Dossiê Julius Belvedere
ENTREVISTA COM JULIUS BELVEDERE
Por Matheus Trunk, enviado especial a Mairiporã
Russel da Silva Ribeiro, 67 anos, fez sua glória no cinema da Rua do Triunfo com o pseudônimo de Julius Belvedere. Realizador do cult “O Castelo das Taras”, esse paulista de Atibaia sempre foi um aficionado por cinema de terror. Professor de literatura, sempre teve desejo de tentar ingressar na arte cinematográfica. No final dos anos 70, ele conseguiu realizar seu grande sonho, dirigindo um único longa-metragem que fez recordes de bilheteria e mares de dinheiro.
Infelizmente, o nome de Julius Belvedere parecia apagado da memória cinematográfica nacional. No recente Cinema da Boca: Dicionário de Diretores, de Alfredo Sternheim, lançado pela Coleção Aplauso, seu nome não é citado. Embora o pioneiro Dicionário de Cineastas Brasileiro, de Luiz Felipe Miranda, o nome do realizador esteja incluído.
Para conseguir uma entrevista exclusiva com esta verdadeira lenda viva do nosso cinema, a reportagem da Zingu! se deslocou num domingo até Mairiporã, município de 75 000 habitantes, localizado a 35 quilômetros da capital paulista.
Z- O senhor sempre pensou em se tornar realizador ? Como o senhor foi para a área cinematográfica ?
JB- Eu nunca pensei em ser realizador. Na faculdade, duas alunas me procuraram e me disseram: “Nós vamos num lugar onde nós fizemos um teste e fomos aprovadas”. Eu perguntei: “Por que vocês estão me procurando ?”. Elas falaram: “Porque nós confiamos no senhor e esse pessoal diz que essa questão de cinema tem muita coisa errada. Eu quero que o senhor vá lá com a gente”. Eu fui na Planeta Filmes que o dono era o Wilson Rodrigues e lá realmente elas tinham passado no tal teste.
Z- Era pra ser atriz, modelo ?
JB- Exatamente. Elas já iam entrar num filme.
Z- Que faculdade o senhor trabalhava ?
JB- Eu dava aula de literatura na Unip.
Z- Isso em que ano ?
JB- Isso foi em 78, 79.
Z- O senhor é formado em letras ?
JB- Sim. Sou formado na USP com mestrado e doutorado. Faz uns trinta anos, mas eu comecei no escritório do Wilson a observar cinema e achei interessante, bonito. Ele estava muito aborrecido na época porque ele tinha começado um filme e a atriz principal tinha morrido num acidente. Ele mostrou partes do filme, dizendo: “Todo esse material está perdido”. Eu questionei: “Mas por que o senhor não recupera essa parte ?”. O Wilson achava que já estava feito, que não tinha mais jeito, afinal, o filme estava no copião. Eu falei: “Monte uma história que aproveite isso”. Ele me questionou porque necessitava de uma pessoa pra escrever, mas eu falei: “Eu posso escrever”. Eu escrevi “Nós, Os Amantes” que foi o primeiro roteiro que eu fiz. Só que o título original não era esse, eu tinha botado o título “O Último Crepúsculo”. O Wilson me falou: “Ninguém sabe o que é crepúsculo para !”. E ficou “Nós, Os Amantes” e então no roteiro entravam as filmagens que ele já tinha feito. Eu aproveitei aquelas filmagens e já coloquei dentro do novo filme e ele ganhou quase que 40% do longa. Aí nesse momento eu me vinculei ao Wilson.
Z- Assinou contrato ?
JB- Assinei contrato como roteirista. Sei que ele vendeu roteiro meu, porque eu escrevia passava pra ele pra ele vender.
Z- Quantos roteiros o senhor fez pra ele ?
JB- Ah...deve ter sido uns três ou quatro, por aí. Depois ele veio a filmar “Liberdade Sexual” que foi um outro roteiro que nós chegamos a rodar e o trabalho se desenvolveu assim. Eu fui diretor de produção do elenco, comecei a fazer produção, arrumar os lugares pra filmagem. Me interessei e comecei a comprar livros sobre cinema. Mas não havia livros em português, tinha somente em inglês. Mas isso pra mim não constituía problema nenhum porque eu era professor de inglês como sou até hoje. Eu era na verdade como um autodidata. Nas filmagens eu me colocava, grudava no câmera e no assistente para conferir aquilo que eu lia com o que eles faziam. O enquadramento, a movimentação de câmera, as tomadas e muita coisa que era teoria pro norte-americano os brasileiros faziam na raça sem saber nem o que estavam fazendo. Num roteiro que eu fazia muita coisa eles chegavam a falavam: “O que é isso aqui ?”, eles não sabiam e eram termos técnicos do cinema internacional. O Wilson, por exemplo, não sabia o que era um plangé, muito menos um contraplangé. Eu dizia: “Isso é assim, assim”. Ele não sabia os nomes, muita coisa. Ele falava: “Aqui a gente vai fazer um slow mocha”. Eu recriminei: “Slow mocha ? Isso não é slow mocha, é slow motion”. Quer dizer, ação lenta, então eu ajudei ele nessas curiosidades de cinema.
Z- O Wilson,vamos dizer não era assim como o senhor, como o Carlão e outros diretores mais refinados. Ele era mais como o Tony Vieira, né ? Um cara mais popular.
JB- Ele era um maluco. O Wilson foi um cara que inventou de fazer e ele alugava sala e dava aulas numa escolinha. Nessa escolinha, o pessoal pagava pra ir ver a escolinha como o Mojica e ele tinha um assessor muito bom que era o Ary Santiago. Ele foi assim o braço-direito dele, ele arrumava dinheiro, era muito ágil. Depois o Ary foi fazer teatro.
Z- O “Nós, Os Amantes”, a produção é do Tony ? Tem participação na distribuição ?
JB- Não sei. Essa parte administrativa quem cuidava era mesmo o Wilson. Apesar de dirigir a produção, eu nunca mexi nessa parte porque ele era muito reservado. Cheguei a ser amigo dele, mas não fazia parte dessa parte.
Z- Quando o senhor entrou na Boca o senhor continuou dando aula ?
JB- Não. Quando eu entrei lá eu parei, aí só fiz cinema.
Z- Quando o senhor era menino o senhor ia muito em cinema ?
