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Jubileu de ouro de Um corpo que cai (1958-2008)

Por Filipe Chamy

Alfred Hitchcock é o mais conhecido, citado e possivelmente estudado e analisado dos cineastas que fizeram filmes no período dito clássico do cinema americano. Não é pouco como fenômeno histórico e de vasta importância por si só, mas a fama de Hitchcock é justificada. Autor genial, legou aos cinéfilos inúmeras obras-primas irretocáveis. Um corpo que cai, a mais comumente apontada pelos críticos como sendo sua criação máxima, é uma delas.

A história de John “Scottie” Ferguson, um ex-detetive com séria fobia de altura (ele não pôde evitar a queda e morte de um colega numa perseguição da qual participou), é um pano de fundo excepcional para um dos filmes em que o mestre do suspense mais se preocupa em expor suas obsessões maravilhosamente interessantes e profundas, sob a roupagem de um suspense comum e ainda assim intrigante. Um corpo que cai possui uma psicologia riquíssima, insuspeita em um filme de tais proporções, mas que é mais avassaladora e marcante que a de vários filmes que supostamente lidam diretamente com o assunto, como inclusive um dos trabalhos anteriores de Hitchcock, Quando fala o coração. Não apenas os percalços de uma relação amorosa estão presentes, mas toda a tortura da suspeita, do amor-próprio ferido, da dúvida, do ciúme, da raiva, da frustração, do vício, da mentira, da traição e do caráter. Os personagens deste filme são como bonecos tristes, que se movimentam dentro de padrões inescapáveis. É um filme denso e sombrio, espécie de releitura do noir, repleto de insinuações eróticas e ganchos complexos, mais ainda por aparentarem simplicidade.

Apesar de nunca se esforçar no sentido de tirar grandes atuações de seus atores, Hitchcock costumava se dar muito bem nesse quesito, e aqui James Stewart tem um de seus maiores momentos, uma interpretação verdadeiramente assombrosa, incorporação fantasmagórica e desprendida, absurdamente ambiciosa mas sincera. Kim Novak está inexpressiva como de costume, e talvez isso seja essencial à moça (ou moças?) a que dá vida. O que ocorre é que o marido da mulher, ex-colega de Ferguson, o contrata meio que clandestinamente para averiguar o que exatamente se passa com sua esposa, que vem tendo anseios suicidas e inexplicáveis. Mas a misteriosa fêmea lhe some nas mãos (quase literalmente) e, transtornado, Scottie tenta reviver sua imagem em algo que possui mais vida. Mas que talvez seja uma aparição mais morta que a anterior. Há uma confusão de sentidos, tanto na imagem como na trama, e Hitchcock brinca muito habilmente com essas percepções distorcidas, conhecendo o pensamento do espectador e sempre ocasionando choques muito fortes e muito merecidos.

Outro fator que faz este filme impressionar e encantar há cinco décadas é o seu lado técnico, brilhante e inventivo. Tomadas ousadas (travelling back com zoom in!), movimentos de câmera criativos, enquadramentos perfeitos. E a música de Bernard Herrmann é outra característica da qual não se pode negar os merecidíssimos créditos: assustadora e terna ao mesmo tempo, reconhecível sob qualquer circunstância, o casamento de sons com a abertura espetacular do filme (criada por Saul Bass em mais um instante primoroso) é uma coisa indescritível e belíssima, majestosa, que dá o tom da devida majestosidade que se abrirá ante os olhos de quem cair (sem trocadilho) na jornada de pavor e amor (sinônimos) que Hitchcock descortina. Aqui sim, uma legítima Cortina rasgada.

Um filme de efeitos, marcado por uma gigante compreensão das leis do cinema, do espetáculo e do público. O frescor deste filme imortal é tão gritante quanto sua qualidade.



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