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Ascensor para o Cadafalso

Por Filipe Chamy

Ascensor para o cadafalso
Direção: Louis Malle
Ascenseur pour l’échafaud, França, 1958.

Não é desconhecido por ninguém o gritante fato de que Alfred Hitchcock foi um dos maiores influenciadores dos jovens e inconformados cineastas franceses que surgiram na época da nouvelle vague. De Truffaut a Resnais, passando por Eric Rohmer e Chabrol, o gorducho inglês foi um dos ídolos e mentores de praticamente todos os novos diretores do período. Talvez a mais pulsante homenagem ao mestre do suspense, em tom e vivacidade, seja justamente um dos primeiros trabalhos de destaque de Louis Malle, este Ascensor para o cadafalso. Seja na câmera fluida ou nos silêncios eloqüentes, nos planos-seqüência ou na trama de sórdida paixão, Malle, grande diretor, tece uma coerente colcha de referências ao mestre, conseguindo, além disso, tanto domínio da técnica como o próprio Hitchcock, o que garante o interesse e admiração do espectador.

(Alerta: spoilers no parágrafo seguinte.)

O roteiro brilha por uma série de coincidências assombrosamente bem amarradas e desenvolvidas. Julien Tavernier (Maurice Ronet) tem um caso com a bela Florence Carala (Jeanne Moreau, em esplendorosa presença). A moça é casada com o chefe do amante, e juntos tramam a morte do homem. No dia planejado, Julien mata o superior e arranja para que tudo configure um aparente suicídio. Mas, no meio da execução do crime, antes que retirasse a corda que o levou à cena fatídica, um telefone toca em sua sala (— e este é um inteligentíssimo MacGuffin de Malle, outra lição bem aprendida com Hitchcock; o que afinal foi dito no telefonema? Não importa. —), e o jovem, acuado e nervoso, deve atender, para não despertar suspeitas, pois deveria estar em sua sala no horário. Após desligar, considerando pronto o serviço, desce e liga seu carro para ir ao encontro de Florence, com quem havia marcado. Mas avista acima a corda pendurada ainda, uma prova altamente incriminadora. Sobe para retirá-la, mas, na afobação, esquece a chave no contato. Uma florista e seu amigo resolvem dar umas voltas com o carro. Julien não pode fazer nada, pois, enquanto subia de elevador para o andar esperado, ficou preso por conta do desligamento da luz por parte do vigia do edifício, que havia ido embora naquele instante, sem saber dessa intriga paralela. Florence espera ansiosa no local de encontro com seu amado, e vê o carro passar por ela, com uma garota estranha ao lado. Reconhece a florista, mas nem imagina que não é Julien que está guiando. Vaga desiludida pelas ruas, com mil tormentos na cabeça. E os dois inconseqüentes no carro envolvem-se em problemas criminosos, o que piora a situação de Julien, ainda preso no elevador: seu álibi já não existe, ele será incriminado por algum crime, por conta desses acasos infelizes.

Tudo conspira na direção errada, tudo dá voltas e voltas até chegar à conclusão inesperada, nada sai como pretendido, todos se inquietam, se preocupam. É uma ciranda de confusões, essa desventura que parece difícil mas na verdade é algo tremendamente simples e inteligível. Mas a complexidade estava justamente nesses pequenos momentos, que fazem o cinema grande. Hitchcock sabia e passou isso a Malle, que, auxiliado pela magnífica trilha de Miles Davis, constrói uma história onde todos são culpados e os verdadeiros e mais profundos amores são os íntimos e secretos. Um drama de consciência, um ciúme esporádico, uma surpresa insuspeita mas coesa, os personagens deste filme se deparam com esses empecilhos e sobrevivem fortes na tensão e na agonia de quem acompanha suas trajetórias — outra herança de Hitchcock, esse velho manipulador.

Ascensor para o cadafalso não é um filme moralista, se assim parece. É uma cínica passagem pelo lado negro do amor, com a nudez de suas obsessões e fraquezas. É um filme hitchcockiano melhor que muitos de Alfred Hitchcock, e é também uma obra-prima.



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