JB- Eu sempre fui maluquinho, sempre assistindo tudo. Só que aí a gente começou a assistir os filmes já analisando a parte técnica, posição de câmera, a partir desse tempo pra frente. Antes a gente assistia pra ver, gostava ou não gostava. Quando eu comecei esse trabalho com o Wilson eu ia ao cinema todo dia (incisivo). Tinha dia que eu assistia três filmes, grandes diretores, fita que nem sabia quem era. Descobri uma coisa interessante: tinha muito nego bom com filminho que não teve projeção nenhuma e muita porcaria feita por cara de nome. Camarada falava assim: “Porra, esse é um filme do Fellini”, grande bosta e eu já vi filme do Fellini que tinha até eixo cruzado e o cara era pra crítica um primor, um medalhão do cinema.
Z- Tinha algum cineasta que o senhor gostava bastante ?
JB- Você diz que eu gostava bastante ? Eu sempre gostei muito do Carlão. Eu sempre gostei muito dele porque ele é sempre muito cuidadoso, tem muita arte. Ele é um homem muito sensível porque o homem pra fazer cinema tem que ser um cara sensível não pode ser um broncão. Eu gostava do Babenco também. Praticamente com ele eu não tive contato nenhum porque eu era um diretorzinho e ele um diretorzão.
Z- O senhor admirava os trabalhos do Khouri também ?
JB- Gostava muito do trabalho dele. Mas eram estilos diferentes, não tem nada haver uma coisa com a outra. Quando você está na escola você pega algo de cada professor, então, o filme do Khouri também...esses eram os caras bons da época. Só que não tinham dinheiro.
Z- E os estrangeiros ? De repente até algum nessa área do terror porque o filme do senhor explora esse gênero.
JB- Não, estrangeiro eu não me ligava não e vou explicar o motivo. Porque a nossa dificuldade do cara conseguir equipamento era tão difícil que não adiantava eu ver um efeito do cinema norte-americano se depois não dava pra fazer. Eles naquela época já tinham zoom de quatro mil metros e o nosso zoom era oito...a primeira Mitchell que veio pro Brasil foi a do Mazzaroppi. Eu pensei: “Um dia eu ainda vou filmar com uma Mitchell”, que é isso ? Nós os pobrezinhos da Boca sonhávamos. A primeira vez que eu usei uma grua, que eu pude fazer efeitos com uma grua foi no “Castelo das Taras” que não tinha esse nome originalmente. Esse título quem colocou foi o Alfredo Cohen, que era dono do circuito Haway que distribuiu o longa. Eles queriam nomes de impacto...então eles imaginavam: “Nossa “Castelo das Taras” deve ter putaria pra caramba”. E eu tive que colocar cenas de sexo senão não vendia, esse é o problema do cinema brasileiro. Esses dias eu entrei na internet e caiu num site com o título: esses malditos filmes brasileiros. A luta pra você fazer um longa-metragem era tão grande que eu classifico os cineastas brasileiros como heróis.
Z- Vocês se superavam na época ?
JB- Com certeza. Eu não quero muito não...dos trinta milhões de dólares que custou o primeiro “Superman” me dá só um milhão que eu faço melhor que aquele. Não apenas eu, Reichenbach também faz, Walter Hugo Khouri faz. Dá dinheiro pra esses caras pra você ver o que eles não fazem ? Todo mundo faz filme que pra terminar tinha que emprestar dinheiro. Então, eu classifico o cinema brasileiro e os realizadores da época, mesmo que atualmente tenha muita gente boa eu classifico como o cinema mais criativo. A gente estava empatadinho com os italianos, que naquele tempo tinha aqueles faroestes.
Z- O cinema italiano era forte. Tinha aquelas comédias do Lando Buzzanca parecido com os filmes da Boca.
JB- Exatamente. Porque depois os americanos acabaram com o cinema italiano como acabaram com o do Brasil. Pô ! Então é um truste internacional porque cinema dá dinheiro. Você sabe quanto deu a primeira semana do “Castelo das Taras” ?
Z- Quanto ?
JB- Foi gasto no nosso dinheiro hoje seria mais ou menos como um milhão de reais. O dinheiro era outro e não dá pra gente saber, mais ou menos. Na primeira semana, deu cinco vezes o que nós gastamos no filme. Entrou no Marabá, no Windsor e no Brasilzão. Eu não tenho esse valor mas alguém me falou numa entrevista, alguém me falou que o “Castelo das Taras” naqueles cinco anos foi um dos filmes nacionais que mais dinheiro, que mais bilheteria deu.
Z-. O senhor começa trabalhando com o Wilson e depois trabalhou mais com o Dorival Cotinho e o Ubiratan Gonçalves.
JB- Isso. Então, aí nós fomos fizemos “Casais Proibidos” que na verdade a direção é minha mas o Ubiratan não quis, quis botar ele pra dirigir. Tinha muito isso eles chamavam e não sei até onde você tem sua percepção, mas rolava muito isso. Acho que isso aconteceu até com o Carlão, mas ele não fala porque é um cara discretíssimo e tem que ser discreto. Mas um cara com dinheiro e popular chamava você pra dirigir mas o filme era dele, a gente estava num momento difícil, praticamente catando coquinho. Como você vai recusar ?
Z- O “Casais” eu li a sinopse e parece ser algo muito interessante. Uma moça vai trabalhar num motel e aí ela vê tudo pelo buraco da fechadura, coisas bem estranhas.
JB- O “Casais Proibidos” eram três histórias distintas, episódios. Em cada episódio apresentava um tipo de relacionamento diferente, extraordinário. Eu não sei o que foi feito desse filme, se sumiu não sei por que. O “Castelo” foi pro vídeo mas o “Casais Proibidos” não.
Z- O Ubiratan não se deu bem com o senhor então ?
JB- Não. Nem nas filmagens a gente não se dava bem.
Z- Como ele era ?
JB- O Ubiratan não tinha muito relacionamento com as pessoas, ele era muito ambicioso. Queria dinheiro e era muito vaidoso. Nos nossos desentendimentos ele tratava mal a equipe porque ele estava junto com o Coutinho e quem arrumava o dinheiro de financiamento era o Coutinho. E o Coutinho era incentão e ele malandrão de São Paulo monopolizava o Coutinho com dinheiro.
Z- O Coutinho era ingênuo ?
JB- Era ingênuo. O Ubiratan tinha dinheiro, era malandrão de São Paulo, tinha o mundo no bolso e achava que era dono de Hollywood. Então, equipe técnica, atriz ele tratava no chute. Nós não nos dávamos bem.
Z- O Dorival se deu bem com ele ?
JB- Ele foi até um certo ponto porque não dava mais. Depois um dia eu encontrei o Dorival e ele me falou: “O Ubiratan morreu”.
Z- Eu soube que ele morreu mesmo. O “Casais” foi bem de bilheteria ?
JB- O “Casais Proibidos” deu bilheteria. Mas na verdade, o Ubiratan vendeu os direitos da fita sem o produtor saber pro dono do Ipiranga. Deu bilheteria, foi bem visto.
