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Carta ao leitor.
A Minha Virada de Casaca

Muito tem se falado na crítica especializada sobre a importância do financiamento de longas-metragens brasileiros pelo Estado. Realmente é algo controverso e que traz diferentes reações e opiniões. Não é segredo pra ninguém que não sou defensor dessa tese (de forma alguma). Quero fazer deste editorial o ato inaugural da minha virada de casaca. Porém, desde que se realize algo que defendo mais e que tem maior importância pra mim.

A preservação da memória cinematográfica do Brasil é algo nojento. Filmes, críticas, cartazes e tudo que compõe a memória do nosso cinema estão completamente abandonados. E quase sempre se realiza um trabalho preconceituoso e contrário ao cinema paulista. Têm-se algumas honrosas exceções, como a Cinemateca Brasileira, em São Paulo, que faz um trabalho ímpar. Porém, a grande maioria dos brasileiros sempre trata cinema nacional como sinônimo de besteira, de putaria e algo que deve ser esquecido.

Nesse um ano e meio editando a Zingu!, eu tive a oportunidade de conhecer pessoas que trabalharam no nosso cinema nas mais diferentes funções, origens e opiniões. Muitas sem qualquer tipo de oportunidade de voltarem a fazer ao que dedicaram suas vidas: filmar. Pode parecer piada, mas existem pessoas afastadas há mais de duas décadas da nossa cinematografia que pensam que ainda irão participar de diversas películas. E pensam nisso todos os dias de suas vidas.

Homens de brio, que mesmo estando em idades avançadas, escalariam o monte Himalaia somente para realizar um único filme. Guerreiros que diversas vezes abandonaram suas famílias para não abandonar a coisa que mais amam: o cinema. São pessoas que não são santos, têm uma porrada de defeitos, mas fizeram tudo em pró da nossa cinematografia.

Estou fazendo jornalismo há três anos. Porém, sempre digo a todo mundo (inclusive amigos, namorada, mãe, pai, etc) que minha verdadeira faculdade é a Boca do Lixo. Na rua do Triunfo, eu conheci todos os tipos de pessoas, e isso me enriqueceu de maneira extraordinária. Claro que vejo filmes de outros países, de outras nacionalidades, porém, é inegável que hoje dou muito mais valor a um filme de um Jean Garret que a de um Fassbinder, a um genial José Miziara a um Antonioni, a um Heitor Gaiotti que a um Charles Chaplin.


Antes de mais nada, quero deixar claro que não sou de esquerda e não faço parte de qualquer espécie de centro acadêmico. Edito sem ganhar um único centavo uma pequena revista eletrônica de cinema de São Paulo. Porém, posso dizer de boca cheia que a Boca do Lixo é algo importante da minha vida e trajetória pessoal. Poucos como eu, sabem de verdade como vivem hoje esses gigantes adormecidos que tanto batalharam pela nossa cinematografia. Resolvi não dar os nomes das pessoas tratadas nas linhas seguintes porque seria algo sujo e panfletário.

Conheço um excepcional diretor de fotografia, dos mais atuantes, que vive numa situação precária. Esse homem tem uma história extraordinária, e, com toda certeza, se tivesse nascido nos Estados Unidos, estaria dando aula em alguma universidade de cinema. Mas na verdade, ele fica jogado como “gato pingado” tomando porres em bares de terceira categoria. Ainda hoje, com quase oitenta anos ele vive na Boca do Lixo sozinho em um apartamento pequeno e apertado. Há cerca de um mês encontrei com ele com um grave problema: sua residência estava há duas semanas sem luz, por causa de um corte na região.

Existe uma pessoa excepcional, de origem bastante humilde, que é uma das maiores figuras que conheci na minha vida. O único longa-metragem que ele dirigiu, um filme livre, não estreou devido à chegada do cinema explícito. Ele mantém, ainda hoje, um pequeno escritório na Boca. Escritório, na verdade, que recebe poucas pessoas. Muitas vezes eu o encontrei, e sempre de uma maneira especial ele me recebia e íamos tomar café juntos. Ele nunca me deixou pagar nada, dizendo que eu era jornalista e ia ajudar o cinema da Triunfo voltar. Soube depois de um amigo que esse cineasta não somente passa diversos dias sem tomar café com também sem almoçar ou jantar. Ou seja: embora ele mantenha uma pose pra mim que está bem, muitas vezes ele passa fome.

Tem um mestre, entre os tantos que conheci na Boca, que é a minha maior referência. Na verdade, criamos uma tal amizade, que essa pessoa passou a ser um avô meu. Sempre nos ligamos e sempre nos falamos. Um homem de rara inteligência, que mora em um lugar bastante humilde da Zona Leste paulistana. A última vez que fui visitá-lo, ele estava perplexo porque teve de alugar o primeiro andar de sua casa, devido às dificuldades financeiras que possui. O novo inquilino arrancou uma grande árvore que o cineasta cultivava há décadas. Pode parecer piada, mas, para maiores de setenta anos, coisas assim doem muito. Parecia que ele tinha perdido alguém da família, como um filho, um sobrinho querido. Uma vez ele foi ao supermercado, e perguntaram a profissão dele. Ele respondeu: “Cineasta”, e a moça do caixa deu uma gargalhada. Quando nós conversamos sobre a situação dele, sempre num humor incrível, esse mestre me fala: “Você é jovem, Matheus. Mas eu sei que esse país é uma merda”.

Há outros exemplos, que tornariam essa carta ao leitor uma verdadeira declaração - que deveria ser exibida às pessoas responsáveis pela cultura do nosso país. Sei de coração que o Estado não tem qualquer responsabilidade pelos casos aqui contados. Não mesmo. Porém, esse Estado que financia novos filmes, para surgirem novos cineastas, deveria ajudar de alguma maneira os velhos cineastas. Não precisa ser algo grande, um salário mínimo por mês para cada um seria algo fundamental. Para a turma da Boca, poderia ser um pouquinho, mas já ajudava muito. Quem sabe um salário mínimo mensal a cada cineasta que não filma há mais de vinte anos?

Certa vez fui a uma palestra do secretário estadual de cultura e professor de cinema brasileiro da ECA-USP, Carlos Augusto Calil, pessoa a qual tenho profundo respeito. Eu perguntei o que ele achava do cinema da Boca. Ele respondeu rápido: “O que eu devo achar sobre pessoas que fazem filmes como As Cangaceiras Eróticas?”. E pronto, toda a platéia, em sua maioria composta por pessoas jovens, caíu em risadas, se deliciando com a fala dele.

Não sei. Não sou dono da verdade, mas creio que se ele e as outras pessoas da platéia tivessem conhecido as pessoas da Boca que eu conheci, elas não teriam dado as mesmas risadas.

Por isso tudo, apoio o financiamento do governo a novos filmes. Realmente, hoje não há mais espaço para novos produtores, e a maioria dos filmes que a Globo Filmes faz não são grande coisa. Porém, esse financiamento a jovens cineastas somente se esse mesmo Estado financiasse e desse maior dignidade aos velhos cineastas.

Com essa ajuda, eu pararia de ser o “chato” e também ficaria grato aos órgãos públicos. Eu agradecia. E os velhos da Boca também.

Matheus Trunk
Editor-chefe da Zingu!



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