertos pela sensação de necessidade de respeitar o silêncio do esgotamento humano.

E essa dicotomia está intrínseca em cada momento do poema. Desde a clausura, que é infinita, à palavra muda que não impede o eu-lírico de ouvir os mortos que cantam como uma cigarra. Há a transposição lógica de uma triste sina comum a todos os humanos em um momento muito particular em que a própria sina, por ser comum a todos, se torna pessoal, intransferível, quase inadaptável às regras da sociedade normal. O eu-lírico destorce os valores da morte a seu próprio gosto.

É interessante notar exatamente esse ponto: a tristeza como forma marginal de expressão do humano. É muito comum rotular tudo que desvirtua do vulgar de louco, quando essa suposta loucura está tão somente tentando desviar um pouco uma existência do padrão aceito, mas não discutido, imposto pelas regras de uma convivência social pacata, em que nos acostumamos a aceitar a alegria e a dor, o alívio e a tristeza, a doçura e a rigidez separadamente.

O eu-lírico “desvirtuador” tem uma perspectiva mais clara de quem são os outros, para ele e para si mesmos, e o que representam no funcionamento social a morte, a dor e o silêncio. Sem necessariamente apontar para o que acontece fora de si mesmo, o eu-lírico desvenda estereótipos de sanidade e sentimento como cegos e mergulhados na própria ignorância confortável, na apreensão de desafiar a figura da morte. Embora o eu-lírico se coloque atrás de uma máscara, ele nunca ignora o fato de que essa máscara não o resgata do sofrimento, mas apenas o coloca mais próximo dele. A máscara está lá para relembrá-lo de que há coisas das quais é preciso se esconder – e o esconderijo pouquíssimas vezes é refúgio, porque carrega reflexos do luto na beleza do fingimento.

O eu-lírico, depositado atrás da “infelice maschera” tem a figura dos pais para mostrar a real identidade do que ele sente. Na busca por esconder um ‘eu’ particular, ele se depara com quem mais o conhece e mais pode apontar suas misérias.

Ninguém questiona nada. Todas as vidas, analisadas à distância, são sempre parecidas. Mas é tão difícil fazer essa ruptura absoluta, arrebentar num puxão só esse cordão umbilical que nos ata às responsabilidades do dia-a-dia, que quando alguém o faz, é necessário que haja uma máscara, uma proteção, mesmo que seja só para justificar o desespero perante à memória, uma imagem cinzenta, insuportavelmente obstruidora.

Por mais que se enclausure, o eu-lírico não consegue fugir das restrições usuais, pois a vigília dos pais rapidamente se instala, autoritária, e lembra a todos não apenas de sua morte, cujo luto por si só deveria impedir esse tipo de felicidade instantânea e espontânea, mas de todos os valores que ele sempre cultivou e que agora estavam sendo pervertidos às custas de sua imagem ausente.

Seria necessário de certa forma exorcizar a figura dos pais, eliminando os vestígios do peso e da doce tirania da sentinela paternal. No entanto, esse exorcismo só livraria o eu-lírico do silêncio, do peso da máscara, mas ele continuaria frente a frente com o canto da morte, do qual não conseguiria escapar.

O fantasma da morte poderia até ser diminuído, mas não eliminado por completo, porque as almas ninguém, nem mesmo quem desvirtua o normal, pode entender completamente. Quem sabe que aparência tem as almas? Quem pode ter certeza que elas se transmutam? E, se porventura elas realmente se transmutassem, que forma adquiririam? Não se sabe. Mas esse espírito é, de alguma forma, transmutado pelas palavras do eu-lírico.

A dor não é substituída pelos reflexos da rosa nem pelo cantar da cigarra. As imagens de vida e beleza realçam o incômodo, a areia e o sangue.

A idéia dolorosa da perda humana nunca poderá ser substituída ou apagada, nem convertida em saudosismo, nostalgia, fuga natural do espírito humano. No universo de Ungaretti isso é impossível, pois a morte se encontra em cada canto obscuro da vida, irreprimível, irremediável, incorrigível.




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