Z- Mas o Coutinho não ganhou muita grana com esse longa ?
JB- Não. Na verdade, olha que interessante: quando nós fomos fazer os “Casais” eu já tinha tido com o Wilson Rodrigues uma experiência média de três longas-metragens rodados. E eu já vendo como tudo que era feito. Quando nós fomos filmar os “Casais” não deu outra. Então, o Ubiratan chegou pra mim e falou: “Você dirigi aí porque eu quero que você dirija”. Mas eu perguntei: “Mas você tem o diretor”. Como ele chamava ? O diretor do filme mesmo não era o Ubiratan era...eu vou lembrar já. Só que obviamente o Ubiratan chega pra mim pra eu dirigir o filme e o diretor vai aceitar ? Não vai. Então, eu procurei usar um pouco de diplomacia até o dia em que fomos fazer uma cena num motel em Santos e a cena estava sendo feita por um refletor de mil conectado a minha esquerda. Eu falei simplesmente pro diretor: “Seu Eliseu, não dá pro senhor fazer com esse refletor a esquerda”. Eu chamava ele de seu Eliseu, hein.
Z- O diretor era o Eliseu Fernandes então. Ele faleceu esse ano.
JB- Faleceu esse ano ? Ele me falou: “Não dá por que ? O que você entende ?”, já na bronca. Eu respondi: “Eu posso não entender nada mas então porque você não coloca um R1 no abajur ?”, ele falou: “O que você entende de refletor ? O que você entende de R1 ?”. Eu falei que podia não entender nada, mas se ele não colocasse a filmagem não ia sair e eu ameacei ir falar com o produtor responsável que era o Ubiratan, porque ele ia dar um efeito contrário que era a cena. Eu continuei: “Se o senhor quer a emoção da personagem a direitaa você coloca o refletor a esquerda ? Não precisa nem ser eu, pode ser o Geraldão, o Kopchak que eles explicam pro senhor”. Aí foi o rompimento e um pouco pra frente ele foi maquiar o Rui Leal que estava trabalhando como e na maquiagem sujou o colarinho do Leal. Mas mesmo assim ele foi pra cena pra filmar. Aí eu falei: “Dá licença seu Eliseu, o senhor vai filmar o ator com o colarinho sujo de material ?”, ele foi lá olhou e disse: “Eu falei que vou filmar e vou filmar !”. E aí perdeu o material e depois quando o aquilo o Ubiratan tirou o nome do Eliseu e colocou o nome dele como diretor. Ele não sabia nem pra que lado era o adjunto, fazer o que ?
Z- Ele só era produtor junto com o Coutinho.
JB- O roteiro era meu...
Z- Ele colocou que era do senhor e dele.
JB- É. Quando a gente trabalhava lá naquela época, a gente não estava esquentando com o nome de quem vai. A gente queria trabalhar, queria trabalhar.
Z- O senhor foi assistente do Eliseu nesse filme. Como surgiu essa chance do Dorival fazer o senhor dirigir ?
JB- Quando terminamos o “Casais”, o próprio Ubiratan me pediu desculpas. Aí eu já tinha a minha companhia cinematográfica que está viva até hoje.
Z- Qual o nome dela ?
JB- Associadas Produções Cinematográficas. Eu estou reativando ela agora porque estou com vontade de voltar a trabalhar, fazer as minhas palhaças. Eles foram na minha companhia dizendo: “Nós temos projeto, nós temos dinheiro e nós queremos um roteiro pra você dirigir”. Eu perguntei: “Mas eu vou dirigir mesmo ? Ou você vai se meter ?”, o Ubiratan me garantiu: “Não, eu não abro a boca”. Eu achei ótimo porque lá em “Casais Proibidos” ele queria fazer cena que não tinha nada haver. Estava tudo programado, foram feitas as filmagens em Pederneiras, perto de Bauru.
Z- Por que lá ?
JB- Porque lá em Pederneiras tinha numa fazenda um prédio parecido com um castelo. Não era um castelo, era um prédio que o dono quis fazer algo parecido, uma maluquice e ficou o prédio lá. Então, deram uma restaurada e fizemos umas cenas lá que a vítima vai subindo, a queda do corpo. Na queda do corpo a gente fez toda uma preparação e acabou o negativo. Na verdade, ele não cai acaba aparecendo logo depois lá embaixo. Essas coisas e depois esses caras falam: “Esses malditos filmes nacionais” [Julius refere-se a mostra Malditos Filmes Brasileiros], realizado por Remier Lion em 2004 e 2005). Meu, vai comprar negativo, vai pagar tudo, arcar e depois falar em set que é um filme maldito. Fiquei sabendo que é um cineclube...mas por que esse nome ?
Z- O nome teve gente que não gostou mesmo. Mas esse trabalho do Remier é um trabalho legal.
JB- Eu pensei em mandar um e-mail falando: “Nada contra. Mas vocês estão desprestigiando a luta de gente que lutava noite e dia pra conseguir financiamento, pra conseguir tudo.
Z- No “Castelo” teve menos investimento que nos “Casais” ?
JB- Menos.
Z- Parece ser um filme muito barato, elenco reduzido.
JB- Foi um longa barato. Olha só: tinha uma cena que a personagem principal ia cortar o pescoço de uma moça. Uma moça chamada Margareth e na verdade, nós não tínhamos meios nenhum. Chegamos num paiol e eu mandei: “Abram um buraco. Tem que ser um de mais ou menos um metro de profundidade”. Os caras cavaram a noite toda, terminaram era uma meia-noite, por aí. Brincadeira...e você sabe que pelo sindicato hoje tem horário de trabalho, não é como a gente fazia antigamente. A atriz enviava a cabeça...o Darcy Silva que cuidava dos efeitos especiais fez duas madeiras no lugar da cabeça, juntava as duas pra acabar serragem por cima e depois pegava uma cabeça de um manequim, cortava e saia sangue. Mas a Margareth não queria ficar com a cabeça dentro do buraco, a gente preparou tudo, foi uma grande loucura tudo aquilo. A atriz deitou mas não passou cinco minutos e começou a gritar. Quando a gente abriu, ela estava cheia de bolhas no corpo...porque não sabíamos que ela tinha uma doença que não podia ficar com o corpo daquele jeito. Mas nós já tínhamos gasto muito tempo de filmagem com a menina. O dia em que eu encontrar com o Mastrocola (diretor de fotografia do filme), eu quero que você esteja junto pra ele lembrar dessa passagem. De madrugada, a gente sentado, eu de cabeça quente porque talvez nós íamos perder quatro ou cinco dias de filmagem. Tinha um rapaz que era o motorista da Kombi. Ele tinha ido até Bauru pra pegar lanche e trazer pro pessoal. A gente tomava lanche de madrugada. O apelido dele era Pé na Cova, ele era moreninho. Aí o Sérgio falou: “Seu Julius...tem uma solução pro nosso problema”. Ele me disse: “Olha as costas do Pé na Cova”. O rapaz estava sem camisa distribuindo o lanche de toda a equipe, e o Sérgio me falou: “As costas dele são igualzinhas as costas da Margareth”. Eu falei no mesmo momento: “Vamos parar com tudo ! Vamos rodar”. Então, quem terminou o filme foi o motorista da Kombi. Você acha que isso ia acontecer no cinema norte-americano ?
