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VERTIGO POR HITCHCOCK

Por Peter Bogdanovich
Seleção e transcrição: Matheus Trunk

Neste especial sobre o aniversário de 50 anos de um grande clássico do cinema mundial, Zingu! publica parte da entrevista realizada por Peter Bogdanovich com Alfred Hitchcock para o livro “Afinal, Quem Faz os Filmes”. Selecionamos aqui todo o trecho em que o diretor inglês fala sobre “Vertigo”.

PB- Vertigo (Um corpo que cai) (1958) é na verdade, um filme sobre o conflito entre a ilusão e a realidade.


AH- Ah, sim. Fiquei muito intrigado com a situação básica, porque incluía tantas analogias sexuais. Cinematicamente, os esforços de Stewart em recriar a mulher eram exatamente os mesmos que ele desempenharia caso estivesse tentando despi-la e não vesti-la. Ele não conseguia tirar a outra mulher da cabeça. No livro, Taylor, que trabalhou no roteiro comigo, chocou-se quando lhe disse: “Sam, o momento de dizer a verdade é quando Stewart se depara com a morena”. Ele perguntou: “Santo Deus por quê ?”. E eu respondi que, se não fizéssemos isso, como transcorreria o resto da história até que revelássemos a verdade? Um homem apanha uma morena e vê nela a semelhança com a outra mulher. Vamos imaginar isso na mente do nosso público: “Então agora você tem uma morena e vai transformá-la”. Que história estamos contando com isso ? Um homem corteja uma mulher e, bem no final, descobre que é a mesma. Talvez ele a mate, ou seja lá o que for. E cá estamos de volta à velha situação: surpresa ou suspense. E chegamos à nossa velha analogia da bomba. Você e eu estamos aqui sentados, conversando, e há uma bomba na sala. Estamos conduzindo uma conversa bastante inócua, sobre coisa alguma. Chatice. Sem nenhum significado. De repente, bum ! A bomba exploda e o público se choca- durante quinze segundos. Vamos mudar. Fazemos a mesma cena, escondemos a bomba, mostramos que a bomba está situada aqli, mostramos que deverá explodir à uma hora- e agora são quinze para a uma, dez para a uma-, mostramos um relógio na parede, voltamos à cena. Agora nossa conversa se torna muito vital, devido ao nonsense. “Olhe debaixo da mesa ! Idiota!”. Agora o público trabalha durante dez minutos em vez de ter uma surpresa durante quinze segundos.

Voltemos agora a Vertigo. Se escondemos a verdade do público, as pessoas irão especular. Obterão uma impressão muito difusa do que está acontecendo. “Ora, Sam”, disse eu, “uma das coisas fatais no suspense é trabalhar com uma mente confusa. Nessa condição o público não se emociona. Deve-se esclarecer, esclarecer, esclarecer. Não se pode deixa-los pensar “não sei quem é essa mulher; quem é ela ?”. Assim, eu disse: “Vamos pegar o touro a unha e mostrar tudo em flashback, bang !, naquele momento- vamos mostrar que é a mesma mulher”. Então, quando Stewart a procura no hotel, o público pensa: Ele não sabe de nada. Em segundo lugar, não havia motivo para a resistência da garota no início do filme. Agora existe um motivo- ela não quer ser descoberta. É por isso que não quer se vestir de cinza, não quer tingir os cabelos de loiro- porque no instante que fizer isso, se entregará. Dessa forma, agora existem valores adicionais trabalhando a nosso favor. Jogamos com o fetiche dele de recriar a mulher morta, e ele ficar obcecado com o orgulho de transformá-la. Até mesmo quando ela volta do cabeleireiro, os cabelos loiros estão escorridos. E ele diz: “Levante os cabelos”. Ela responde: “Não”. Ele diz: “Por favor”. E agora, o que ele está dizendo a ela ? “Você tirou tudo, menos a calcinha e o sutiã- por favor tire-os”. Ela responde: “Tudo bem”. Ela entra no banheiro. Ele espera que dália saia uma mulher nua, pronta para ir para a cama com ele. A cena é isso.

