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Clássicos de Prestígio

Por Gabriel Carneiro

A Carruagem Fantasma
Direção: Victor Sjöström
Körkarlen, Suécia, 1921.

Antes de Ingmar Bergman anunciar ao mundo, no começo da década de 50, que se fazia cinema de qualidade na gélida Suécia, um cineasta – hoje conhecido (quase) apenas pelos cinéfilos – mostrou a arte de filmar uma realidade sofrida e melancólica no ártico. Victor Sjöström iniciou sua carreira cinematográfica na década de 10, e a prolongou até a década de 50. Parara de filmar, porém, em 1937. Sua permanência se deu como ator. Não foi um desconhecido, apenas, talvez, não suficientemente reconhecido em sua época. Em 1923, foi trabalhar nos EUA, onde ficou até 1930, tendo filmado nove filmes. Foi lá que fez seu filme mais conceituado, Vento e Areia, de 1928.

Porém, excetuando-se esse, foi na terra nativa que melhor se embrenhou na descoberta do novo, dentro de um lugar tão atípico e tão “morto” como eram os países nórdicos. Parte das principais características de Bergman e outros cineastas escandinavos é herança direta desse pioneiro. Sjöström era um bucólico, que sabia olhar a natureza ao seu redor. Em seus filmes, a força natural é igual, senão maior, que a força humana. Há uma ligação espiritual entre a paisagem, muitas vezes branca, e o vigor do personagem principal. Não é a toa que outra grande característica seja uma decorrência disso: a leitura da morte.

A Carruagem Fantasma é isso, é uma leitura da morte a partir dos dias finais – e mais frios – do ano, num universo tomado de vegetação rasteira e pobre, de pessoas simplórias, em casas pequenas, mas de bondade incrível. Alternam-se duas histórias inicialmente, a de uma jovem do Exército da Salvação que está preste a morrer, e a de um bêbado.

A garota sofre muito, e percebe que está à beira da morte. Pede então que tragam David Holm, o bêbado. Após muita relutância, chamam-no, mas ele não atende ao pedido. Enquanto isso, David conta uma história que ouvira de um professor amigo seu há um tempo atrás. Era uma leitura da morte, mas não para qualquer morte, era para a morte simbólica. De acordo com a lenda, a última pessoa que morresse no ano, na badalada da meia-noite, iria substituir o atual carroceiro da Morte. A ele caberia resgatar todos os espíritos, independente de onde e quando falecessem. E como escravo trabalharia durante um ano, até ser novamente substituído. Num acesso de fúria dos comparsas bêbados, David Holm é morto, à meia-noite do último dia do ano. O restante do filme é a rememoração do passado, e suas tentativas de não se tornar o carroceiro.

Algo a se considerar é o mau-caratismo de David. Há um viés maniqueísta muito forte no filme. Holm é o vilão da história, por ser vagabundo, bêbado, estúpido, grosso e vingativo. Em seu oposto está a jovem a morrer, que personifica o que de mais puro há no mundo. Enquanto ela, em sua morte, recebe atenção e cuidados, ele é espancado. Invariavelmente, o serviçal da Morte seria o que não apresenta problemas em tomar vidas, em buscar almas. Dentro desse paradigma, insere-se a questão da natureza como personificação da condição da alma. Vemos David em dois momentos. Quando feliz, num momento em que relembra o passado, com a família, todos se encontram nos campos verdejantes, à beira de um rio. É como se completassem. Nos outros momentos, em que é mostrado como a pessoa amarga que se tornou, é a natureza literalmente morta e apagada que vemos, coberta pela neve, e pelos malcuidados.

A força do cinema pessoal de Sjöström está aí, nessa percepção da natureza como parte integrante do ser humano. Representa um ponto de partida avançado na retórica de um cinema à margem dos pólos cinematográficos, era uma forma de reconhecer sua identidade. E muitos dos escandinavos farão isso, tentarão compreender a natureza, e a partir dela, a morte e o próprio cinema. Ao filmar A Carruagem Fantasma e O Fora-da-lei e sua Mulher, ele está buscando o entendimento. O primeiro é mais sóbrio, mais pueril, quase lúdico, como compreensão da morte; o segundo, filmado três anos antes, é mais visceral – a morte vem das entranhas e é quase uma libertação da penosa vida.

Nessa forma de libertação, Victor foi mestre. Transitou em estilos, em maneiras de filmar, em construções cênicas, em iluminações, mas sempre se ateve à força da imagem, principalmente na ligação entre matéria e espírito, e natureza e homem. Viveu a morte como poucos em seus filmes, deve tê-la compreendido como ninguém.




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