Z- O motorista da Kombi foi dublê da atriz ?
JB- E dublê nu, pelado. Quer dizer, ela estava pelada e ele também, nu. É esse cinema sofrido que o cara bota o nome de malditos filmes brasileiros ?
Z- Quanto tempo demorou as filmagens do “Castelo” ?
JB- Trinta dias. Era o prazo normal, em menos tempo ninguém faz. Só se fizer sexo explícito.
Z- A principal atriz do filme é a Esmeralda de Barros. Ela deu trabalho ?
JB- Não, só no começo deu um pouquinho. Também ela tinha chegado da Itália com aquele nome todo mas devagarzinho foi dando certo. Foi dando certo também porque ela começou a namorar o Dorival. Então, esse negócio até dá certo porque eles moraram juntos um bom tempo. Eles foram casados.
Z- Ela era a atriz de mais nome do filme. O resto era um pessoal mais inexperiente ?
JB- Quem tinha nome internacional era ela.
Z- Durante o filme tinha um velhinho que fica olhando as coisas. Quem ele era ?
JB- Era um lutador de luta livre famoso da cidade. Era o Roque, ele era lutador. O velhinho barbudão ele era lutador do canal 7, era “Reis do Ringue”, “Heróis do Ringue” alguma coisa assim. Na época, ele era famoso, fortão e ainda lutava.
Z- Como foi a idéia do senhor de botar no filme o Marquês de Sade ? De onde veio isso ?
JB- No roteiro trazia o fato de moças serem levadas para um determinado lugar, iam falar de psicologia. Alguma coisa, o castelo tinha que ser mal assombrado e nessa altura do campeonato a gente achou que ela podia ser uma sacerdotisa do Marquês de Sade pra justificar. Na verdade, ela não é uma professora e sim uma sacerdotisa. Houve uma cena muito bonita que não funcionou como eu queria, mas foi mais ou menos que abre uma porta e ela careca. Não rolou do jeito que a gente queria porque o Darcy errou a hora, ele acendeu as tochas antes da gente abrir as portas (risos). E depois já estava acessa ! Então, você não vai jogar fora. Tínhamos pensado as portas iam se abrir e as tochas iam disparar de acordo com o movimento da atriz.
Z- Eu acho que o longa peca um pouco pelo excesso de cenas eróticas. Elas tomam banho de cachoeira umas três vezes durante o filme.
JB- Isso é porque tinha que mostrar as meninas peladas. Eu ficava puto com isso, mas o cara falava: “Meu, se você não fizer isso nós não vamos fazer isso. Tem neguinho que fica lá na Boca com o filme debaixo do braço durante anos”. Eu conheço três, quatro que agora já devem ter morrido mas ele fez um filme sobre José de Alencar, obra-prima. Vê se alguém projetou o filme dele ? Então, isso era na época...mas isso vale em parte mesmo na atualidade. Você acha que se alguém fazer um longa sobre Castro Alves e as poesias vai dar bilheteria ? Televisão vai comprar ? Prefere comprar os lixos mexicanos lá de graça. Então, a gente tinha que fazer essa de apelação, porque isso é apelação.
Z- Tem uma outra cena que uma das meninas é meio lésbica que está dando banho na outra. A cena erótica, ficou legal.
JB- Pois é. Mas é uma cena pedida, não está no roteiro. Acredita ?
Z- O Dorival foi produtor e ator principal no seu filme. Como foi sua relação com ele ?
JB- Tranqüila. Nós voltamos a nos ver depois do filme.
Z- A fotografia do Mastrocola é muito boa também. Toda vez que elas estão no castelo, a câmera volta e filma o castelo de longe.
JB- Isso a gente faz a pedido. De uma passagem de cena pra outra você precisa ter imagens para não cair...eu não posso terminar uma cena como a televisão. Não pode ser cara com cara, precisa ter uma passagem. Na televisão não é outra linguagem por não ter tido experiência do cinema. Hoje em dia não, já tem gente muito boa.
Z- A montagem do filme é do Máximo Barro. Como você conheceu ele ?
JB- Quem chamou ele foi o Dorival. O Máximo já trabalhava na FAAP, dava aula lá e era um camarada respeitado. Bom montador, a gente se relacionou bem.
Z- O senhor acompanhou a montagem ?
JB- Não saia de lá. O diretor não pode sair do lado da moviola. No tempo da moviola, olha só. Tinha que cortar, emendar era todo um trabalho artesanal muito complicado.
Z- Como foi ter o Arlindo Barreto como assistente de direção ?
JB- Então...você conhece o Arlindo Barreto ?
Z- Não.
JB- O Arlindo é filho da Márcia de Windsor [famosa atriz e vedete do teatro de revistas já falecida]. Então, por ser filho ele queria um espaço. Tive um desentendimento com o Ubiratan e aí nesse desentendimento fui fazer uma viagem e estava faltando alguns takes. O que o Ubiratan fez ? Chamaram o Arlindo pra ele dar uma olhada dizendo que ele ia assinar o filme inteiro. Então, o Arlindo sairia como diretor do “Castelo das Taras”, mas quando a documentação chegou em Brasília os caras devolveram. Afinal, todas as atrizes já tinham feito relatório dizendo que o cineasta era eu e eles trocaram de nome no meio do caminho. Isso foi palhaçada do Ubiratan e ele teve que miar e botar o Arlindo de assistente. Mas eu nunca nem falei com ele, não o conheço. Um dia eu peguei o telefone liguei pro Arlindo perguntando: “Então, quer dizer que você é o diretor do longa ?”. Ele respondeu: “Eu estou aí meu. Estou na minha”. Uma pessoa digna de honra não aceita isso, o mundo da arte é complicado. Ele ficou de assistente, mas eu nunca vi o cara.
Z- O senhor teve assistente durante o filme ?
