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Dossiê Galileu Garcia

VERA CRUZ POR GALILEU GARCIA

Por Maria Rita Galvão
Seleção e transcrição: Matheus Trunk

Mais do que mero estágio de experiência, a Vera Cruz foi uma escola completa, pra mim e mais umas...sei lá quantas, 300 pessoas, que aprenderam tudo lá. Inclusive para os diretores estrangeiros. Eu era assistente de direção e- pra você ter uma idéia do que eram os diretores- a primeira coisa que eu fazia era ir numa loja de livros italianos e comprar o Tratado de Realização Cinematográfica do Kulechov pra eles, invariavelmente os caras começavam por aí, era a grande cartilha cinematográfica. De modo que o negócio não é eu te falar sobre a minha experiência na Vera Cruz, foi a experiência de todo mundo, um aprendizado total. Treinaram-se diretores, montadores, assistentes de fotografia, de direção, de produção, cenógrafos, todo um curso completo de como fazer cinema. A vantagem que teve a Vera Cruz pra todo mundo, e para o cinema brasileiro em geral, foi a de ter disciplinado o ensino, com grandes técnicos como professores. Era um estudo metódico, basicamente orientado pelos ingleses. E a Inglaterra sempre foi um país muito disciplinado e organizado, profissionalmente. O estilo de equipe e seu funcionamento era baseado no sistema inglês: disciplina, rigor, cada um com a sua função e cada um cumprindo muito bem a sua função (...). Antes da Vera Cruz, aqui no Brasil o pessoal se formava por geração espontânea, você tinha um cinema em que as pessoas faziam de tudo, sem especialização e sem conhecimentos específicos: o cara montava, iluminava, dirigia a perua, fazia produção, escrevia o roteiro, acabava não fazendo nada bem mesmo, fazia de tudo um pouco. Já o cinema da Vera Cruz era um cinema totalmente setorizado, a especialização possibilitava o aperfeiçoamento. (...)

Os ingleses levaram um grande susto com a rapidez dos brasileiros. Normalmente, na Inglaterra, o primeiro assistente de câmara levava pelo menos uns oito anos pra chegar lá, começando de baixo, subindo aos poucos na hierarquia- na iluminação, a hierarquia é o diretor de fotografia iluminando, e abaixo dele um operador e mais três assistentes de câmara. Aqui, de um filme pra outro a gente subia de posto, e deste modo os ingleses formaram gente muito bacana como os ex-assistente de câmara, fotógrafos da qualidade de um Geraldinho Gabriel ou do Marcelo Primavera, por exemplo. Era assim com os assistente de tudo. Eu comecei como terceiro assistente em Sai da Frente e em seguida fui primeiro assistente em O Cangaceiro. (...)

A grande lacuna na nossa formação foi a ausência de aprendizado na produção. Não havia um produtor experiente e especializado para se responsabilizar pelas coisas e nos ensinar. Então não se formou na Vera Cruz um estilo de produção, e fez falta. Tudo funcionava- no caso dos produtores- numa base de clã: o clã dos Zampari. E como ele era italiano, dava preferência aos italianos para os cargos importantes, e o cargo de produtor é fundamental- controla o dinheiro. Ora, o italiano na Vera Cruz era o pior funcionário, o pior técnico porque era ele que tinha menos know-how. Então havia aquelas brigas incríveis entre os grupos (...). Todos os filmes eram realmente bem cuidados, de grande produção, perfeitos. O grande problema é que, para chegar a isso, como não havia know-how de produção, se gastaram os tubos, isto tudo custava quatro, cinco, até dez vezes mais do que deveria custar (...). Os filmes da Vera Cruz já partiam de orçamentos altíssimos, que mesmo assim em geral estouravam. O custo operacional da companhia era muito grande, e a contabilidade, rateava os custos gerais atribuindo uma parte a cada um dos filmes em produção no momento. Isto somado ao custo direto do filme, que já era caríssimo, dava um absurdo inacreditável. É o caso de O Cangaceiro, que foi inicialmente orçado em 5 milhões- eu mesmo fiz o orçamento- e ficou oficialmente em 9 milhões. Como não havia know-how de produção, então as coisas que se pretendia fazer muito bem feitas demoravam seis meses, raros foram os feitos em dois meses. E como Zampari era um homem quase visionário, o que ele se dispunha a fazer ele fazia mesmo. Mas por vezes de um modo totalmente doido.

