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Violência Gratuita

Por Filipe Chamy

Violência gratuita
Direção: Michael Haneke
Funny Games, Áustria, 1997.

Acusado de fascismo pelo diretor Carlos Reichenbach — que saiu aos gritos no meio da sessão de cinema —, este intenso filme de Michael Haneke é uma experiência tão forte quanto incômoda. Um dos mestres do cinema na atualidade, Haneke é um grande construtor de cinema de imagens e com “conteúdo” extremamente profundo, sob simples aparência de exercício de estilo. Para quem concorda com Reichenbach (que não ficou até o final do filme), o filme pode parecer sádico e abrupto, numa primeira análise. Mas, como toda obra-prima polêmica, necessita e pede revisão. Ainda assim, não é impossível gostar do filme numa primeira vista. É um primoroso trabalho cinematográfico, tolice procurar política vã em uma obra deste quilate.

É a difícil história de um casal (Susanne Lothar e Ulrich Mühe, ambos excepcionais atores) que se vê as voltas com problemas inescapáveis e nascidos de ninharias indecifráveis. Pais de um saudável garoto e possuidores de uma vida confortável e feliz, eles nunca esperariam encontrar um catalisador de mudanças tão inesperado e implacável. Certo dia, um tal Peter (Frank Giering), que diz ser amigo de amigos deles, aparece na casa dos dois em busca de quatro simples ovos. A mulher, Anna, o recebe e de boa vontade o ajuda. O sujeito, ao quebrar os ovos que lhe foram dados, pede outros. Conseguindo-os, inventa um atrito com o cão da casa para se livrar da nova leva. A mulher já começa a perceber algo errado, ainda mais porque Peter “acidentalmente” derrubou o telefone da casa numa pia cheia d’água, o que mais tarde se revelará um gravíssimo empecilho comunicativo (na hora de mais precisão). Eis que seu marido, ausente por um motivo qualquer, retorna ao lar e se depara com o desconhecido e seu amigo (Paul, feito pelo intimidador Arno Frisch). Sem mais nem menos, uma estranha tensão cobre de nervoso os habitantes da casa, e os obscuros visitantes adotam comportamentos que desmascaram suas primitivas personas. Uma onda de violência e terror psicológico passa a dominar o então bucólico e familiar filme, uma agonia de métodos de tortura exemplarmente filmados e narrados.

No incrível domínio do plano-seqüência, na maestria da composição perfeita técnica e plasticamente, Haneke nos apresenta uma película densa e cheia de significados, cuja imagem aponta o princípio dos pensamentos desencadeados pelas ações e comportamentos ali retratados. O visual como ponto de partida, sugestivo, nunca definitivo. A agonia de ver-se imobilizado ante o medo, de ter seus familiares subjugados, de se saber impotente, tudo isso é pintado com tintas marcantes. Pode questionar a ética (?!) do cinema do alemão, mas nunca sua qualidade. A competência é avassaladora, um entre tantos nomes que desnorteiam os argumentos dos saudosistas — para quem o cinema aparentemente morreu.

A tristeza que cada segundo da fita passa é talvez uma das maiores provas de que Haneke não é um entusiasta da violência, mas sim um crítico feroz. Homem sábio, não disfarça impactos com discursos politicamente corretos, mas tenta mostrar a violência que nasce do homem e corrompe sua existência, a covardia que procura brechas. Não é algo simples de se desenvolver, é preciso talento e ousadia, e por isso é também necessário trajar uma espécie de consciência à prova de balas, que as críticas serão muitas e inevitáveis.

Em tempos que a mídia e a sociedade banalizaram a violência e o espetáculo de crimes é menos ultrajante que a política, um Michael Haneke sempre vai bem, mostrando que ainda desconhecemos limites para a maldade, a dor, a perversão, e que tudo isso ainda pode chocar quem desconhece tais parâmetros do terror. Porque o terror não é necessariamente algo explícito, mas algo que se insinua e é amedrontador. E sóbrio.



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