JB- Não. Quem na verdade era meu assistente...um dia apareceu na companhia um moleque, dezesseis anos. Sabe aqueles moleques que não saem de perto ? Ele falando que queria fazer cinema: “Quero fazer cinema e o meu pai já arrumou um emprego pra mim”. O pai dele era o Machado sócio de uma contabilidade que tinha lá na Boca. O moleque se chama Douglas Diniz Machado, e ele já trabalhava numa companhia que fazia comerciais. Acabamos amigos e aí quando os produtores estavam decidindo a equipe, eles queriam que um cara da Boca fosse o assistente de câmera. Mas eu falei: “Posso fazer um pedido ? Põe o garoto”. Eles acharam que eu era louco, mas eu sabia que ele era bom. Então, ele ficou como sendo assistente de câmera do Mastrocola mas ele conversava comigo e dava idéias: “Seu Julius, eu acho que isso fica bom...Mastrocola vamos fazer isso”. Na verdade, a gente fez o filme em três pessoas, aceitando sugestões tanto do Mastrocola como do Douglas Diniz Machado que eu nem sei onde está.
Z- A equipe do “Castelo” na verdade era uma equipe bem reduzida ?
JB- Sim.
Z- O Dorival era um produtor pequeno na Boca.
JB- Pequeno, pequeno. Por exemplo, na Boca tinha o Massaini, que na época tinha um puta dum nome. Quando o filme foi lançado e teve aquela bilheteria...o Massaini falou assim: “Julius, você vai trabalhar comigo”. Mas depois ele ficou doente. Ele era muito bom. O filho deve ser também, mas eu nunca trabalhei com ele.
Z- A bilheteria do “Castelo” foram satisfatória ? O Dorival Coutinho deve ter ganhado um dinheiro legal.
JB- Nossa, foi muito. Eu ganhei muito, imagina ele. Seria mais ou menos como um milhão de reais hoje. Comprei a propriedade onde eu moro aqui em Mairiporã, comprei casa pro meu filho, pra ex-mulher, essas coisas. A casa tenho até hoje tudo com dinheiro do “Castelo”.
Z- A coisa que o senhor mais ganhou dinheiro na sua vida foi o filme ?
JB- Foi, foi. Os outros filmes deram dinheiro mas como eu não era diretor...os roteiros o Wilson pagou direitinho.
Z- O senhor pensou em dirigir mais filmes ?
JB- Quando começou sexo explícito eu saí fora. Porque não tinha mais filmes normais, era só sexo explícito. Pra fazer esse tipo de cinema precisa de diretor ? Você acha que eu ia botar todo um trabalho e enfiar lá ?
Z- O Dorival também não fez sexo explícito.
JB- Não, não fez.
Z- Mas o Wilson Rodrigues, por exemplo fez bastante.
JB- Eu não sei.
Z- Ele fez bastante.
JB- Ele fez ?
Z- Fez uma porrada.
JB- Wilson eu não sei.
Z- Quem o senhor mais conheceu da Boca que chegou a ter amizade ?
JB- Era mais o pessoal da técnica, os eletricistas, o Kopchak, o Geraldão. Eu cheguei uma vez a ceder todos os meus refletores, eles foram filmar numa determinada cidade e eles não pagaram o camarada que filmou com eles. Aí esse cara reteve todos os meus refletores e perdi mais de trinta refletores. Eu não nem lembro o nome desse cidadão, mas era ali da Boca. O Tony Vieira, o Alfred Coen, conheci muito, a gente conversava muito. Gente boa.
Z- Aí quando começou o explícito você voltou a dar aulas ?
JB- Eu saí fora e voltei a dar aulas. Inclusive, estava lendo num site que a minha passagem pelo cinema foi meteórica. Mas não tinha como continuar porque a Boca inteira só estava fazendo filme de sexo. Ninguém mais punha dinheiro porque a produção dependia de produtores. Naquela época, explícito dava grana porque era algo proibido. Você imagina o que os caras não queriam ? Tinha aqueles cineminhas de guerra no centrão passando filme pornográfico desde as dez da manhã e sempre cheio. O produtor vai investir em filme sério cuja bilheteria é discutível ? Não vai, cinema parou.
Z- O senhor não tentou fazer publicidade, por exemplo ?
JB- Não, não tentei porque não tinha espaço. Não tinha espaço mesmo. Voltei a dar aulas de literatura pra escolas, mas eu continuei escrevendo roteiros, então eu tenho algumas coisas em casa, coisas prontas. Teve um roteiro que quase o pessoal do Circuito Haway compra mas depois não deu certo.
Z- O que o Dorival fez depois que acabou ?
JB- Ele tentou fazer outras coisas no setor e que eu saiba não conseguiu retornar.
Z- O seu filme é diferente dos outros longas da Boca porque é um filme de gênero. Pode-se até dizer que é um filme de terror.
JB- É.
Z- De onde veio essa idéia de fazer um filme de terror ?
JB- Na verdade, eu sempre fui fã do Hitchcock. Vários contos que eu escrevi publicados aqui no jornal da cidade são contos que mexem com o extraordinário, o anti natural. Eu sempre gostei dessa área, sempre gostei. Assistia os filmes do Hitchcock. Quando você perguntou de cara internacional que tinha me influenciado...é que ele morreu há tanto tempo que a gente nem lembra. Mas todos os filmes dele eu vi várias vezes.
Z- Cinema europeu já não era tanto a área do senhor ?
JB- Não, não. Eu gostava mais de clássico, da área do Hitchcock e se eu pudesse eu tinha puxado muito mais. Mas se puxar muito vai assustar o público e vai descaracterizar....
Z- O padrão erótico que iria pagar o filme.
JB- Exatamente.
Z- Tem uma cena muito legal que o ator principal está possuído e ele começa a cuspir sangue.
JB- Primeiro era espuma. Depois ele gospe abacate. Porque o pastor era possuído pelo espírito e sai através da sacerdotisa.
Z- Quando o senhor chegou pro Dorival falando que o filme ia ser de terror não teve problema ?
JB- Depois que o roteiro estava pronto eles falaram: “Vamos lá”. Então, fizemos lá sem problemas.
Z- E os filmes do Mojica o senhor gostava ? Porque ele sempre fazia esse cinema de gênero, de terror como o senhor.
JB- O Mojica é meu amigo. Mas eu não gostava muito porque não tinha muita riqueza, era feito no tapa mas era um camarada lutador. Ele não tinha muita bagagem pra estar nessa área, mas ele era um autodidata.
Z- Mas o senhor sempre pensou em voltar pra essa área de cinema ?