(...) No Tico-Tico, por exemplo. Começou a ser filmado por um iluminador que se chamava Beltran. Esse iluminador tinha um contrato de trabalho de três meses. Trabalhou os três meses, e fez um tipo de iluminação que era o seu estilo. Mas o filme não acabou em três meses, só que terminado o contrato, o Beltran tinha compromissos e precisou ir embora pra cumprir outro contrato. Então entrou o Chick Fowle para a equipe. Ora, o Chick tinha um outro estilo completamente diferente do Beltran- que era um iluminador argentino, tinha transado muito no cinema americano, era uma fotografia muito mais direta, despojada, enquanto que a de Chick Fowle era elaboradíssima, ele não sabia trabalhar de outro jeito. Então o que aconteceu ? Se estudou bem o material- as coisas do Beltran e as do Chick-, as pessoas acharam que havia um choque muito grande de estilos e por causa disso se jogou fora- simplesmente se jogou fora- três meses de material filmado, e começou tudo outra vez. Considerando a época, a situação, o baixíssimo rendimento interno, a impossibilidade de conseguir alcançar o mercado internacional, isto foi realmente um grande luxo. E essa produção dos três meses incluía um mês de filmagem de um circo completo que foi instalado lá em São Bernardo. E a cada filmagem se utilizavam normalmente 300 figurantes. Pois foi tudo refeito. (...) Tico-Tico demorou quase um ano em produção. (...)

O Cangaceiro demorou nove meses em produção, nove meses de filmagem- o tempo exato de uma gestação de um ser perfeito, dizia o Lima Barreto. Isto por uma série de motivos- a demora- mas principalmente por deficiência de produção. Era o primeiro filme épico que se fazia no Brasil, um tipo de produção complexa e cara, de grande montagem, ninguém tinha prática dessas coisas. E pra você ver o nível dos produtores, vou te contar uma verdadeira piada; um deles, dando uma entrevista para A Gazeta, disse assim- juro, eu estava do lado dele: “Olha, você pode escrever aí que este é o primeiro filme pré-histórico que se faz no Brasil !”. Daí corrigiram depressa, “não pré-histórico, é épico”. Era gente assim que tinha na produção da Vera Cruz,

(...) O Lima Barreto tinha fama de ser louco, então era bem cuidado, tinha gente o tempo todo em cima dele policiando o Lima. Havia muita incompatibilidade entre o jeito dele e o procedimento que era norma da Vera Cruz. O Lima tinha um jeito muito aberto, ele tinha vindo do nosso documentário, tinha inventado mil macetes...sei lá, coisas como pegar um cabo de vassoura e se apoiar nele como se fosse uma espécie de monopé para a câmara, pra fazer reportagens e os ingleses que vinham com aquele estrutrualismos (sic) deles, aquele ritual todo, tudo muito certinho, normas pra tudo, dentro da hierarquia, não podiam admitir aquilo, coisas como pau de vassoura...Então havia muita briga. (...) Tinha também o Haffenrichter, que era um homem extremamente competente, mas muito seco. Ele tinha aquela visão dele do cinema e não entendia que a gente tava procurando fazer coisa diferente, do dar um cunho nacional, uma feição nossa, brasileira, à produção- coisa que na Vera Cruz não existia. (...) Veja o Caiçara, por exemplo, embora se passasse no Brasil, não era o que a gente esperava: um cinema brasileiro que penetrasse nos problemas. E como a gente partia do princípio de que, quanto mais nacional fosse o filme, mais internacional ele seria, mais aceito no mundo todo, então...E isso estava certo, ficou provado pelo Cangaceiro e por Sinhá Moça.

