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TESOUROS DOS QUADRINHOS
Clássicos absolutos das HQs, de todas as épocas e estilos.
Por Daniel Salomão Roque

RED RYDER, de Fred Harman (1938)

Há alguns anos atrás, não era nenhum pouco incomum ver críticos, especialmente aqueles mais ligados à estética clássica, dizendo que o western é o mais cinematográfico de todos os gêneros, ou ainda que constituiria o único cinema verdadeiro. Esse tipo de afirmação sem sombra de dúvidas transborda fanatismo e passa longe de fazer sentido do ponto de vista racional, mas o fato é que, discordâncias à parte, essa mitologia de cowboys, bandidos, pistoleiros, mocinhas indefesas, cavalos, diligências, saloons e paisagens áridas constitui um imaginário visualmente muito rico, um prato cheio para qualquer bom artista que resolva explorar alguma mídia estimulante aos olhos, categoria na qual se enquadra os quadrinhos. Assim, do mesmo modo em que o rótulo “bang-bang” abrange um universo amplo o suficiente para incluir no mesmo barco uma fitinha ingênua de matinê e um banho de sangue revisionista feito na década de 70, pode-se dizer que nas HQs o faroeste também passeia pelas mais díspares tendências artísticas e editoriais. Do popular Buffalo Bill ao barroco Cisco Kid de José Luis Salinas, passando pelo crepuscular Ken Parker da dupla Berardi/Milazzo e o “caviar-western” Blueberry de um Moebius ainda conhecido como Jean Giraud, os western-gibis já foram plataforma de dezenas de artistas maravilhosos, incluindo uma figura muito peculiar e infelizmente pouco conhecida no Brasil: Fred Harman.

As origens de Harman são seu grande diferencial em relação a quase todos os outros ilustradores que se dedicaram a criar histórias sobre o oeste, pois era descendente de pessoas que viveram naquela região e sentiram na pele algumas coisas que só conhecemos filtradas pelas lentes das câmeras; como se não fosse o suficiente, também cresceu por ali e depois de adulto viveu quase que exclusivamente em ranchos espalhados pelos EUA afora. A conseqüência natural de tudo isso é que a atmosfera daquele ambiente tornou-se uma parcela indissociável de sua personalidade. Em outras palavras: se o realismo minucioso era para muitos uma meta, para ele era apenas uma situação inevitável.

Os primeiros indícios de notoriedade chegaram para Harman em meados da década de 30, quando desenvolveu Bronc Peeler, uma espécie de embrião do que viria a ser Red Ryder, não apenas pela semelhança da temática e pelo estilo de desenho que começava a amadurecer, mas também pelo próprio caráter dos personagens, que seriam reciclados e reiventados para a sua obra mais célebre. O protagonista-título era um vaqueiro grosseirão que passava a maior parte do tempo na fronteira EUA/México, enfrentando contratempos e vivenciando situações insólitas ao lado de Little Beaver, um pequeno índio com quem tinha amizade. O que há de mais curioso nisso tudo é que a ambientação da série era contemporânea, o que justificava algumas cenas que volta e meia pintavam nas histórias, envolvendo carros ou aviões em pleno clima de faroeste. Por uma série de infortúnios, a tira não durou muito e logo Harman encontrava-se desprovido de qualquer atividade, até que uma casualidade fez com que o empresário Stephen Slesinger descobrisse a historieta e enxergasse suas qualidades. Corria 1938, e logo o autor estaria sendo convidado a desenvolver mais um western; naquele mesmo ano, estrearia Red Ryder.

O núcleo da nova tira era exatamente o mesmo: um cowboy rústico, fisicamente idêntico a Bronc Peeler, e seu companheiro Little Beaver. Porém, as diferenças chamavam mais atenção do que as semelhanças: agora, as aventuras eram ambientadas no século XIX, no mesmo trecho do Colorado em que Harman passou a infância e a adolescência. A inserção da trama num contexto histórico específico, bem como sua localização num território geográfico conhecido de cabo a rabo pelo artista, causaram uma previsível mudança de abordagem. Se no trabalho anterior os enredos eram um pouco mais fantasiosos e buscavam inspiração no cinema e nos livrinhos baratos, em Red Ryder a tonalidade era mais séria, documental, sóbria. Esta verossimilhança se extendeu também às características psicológicas do protagonista, que tornou-se mais pacato, sereno; os roteiros davam ao seu cotidiano de caubói a mesma importância e destaque fornecidos à ação e às intrigas, mesclando de forma magistral sua peculiar narrativa contemplativa com o ritmo dinâmico tão próprio dos faroestes. Texto e desenhos combinavam de maneira simbiótica: é muito difícil imaginar tais diálogos ilustrados de outro modo; conceber palavras diferentes para suas imagens é tarefa igualmente impossível. A vida no oeste não era fácil, e para traduzir isso com eficiência fazia-se necessário o uso de um vocabulário seco e de um traço áspero, rude, técnicas que Harman dominava como poucos.

Embora esquecida nos dias de hoje, esta obra alcançou enorme êxito nos primeiros anos de sua publicação. Além de ser impressa em numerosos jornais, foi base de um dos mais bem-sucedidos seriados da Republic Pictures (a mesma que introduziu Dick Tracy, Capitão Marvel e Capitão América nas matinês), arrebatou uma multidão de fãs e deu origem a uma infinidade de produtos licenciados, incluindo uma carabina para garotos, imitação dos rifles utilizados por caçadores adultos. O que a ascensão de Red Ryder teve de gloriosa, sua queda teve de melancólica: após o merecido auge, o desinteresse do público coincidiu com o cansaço e desleixo de Harman que, desmotivado, deixava seus quadrinhos cada vez mais sob cuidados de assistentes. Dos anos 50 em diante, as coisas apenas pioravam, e nos anos 60 a tira foi cancelada sem ninguém perceber. Harman nunca mais se dedicou aos quadrinhos e tornou-se um conceituado pintor, atividade que exerceu até 1982, quando morreu de causas naturais. A conclusão é óbvia: uma HQ tão boa merecia um destino melhor.



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