JB- Sempre. E eu acho que vai acontecer agora. Muitos contatos que eu estou fazendo e é capaz que eu consiga produzir uma série pra televisão. A minha intenção é que seja a Rede Record, mas não tenho contrato nenhum fechado. Quero ir pra essa emissora por conta do assunto que eu quero tratar. Eu quero fazer uma série sobre os milagres que acontecem nas igrejas protestantes, mas essas conversões que o cara sai andando, tem uns negócios que não são verdadeiros mas tem muita verdade. Fazer uma série sobre esses milagres é a minha grande intenção. Como a Record tem mais ou menos essa cara, daí o meu interesse em apresentar o projeto lá pra eles. Vou ver se essa semana já tenho um contato com eles.
Z- O senhor continua acompanhando o cinema brasileiro ? Vendo filmes ?
JB- Acompanho como espectador.
Z- Seu Julius, o senhor chegou a ver o “Tropa de Elite” ?
JB- Não, não vi “Tropa de Elite”. O que eu vi várias vezes me perguntando como é que com tantos problemas de filmagens deu tanto sucesso foi aquele filme que aparece os bandidos na favela...
Z- “Cidade de Deus”.
JB- “Cidade de Deus”. Se nós fomos parar e eu for mostrar você, você não vai acreditar nas posições incríveis daquela câmera. Então, são coisas que eu pergunto: “Como o cara fez isso ? Por que ele fez ?”. Os efeitos... “Carandiru” é outro filme com tema que o público sempre quer. Mas também eu nem sei se tem tido bilheteria, essas coisas. Porque ver um filme como “Aluga-se Moças”, não tem nada haver. Recomende ao seu amigo do Malditos Filmes Brasileiros pra passar esse (rindo). Não tem nada haver ?
Z- Seu Julius, como o senhor considera o seu filme hoje ? O senhor considera ele um grande filme ? Um filme médio ?
JB- Hoje eu considero um filme com bom tema mas não consegui fazer o que queria por falta de negativo e equipamento. Foi um produto de combate que deu certo. Se eu fosse filmar hoje, se tivesse orçamento aí a coisa ia ser diferente. Nenhum diretor nacional consegue fazer o que ele quer por falta de dinheiro e equipamento, não consegue. Como você vai fazer a cena de um carro caindo na hora que eles quiserem ? Então, nós temos que ficar restrito a um orçamento.
Z- Para gente encerrar seu Julius, o que o senhor acha que fica do senhor pro futuro ? Dos trabalhos da Boca...
JB- Eu acho que fica pra mim a tranqüilidade que eu posso e que eu sei fazer. Tenho plena consciência das dificuldades porque um profissional dessa área depende de uma retaguarda e você se afasta a retaguarda fica cada vez mais distante. Eu tenho um projeto com roteiro que ficaria muito caro mas seria uma grande realização. Tentei entrar em contato com o Edir Macedo pra fazer o filme de um assunto que nunca foi feito um filme. Seria a volta de Cristo hoje em 2008, mas com efeitos especiais, usando computação, tudo que poderia se usar. Aí a gente ia mostrar pra esses gringos o que é cinema.
Z- O Alfredo Sternheim recentemente lançou o “Cinema da Boca: Dicionário de Diretores”. Tem todos os cineastas do período, a turma do explícito, o Deny, o Carlão, o Jean. Não aparece o senhor. Como o senhor se sente? Tem outros diretores da Boca que não estão aqui, o Rodrigo Montana, o Novotny.
JB- Eu não me preocupo com isso. Porque o que eu tinha que fazer, eu fiz. Quando nós fazíamos, não estávamos pensando na projeção nacional, passar para posteridade. Para mim foi até surpresa quando alguém me ligou falando que eu estava na internet, eu pensei: “Eu na Internet? Eu matei quem?” (risos). O Carlão nunca se preocupou com isso. Então, essa preocupação sadia de se fazer uma análise do passado surgiu agora. Quem gosta, gosta. Quem não gosta, que se dane.
ENTREVISTA COM JULIUS BELVEDERE
Por Matheus Trunk, enviado especial a Mairiporã
Russel da Silva Ribeiro, 67 anos, fez sua glória no cinema da Rua do Triunfo com o pseudônimo de Julius Belvedere. Realizador do cult “O Castelo das Taras”, esse paulista de Atibaia sempre foi um aficionado por cinema de terror. Professor de literatura, sempre teve desejo de tentar ingressar na arte cinematográfica. No final dos anos 70, ele conseguiu realizar seu grande sonho, dirigindo um único longa-metragem que fez recordes de bilheteria e mares de dinheiro.
Infelizmente, o nome de Julius Belvedere parecia apagado da memória cinematográfica nacional. No recente Cinema da Boca: Dicionário de Diretores, de Alfredo Sternheim, lançado pela Coleção Aplauso, seu nome não é citado. Embora o pioneiro Dicionário de Cineastas Brasileiro, de Luiz Felipe Miranda, o nome do realizador esteja incluído.
Para conseguir uma entrevista exclusiva com esta verdadeira lenda viva do nosso cinema, a reportagem da Zingu! se deslocou num domingo até Mairiporã, município de 75 000 habitantes, localizado a 35 quilômetros da capital paulista.
Z- O senhor sempre pensou em se tornar realizador ? Como o senhor foi para a área cinematográfica ?
JB- Eu nunca pensei em ser realizador. Na faculdade, duas alunas me procuraram e me disseram: “Nós vamos num lugar onde nós fizemos um teste e fomos aprovadas”. Eu perguntei: “Por que vocês estão me procurando ?”. Elas falaram: “Porque nós confiamos no senhor e esse pessoal diz que essa questão de cinema tem muita coisa errada. Eu quero que o senhor vá lá com a gente”. Eu fui na Planeta Filmes que o dono era o Wilson Rodrigues e lá realmente elas tinham passado no tal teste.
Z- Era pra ser atriz, modelo ?
JB- Exatamente. Elas já iam entrar num filme.
Z- Que faculdade o senhor trabalhava ?
JB- Eu dava aula de literatura na Unip.
Z- Isso em que ano ?
JB- Isso foi em 78, 79.
Z- O senhor é formado em letras ?
JB- Sim. Sou formado na USP com mestrado e doutorado. Faz uns trinta anos, mas eu comecei no escritório do Wilson a observar cinema e achei interessante, bonito. Ele estava muito aborrecido na época porque ele tinha começado um filme e a atriz principal tinha morrido num acidente. Ele mostrou partes do filme, dizendo: “Todo esse material está perdido”. Eu questionei: “Mas por que o senhor não recupera essa parte ?”. O Wilson achava que já estava feito, que não tinha mais jeito, afinal, o filme estava no copião. Eu falei: “Monte uma história que aproveite isso”. Ele me questionou porque necessitava de uma pessoa pra escrever, mas eu falei: “Eu posso escrever”. Eu escrevi “Nós, Os Amantes” que foi o primeiro roteiro que eu fiz. Só que o título original não era esse, eu tinha botado o título “O Último Crepúsculo”. O Wilson me falou: “Ninguém sabe o que é crepúsculo para !”. E ficou “Nós, Os Amantes” e então no roteiro entravam as filmagens que ele já tinha feito. Eu aproveitei aquelas filmagens e já coloquei dentro do novo filme e ele ganhou quase que 40% do longa. Aí nesse momento eu me vinculei ao Wilson.
