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O Espelho

Por Filipe Chamy

O espelho
Direção: Andrei Tarkovsky
Zerkalo, URSS, 1975.

Uma das causas da resistência do público em geral para com a música erudita é a firme convicção que ele próprio possui de que é incapaz de compreender essa forma de expressão; quando muito jovens, ouviram especialistas falando que não sei qual concerto para violino de Vivaldi evoca o bucolismo de uma paisagem campestre, que uma tocata de Bach é uma ode à família e coisas do tipo. Ouvindo, não enxergam nada disso. E aí está o mal. Não se deve esperar de uma obra artística o entendimento imediato da visão humana. É tolice esperar “contexto” em uma música, por exemplo. Aí as pessoas, desiludidas com sua alegada ignorância, desistem, desligam o cérebro e vão ouvir música fútil e que traz toda a chave na letra, artifício bobo e que afasta mais e mais gente de música instrumental e/ou mais elaborada.

Não falo disso porque este filme tem trilha erudita; mas porque Tarkovsky sofre do mesmo mal que esses compositores: diz-se que seus filmes são demasiado lentos (e de fato o são, mas isso é um elemento de sua essência), que não contam uma história normal (à parte conceitos de normalidade, suas histórias são bem compreensíveis, ainda que ocultas pela forma), que suas obras são masturbações cinematográficas, dão prazer apenas ao realizador. Não é verdade. O que ocorre é que teimam em procurar as mesmas velhas e surradas fórmulas em todo trabalho de cinema, herança maldita de certa tradição literária: sempre se anseia o explicado, o posto claramente, o dito, o mostrado, o explicitado. Talvez seja preciso ver mais de uma vez O espelho para captar sua complexidade de modo pleno, se isso é possível. Mas não é preciso revê-lo para apreciar sua gritante beleza plástica, como verdadeiros quadros que se sucedem, e é isso que Tarkovsky apresenta, uma sucessão de pinturas que tomam ritmo, cor e aspecto, como Kurosawa já fazia e sentia.

Não importa se compreendemos de início o intrincado jogo de imagens e significados que Tarkovsky propõe. Se entendemos as associações de atores em múltiplos personagens e personalidades. Se visualizamos a história em sua dimensão aparentemente lógico-cronológica. Importa, sim, o despertar da criança na cama, seu sorriso; o efeito congelado da água que bate e se espalha (marca do diretor, essas goteiras da vida, metafóricas ou reais e aquosas); a nudez sem véus de um banho talvez culpado; o efeito da guerra na calmaria de outrora. O vento, enfim, que assopra as folhas e muda as vidas. E o medo da morte, pairando sobre nossas cabeças como um despreocupado pássaro.

A família, a dor, a tristeza, todas essas dimensões da loucura humana são embaladas pela doce poesia recitada pelo diretor, ecos de uma lembrança que já pode ser encarada com ternura. A prosa de Tarkovsky é cruel sem o ser, é de uma paz convidativa, relato de homem sereno e que sabe que a vida é transitória.

E ao mesmo tempo há a impossibilidade de se falar sobre este filme. Trabalho de gênio, com domínio da técnica e dos sentimentos, é também um chamado à reflexão — mas voluntária, sem nada de falsamente intelectual ou compulsório. E a qualidade do filme está em todos os seus momentos, e por isso é complicado e inútil descrevê-los, seja porque não se conhece bem as palavras que possam definir tais emoções, seja porque essas emoções são, assim parece, indefiníveis. São memórias, moldadas pela aproximação do fim, ou pelo menos pela incerteza do prosseguimento da jornada, mas, ainda assim, com a doçura do cotidiano simples, as batalhas diárias, os pequenos dramas e acontecimentos cotidianos.

Não é pouco o que Tarkovsky faz, colorir (ou descolorir) esses pequenos pedaços de vida, espaços de pensamentos livres e incentivo aos olhos. O espelho do russo com certeza nos faz parecer mais nobres, ainda que expondo nossas fraquezas. Assim somos.




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