Bem, no instante em que ela sai, o que ele vê é um fantasma- ele vê a outra mulher. É por isso que filmei em verde. Acontece que, na parte inicial- que reside puramente na cabeça de Stewart-, quando ele observa aquela garota que vai de um lugar a outro, enquanto ela na verdade estava fingindo, comportando-se como se fosse uma mulher do passado-, para obter uma atmosfera sutilmente onírica apesar do sol a pino, realizei a filmagem com um filtro de neblina, alcançando assim um efeito esverdeado- neblina no sol. É por isso que, quando ela sai do banheiro, mostrei-a sob luz verde. Foi também por isso que escolhei o Hotel Empire na rua Post- porque fora de janela havia um anúncio em néon. Eu queria filmar o tempo todo aquela luz verde piscante. Assim, quando viemos a precisar dela, ela estava lá. Introduzi o filtro de neblina, e quando ela se aproximou, por um instante ele viu uma imagem do passado. Aí, quando o rosto dela chegou mais perto, retirei o efeito, e ela retornou à realidade. Ele voltara de entre os mortos, e ele sentiu aquilo, e soube, e provavelmente ficou estupefato- até que viu a medalhinha e percebeu que tinha sido enganado.

PB- Como foi que você realizou aquela tomada em que Stewart a beija no quarto do hotel e se recorda do passado, no estábulo ?

AH- O set era montado em círculo- o estábulo e o quarto de hotel-, um seu de 360 graus. Colocamos a câmera no meio e a giramos. Depois, projetamos na tela plana Coloquei-os numa plataforma giratória e só a giramos em frente à tela e filmamos. O motivo para isso foi que eu não queria introduzir flashbacks de novo, mas queria que ele sentisse que tinha retornado ao estábulo, e queria mostrar isso visualmente.

PB- Por que você situou a história em San Francisco ?

AH- O fator-chave em toda a história era a torre da igreja, ligada ao assassinato. E a igreja precisava despertar algum interesse, deveria ser um lugar visitado, ao mesmo tempo que deveria se situar num lugar remoto, de modo a permitir que o assassinato fosse cometido confortavelmente e, digamos, sem interrupções. Mas nos Estados Unidos não existem igrejas nas pequenas cidades, como existem na França- originalmente, a história era um romance francês chamado From among the dead-, e sim antigas missões. Eu sabia da existência de San Juan Batista, perto de San Francisco, e em certo período a igreja possuiu uma pequena torre, embora hoje não exista mais. Por isso, filmamos lá e depois montamos o resto contra esse fundo.

Há um detalhe muito interessante a respeito daquela casa em que ele enxerga a garota na janela. A mulher que toca a casa- o papel de Ellen Corby- foi copiada de forma exata de uma pessoa real. Ela tinha alguns inquilinos e costumava se instalar em casas que, daí a um ano, seriam derrubadas. Quando o aviso da demolição vencia, ela se mudava com os seus inquilinos. Desse modo, ela conseguia baratear o aluguel e outras coisas. Um expediente interessante esse de mudar de lugar.

PB- Na verdade, é a tragédia de um homem que se apaixona por uma ilusão, não é ? E perde duas vezes. O fato de Kim Novak ser uma garota bastante comum torna ainda mais dolorido o fato de ele ficar obcecado pela ilusão.

AH- Certamente.

PB- No final há um momento muito tocante, em que ele diz: “Eu a amei tanto, Madeleine”, pouco antes de ela morrer. Creio que foi um dos melhores desempenhos de Stewart.

AH- Ah, sim.

PB- De modo geral, qual é a sua técnica em lidar com os atores ?

AH- Eu não os dirijo. Falo com eles e explico o que a cena representa, qual é o objetivo, por que eles estão fazendo certas coisas- porque eles se ligam ao argumento, e não à cena. A cena se relaciona com a história, e aquele momento faz isto ou aquilo pela história.

Como tentei explicar a Kim Novak em Vertigo, “você está mostrando um monte de emoções no rosto. Não quero nada disso. Quero que o seu rosto mostre apenas aquilo que queremos contar ao público- aquilo em que você está pensando”. Disse-lhe: “Deixe-me explicar. Se você mostrar muitas emoções redundantes no rosto, é como pegar uma folha de papel e escrever em toda ela- encher o papel com muitas escritas. Mas você quer escrever uma frase para que alguém leia. Se há muitas coisas escritas, o público não consegue ler. É muito mais fácil ler se a olha de papel estiver vazia. É assim que o rosto deve estar quando precisarmos mostrar uma expressão”.



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