Z- Assinou contrato ?
JB- Assinei contrato como roteirista. Sei que ele vendeu roteiro meu, porque eu escrevia passava pra ele pra ele vender.
Z- Quantos roteiros o senhor fez pra ele ?
JB- Ah...deve ter sido uns três ou quatro, por aí. Depois ele veio a filmar “Liberdade Sexual” que foi um outro roteiro que nós chegamos a rodar e o trabalho se desenvolveu assim. Eu fui diretor de produção do elenco, comecei a fazer produção, arrumar os lugares pra filmagem. Me interessei e comecei a comprar livros sobre cinema. Mas não havia livros em português, tinha somente em inglês. Mas isso pra mim não constituía problema nenhum porque eu era professor de inglês como sou até hoje. Eu era na verdade como um autodidata. Nas filmagens eu me colocava, grudava no câmera e no assistente para conferir aquilo que eu lia com o que eles faziam. O enquadramento, a movimentação de câmera, as tomadas e muita coisa que era teoria pro norte-americano os brasileiros faziam na raça sem saber nem o que estavam fazendo. Num roteiro que eu fazia muita coisa eles chegavam a falavam: “O que é isso aqui ?”, eles não sabiam e eram termos técnicos do cinema internacional. O Wilson, por exemplo, não sabia o que era um plangé, muito menos um contraplangé. Eu dizia: “Isso é assim, assim”. Ele não sabia os nomes, muita coisa. Ele falava: “Aqui a gente vai fazer um slow mocha”. Eu recriminei: “Slow mocha ? Isso não é slow mocha, é slow motion”. Quer dizer, ação lenta, então eu ajudei ele nessas curiosidades de cinema.
Z- O Wilson,vamos dizer não era assim como o senhor, como o Carlão e outros diretores mais refinados. Ele era mais como o Tony Vieira, né ? Um cara mais popular.
JB- Ele era um maluco. O Wilson foi um cara que inventou de fazer e ele alugava sala e dava aulas numa escolinha. Nessa escolinha, o pessoal pagava pra ir ver a escolinha como o Mojica e ele tinha um assessor muito bom que era o Ary Santiago. Ele foi assim o braço-direito dele, ele arrumava dinheiro, era muito ágil. Depois o Ary foi fazer teatro.
Z- O “Nós, Os Amantes”, a produção é do Tony ? Tem participação na distribuição ?
JB- Não sei. Essa parte administrativa quem cuidava era mesmo o Wilson. Apesar de dirigir a produção, eu nunca mexi nessa parte porque ele era muito reservado. Cheguei a ser amigo dele, mas não fazia parte dessa parte.
Z- Quando o senhor entrou na Boca o senhor continuou dando aula ?
JB- Não. Quando eu entrei lá eu parei, aí só fiz cinema.
Z- Quando o senhor era menino o senhor ia muito em cinema ?
JB- Eu sempre fui maluquinho, sempre assistindo tudo. Só que aí a gente começou a assistir os filmes já analisando a parte técnica, posição de câmera, a partir desse tempo pra frente. Antes a gente assistia pra ver, gostava ou não gostava. Quando eu comecei esse trabalho com o Wilson eu ia ao cinema todo dia (incisivo). Tinha dia que eu assistia três filmes, grandes diretores, fita que nem sabia quem era. Descobri uma coisa interessante: tinha muito nego bom com filminho que não teve projeção nenhuma e muita porcaria feita por cara de nome. Camarada falava assim: “Porra, esse é um filme do Fellini”, grande bosta e eu já vi filme do Fellini que tinha até eixo cruzado e o cara era pra crítica um primor, um medalhão do cinema.
Z- Tinha algum cineasta que o senhor gostava bastante ?
JB- Você diz que eu gostava bastante ? Eu sempre gostei muito do Carlão. Eu sempre gostei muito dele porque ele é sempre muito cuidadoso, tem muita arte. Ele é um homem muito sensível porque o homem pra fazer cinema tem que ser um cara sensível não pode ser um broncão. Eu gostava do Babenco também. Praticamente com ele eu não tive contato nenhum porque eu era um diretorzinho e ele um diretorzão.
Z- O senhor admirava os trabalhos do Khouri também ?
JB- Gostava muito do trabalho dele. Mas eram estilos diferentes, não tem nada haver uma coisa com a outra. Quando você está na escola você pega algo de cada professor, então, o filme do Khouri também...esses eram os caras bons da época. Só que não tinham dinheiro.
Z- E os estrangeiros ? De repente até algum nessa área do terror porque o filme do senhor explora esse gênero.
JB- Não, estrangeiro eu não me ligava não e vou explicar o motivo. Porque a nossa dificuldade do cara conseguir equipamento era tão difícil que não adiantava eu ver um efeito do cinema norte-americano se depois não dava pra fazer. Eles naquela época já tinham zoom de quatro mil metros e o nosso zoom era oito...a primeira Mitchell que veio pro Brasil foi a do Mazzaroppi. Eu pensei: “Um dia eu ainda vou filmar com uma Mitchell”, que é isso ? Nós os pobrezinhos da Boca sonhávamos. A primeira vez que eu usei uma grua, que eu pude fazer efeitos com uma grua foi no “Castelo das Taras” que não tinha esse nome originalmente. Esse título quem colocou foi o Alfredo Cohen, que era dono do circuito Haway que distribuiu o longa. Eles queriam nomes de impacto...então eles imaginavam: “Nossa “Castelo das Taras” deve ter putaria pra caramba”. E eu tive que colocar cenas de sexo senão não vendia, esse é o problema do cinema brasileiro. Esses dias eu entrei na internet e caiu num site com o título: esses malditos filmes brasileiros. A luta pra você fazer um longa-metragem era tão grande que eu classifico os cineastas brasileiros como heróis.
Z- Vocês se superavam na época ?
JB- Com certeza. Eu não quero muito não...dos trinta milhões de dólares que custou o primeiro “Superman” me dá só um milhão que eu faço melhor que aquele. Não apenas eu, Reichenbach também faz, Walter Hugo Khouri faz. Dá dinheiro pra esses caras pra você ver o que eles não fazem ? Todo mundo faz filme que pra terminar tinha que emprestar dinheiro. Então, eu classifico o cinema brasileiro e os realizadores da época, mesmo que atualmente tenha muita gente boa eu classifico como o cinema mais criativo. A gente estava empatadinho com os italianos, que naquele tempo tinha aqueles faroestes.