Houve muita briga na montagem de O Cangaceiro. O Lima Barreto brigou mesmo, no que ele fez muito bem. O diretor tem que brigar por aquilo em que ele acredita. O Haffenrichter, por ser alemão e não ter jamais aprendido nada da nossa língua, tinha uma série de coisas que ele não entendia mesmo, ou então achava que não tinha valor nenhum. Então ele cortava, simplesmente. E aí vinham as grandes brigas, tinham que fazer reuniões de diretoria, toda uma série de explicações...E o Haffenrichter fez isso com muitos filmes, não foi só O Cangaceiro. Com a inexperiência dos diretores, eles não tinham como se impor. (...) Gente que tinha que começar com os outros dando pra eles lerem a cartilha de Kulechov, então isso retardava demais a produção, aumentava demais os custos. Eles faziam coisas erradas mesmo, então tinha que refazer, tudo muito custoso, difícil, aquela lentidão...

(...) Os americanos ganhavam com o deságio na exportação de lucros. As entradas de cinema eram tabeladas, e a Vera Cruz lutava pela liberação do tabelamento de ingressos. Mas naquela ocasião- Governo do Getúlio, aquela carestia muito grande, o tempo do pão e do circo, não é ?- não podia aumentar as entradas. O cinema era ponto de honra, um grande atrativo popular, talvez mais importante e mais popular que o futebol, e o Governo simplesmente se negava a aumentar as entradas. Isto contribuiu muito pra levar a Vera Cruz pro buraco. Mas havia também muita desorganização, e uma total falta de controle da produção: muito roubo, muito desvio de material, um negócio terrível. Na época da construção dos estúdios, muita casa na vizinhança da Vera Cruz de altos funcionários do clã italiano foi construída com material inteirinho da Vera Cruz- disso a gente sabia, e a gente como brasileiro fazia um grande movimento contra isso, porque havia realmente grandes desvios. E grandes bacanais, além dos almoços de 200 talheres a toda hora. Era um trabalho de promoção que a Vera Cruz fazia, mas que realmente não tinha retorno nenhum.

Tinha muito roubo, era vergonhoso. Em São Paulo- você pode ter certeza—teve pelo menos uns 20 filmes, que não tinham nada a ver com a Vera Cruz, rodado inteirinhos com negativos da Vera Cruz. Havia transas incríveis com venda de negativos. Então por aí você vê, não havia realmente nenhum controle da parte de produção. Como a coisa funcionava na base do clã, as pessoas eram intocáveis. Mas havia um grupo de brasileiros idealistas lá achando que a Vera Cruz era uma coisa realmente importante, então a gente tentava brigar lá dentro, e lutar por aquilo- mas não tinha nenhuma condição.

(...) O Cangaceiro custou oficialmente 9 milhões- quase o dobre do orçamento de cinco-, pelo nosso levantamento de custos. Mas depois, com o custo indireto, foi a quase 15 mil contos. Foi vendido para a Columbia por 21 mil contos e outras dívidas. E a Columbia teve um lucro espetacular com o filme. Quando O Cangaceiro foi vendido, encerrou-se a vida da Vera Cruz, ela não tinha condições de subsistir depois disso.

(...) Zampari era realmente um idealista, e tinha grande amor por aquilo que ele tinha construído. Ele dizia sempre: “isto aqui eu fiz não foi pra mim, não tenho herdeiros”, e brigava com os eletricistas, com todo mundo, dizendo “um dia eu morro e isto vai ficar pra vocês, tratem bem das coisas !”. Realmente ele morreu, e durante todos estes anos teve gente filmando, gravando, montando com equipamento da Vera Cruz.

*Publicado originalmente em GALVÃO, Maria Rita. Burguesia e Cinema: O Caso Vera Cruz. Editora Civilização Brasileira, Embrafilme, 1981 entre as páginas 138 e 142.



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