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RUÍDO

GEORGE HARRISON - ALL THINGS MUST PASS

Por Laís Clemente

Mesmo as coisas boas têm de acabar. Essa é a mensagem que a música “All things must pass”, contida no álbum homônimo de George Harrison tenta passar. Com os Bealtes, o processo não foi diferente. Poucos meses após o rompimento oficial dos “fab four”, um de seus integrantes, George, colocou sua guitarra e algumas composições debaixo do braço e entrou em estúdio de gravação.

Entre essas composições estava a canção supracitada. Apesar de feita num período desarmônico entre os rapazes de Liverpool, fica difícil acreditar que ela aborde única e exclusivamente esse tema. Principalmente se conhecermos as inclinações doutrinárias de George e deste álbum como um todo. A canção tem muito menos rancor e mais celebração da vida do que se possa achar em uma audição mais desatenta. Apesar de soar melancólica, sua letra é encorajadora e aborda a não durabilidade dos fatos da vida comparando-a com as diferentes fases de um dia: “a aurora não dura a manhã inteira” assim como eventos negativos (no caso, uma tempestade) não duram para sempre. “A luz do sol é boa quando chega na hora certa”. Tudo a seu tempo. Quer mais filosofia oriental que isso?

E por falar em filosofia oriental, ela parece estar por toda parte. Há canções em que ela nem mesmo é citada, mas seus valores estão presentes, como em “Isn’t it a pitty” ou “Art of dying”.

Em “My sweet Lord”, fica claro que o “Senhor” em questão está bem longe de ser católico. A letra em si é simples - como qualquer boa ode religiosa, deixa a emoção não por conta das palavras, mas da interpretação do vocalista -, e diz somente o fundamental: Deus é o cara e Harrison não vê a hora de encontrá-lo. Mas lá pelo meio da canção, quando surge um coro entoando o mantra que louva a trindade dos Deuses Brahma, Vishnu e Shiva além do conhecido mantra Hare Krishna, pode-se ver a real crença de George.

Deixando a adoração de lado, não precisa ser Hare Krishna para reconhecer que se trata de uma bela composição. Já vale a pena só pela gostosa batida de violão e pela harmonia ascendente, que deixa no ouvinte a impressão de estar cada vez mais próximo Dele.

É realmente uma pena que se trate de um plágio. Isso mesmo. Em 1963 o grupo vocal feminino The Chiffons fazia grande sucesso com “He’s so fine”, uma música muito parecida com “My sweet Lord”. As melodias – pelo menos ao início da canção – são idênticas, e a adoração da letra é tão fervorosa quanto, só que a um belo senhor de carne e osso.

Harrison foi processado, e as semelhanças foram suficientes para que a justiça considerasse “My sweet Lord” infração à lei de direito autoral. No entanto, elas não eram tantas a ponto de fazer crer que Harrison tivesse agido de má fé. Seis anos após o lançamento do álbum, George foi condenado por “plágio inconsciente”, tendo de pagar uma bela quantia em dinheiro à Bright Tunes Music, empresa que possuía os direitos da canção.

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Agora voltemos ao álbum. Se você acredita que o disco é bom, não credite sua qualidade somente a Harrison. Seu produtor, Phill Spector, teve uma significante parcela de culpa. Seus arranjos, em sua maioria não intrusivos, dão o devido espaço para que as composições de Harrison brilhem. Em “What is Life” por exemplo, o arranjo de cordas só fica evidente ao final da música, deixando as dez notas de um atraente riff de guitarra terem sua devida atenção. Há também casos em que sua produção está voltada para fazer com que as canções brilhem, como no refrão arrepiante de “Let it down”. Nele pode-se ouvir o efeito pelo qual Phill é mais lembrado, o chamado efeito “parede de som”.
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Mesmo sem a sofisticação da parede de som, duas homenagens musicais não podem deixar de ser mencionadas nessa coluna: a primeira delas, de tão simples, é prestada quase que exclusivamente à base de violão e gaita. As homenageadas? As “Apple Scruffs”, adolescentes que ficavam na porta do estúdio da Apple, ainda na época dos Beatles. Essas meninas não queriam nada de seus ídolos. Simplesmente ficavam por lá, mesmo “na neblina e na chuva” (como diz a letra da música), distribuindo flores para quem passasse. O que elas queriam era ficar próximas de onde a magia era produzida. Tanta dedicação não passou despercebida. Enquanto muitos acreditavam que elas fossem moradoras de rua, Harrison canta ter certeza de que “há muito que eles não sabem sobre as Apple Scruffs”.

A segunda, “Ballad Of Sir Frankie Crisp (Let It Roll)”, é um curioso tributo a um lugar tão especial que virou capa do disco. O jardim da casa em que George aparece sentado, ao lado de vários gnomos, faz parte da mansão construída no século XIX por Sir Francis Crisp. Nos anos 60, Harrison a comprou e ficou tão fascinado pela propriedade que viveu lá até o fim de seus dias. Tamanho fascínio não é de se estranhar: o lugar possui peculiaridades como um lago subterrâneo interligado por diversas cavernas e uma porção de placas com frases enigmáticas de Sir Francis espalhadas pela casa e pelo jardim. A letra da canção é um tour por Friar Park, como a residência foi batizada, nas palavras de dois de seus proprietários, Harrison e Sir Francis, através de suas placas.
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Essas são algumas das 23 canções que fazem parte do álbum. Com tantas faixas fica difícil falar sobre cada uma delas. Mas alguns destaques não podem deixar de ser ao menos citados: “I dig love”, “Wah-wah”, e “Beware of darkness” valem uma atenção especial.

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No começo de 2001, em comemoração aos 30 anos do lançamento de “All things must pass”, o álbum foi relançado, dessa vez com 28 faixas, tendo como extras novas versões, entre elas “My sweet lord”, “Let it down”, e o instrumental de “What is life”. Se algum dia tiver de escolher entre as duas, não se engane pela bela capa da edição de aniversário, prefira a original. As versões adicionadas tornam o álbum cansativo e pouco acrescentam às composições.

Dez meses depois do relançamento de “tudo deve passar” foi a vez de Harrison dar adeus a esse mundo. Lutando contra um câncer desde 1997, foi operado três vezes para a retirada do tumor em diferentes partes de seu corpo. Em novembro de 2001 a doença havia atingido seu cérebro.

Uma grande perda. Mas o próprio George em “All things...”, na faixa “Art of dying” traz o conforto para seus fãs: ”virá um tempo em que a maior parte de nós voltará para cá. Trazidos pelo desejo de nos tornarmos uma entidade perfeita. (...) Você crê em mim?”



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