Z- O cinema italiano era forte. Tinha aquelas comédias do Lando Buzzanca parecido com os filmes da Boca.
JB- Exatamente. Porque depois os americanos acabaram com o cinema italiano como acabaram com o do Brasil. Pô ! Então é um truste internacional porque cinema dá dinheiro. Você sabe quanto deu a primeira semana do “Castelo das Taras” ?
Z- Quanto ?
JB- Foi gasto no nosso dinheiro hoje seria mais ou menos como um milhão de reais. O dinheiro era outro e não dá pra gente saber, mais ou menos. Na primeira semana, deu cinco vezes o que nós gastamos no filme. Entrou no Marabá, no Windsor e no Brasilzão. Eu não tenho esse valor mas alguém me falou numa entrevista, alguém me falou que o “Castelo das Taras” naqueles cinco anos foi um dos filmes nacionais que mais dinheiro, que mais bilheteria deu.
Z-. O senhor começa trabalhando com o Wilson e depois trabalhou mais com o Dorival Cotinho e o Ubiratan Gonçalves.
JB- Isso. Então, aí nós fomos fizemos “Casais Proibidos” que na verdade a direção é minha mas o Ubiratan não quis, quis botar ele pra dirigir. Tinha muito isso eles chamavam e não sei até onde você tem sua percepção, mas rolava muito isso. Acho que isso aconteceu até com o Carlão, mas ele não fala porque é um cara discretíssimo e tem que ser discreto. Mas um cara com dinheiro e popular chamava você pra dirigir mas o filme era dele, a gente estava num momento difícil, praticamente catando coquinho. Como você vai recusar ?
Z- O “Casais” eu li a sinopse e parece ser algo muito interessante. Uma moça vai trabalhar num motel e aí ela vê tudo pelo buraco da fechadura, coisas bem estranhas.
JB- O “Casais Proibidos” eram três histórias distintas, episódios. Em cada episódio apresentava um tipo de relacionamento diferente, extraordinário. Eu não sei o que foi feito desse filme, se sumiu não sei por que. O “Castelo” foi pro vídeo mas o “Casais Proibidos” não.
Z- O Ubiratan não se deu bem com o senhor então ?
JB- Não. Nem nas filmagens a gente não se dava bem.
Z- Como ele era ?
JB- O Ubiratan não tinha muito relacionamento com as pessoas, ele era muito ambicioso. Queria dinheiro e era muito vaidoso. Nos nossos desentendimentos ele tratava mal a equipe porque ele estava junto com o Coutinho e quem arrumava o dinheiro de financiamento era o Coutinho. E o Coutinho era incentão e ele malandrão de São Paulo monopolizava o Coutinho com dinheiro.
Z- O Coutinho era ingênuo ?
JB- Era ingênuo. O Ubiratan tinha dinheiro, era malandrão de São Paulo, tinha o mundo no bolso e achava que era dono de Hollywood. Então, equipe técnica, atriz ele tratava no chute. Nós não nos dávamos bem.
Z- O Dorival se deu bem com ele ?
JB- Ele foi até um certo ponto porque não dava mais. Depois um dia eu encontrei o Dorival e ele me falou: “O Ubiratan morreu”.
Z- Eu soube que ele morreu mesmo. O “Casais” foi bem de bilheteria ?
JB- O “Casais Proibidos” deu bilheteria. Mas na verdade, o Ubiratan vendeu os direitos da fita sem o produtor saber pro dono do Ipiranga. Deu bilheteria, foi bem visto.
Z- Mas o Coutinho não ganhou muita grana com esse longa ?
JB- Não. Na verdade, olha que interessante: quando nós fomos fazer os “Casais” eu já tinha tido com o Wilson Rodrigues uma experiência média de três longas-metragens rodados. E eu já vendo como tudo que era feito. Quando nós fomos filmar os “Casais” não deu outra. Então, o Ubiratan chegou pra mim e falou: “Você dirigi aí porque eu quero que você dirija”. Mas eu perguntei: “Mas você tem o diretor”. Como ele chamava ? O diretor do filme mesmo não era o Ubiratan era...eu vou lembrar já. Só que obviamente o Ubiratan chega pra mim pra eu dirigir o filme e o diretor vai aceitar ? Não vai. Então, eu procurei usar um pouco de diplomacia até o dia em que fomos fazer uma cena num motel em Santos e a cena estava sendo feita por um refletor de mil conectado a minha esquerda. Eu falei simplesmente pro diretor: “Seu Eliseu, não dá pro senhor fazer com esse refletor a esquerda”. Eu chamava ele de seu Eliseu, hein.
Z- O diretor era o Eliseu Fernandes então. Ele faleceu esse ano.
JB- Faleceu esse ano ? Ele me falou: “Não dá por que ? O que você entende ?”, já na bronca. Eu respondi: “Eu posso não entender nada mas então porque você não coloca um R1 no abajur ?”, ele falou: “O que você entende de refletor ? O que você entende de R1 ?”. Eu falei que podia não entender nada, mas se ele não colocasse a filmagem não ia sair e eu ameacei ir falar com o produtor responsável que era o Ubiratan, porque ele ia dar um efeito contrário que era a cena. Eu continuei: “Se o senhor quer a emoção da personagem a direitaa você coloca o refletor a esquerda ? Não precisa nem ser eu, pode ser o Geraldão, o Kopchak que eles explicam pro senhor”. Aí foi o rompimento e um pouco pra frente ele foi maquiar o Rui Leal que estava trabalhando como e na maquiagem sujou o colarinho do Leal. Mas mesmo assim ele foi pra cena pra filmar. Aí eu falei: “Dá licença seu Eliseu, o senhor vai filmar o ator com o colarinho sujo de material ?”, ele foi lá olhou e disse: “Eu falei que vou filmar e vou filmar !”. E aí perdeu o material e depois quando o aquilo o Ubiratan tirou o nome do Eliseu e colocou o nome dele como diretor. Ele não sabia nem pra que lado era o adjunto, fazer o que ?
Z- Ele só era produtor junto com o Coutinho.
JB- O roteiro era meu...
Z- Ele colocou que era do senhor e dele.
JB- É. Quando a gente trabalhava lá naquela época, a gente não estava esquentando com o nome de quem vai. A gente queria trabalhar, queria trabalhar.
Z- O senhor foi assistente do Eliseu nesse filme. Como surgiu essa chance do Dorival fazer o senhor dirigir ?
JB- Quando terminamos o “Casais”, o próprio Ubiratan me pediu desculpas. Aí eu já tinha a minha companhia cinematográfica que está viva até hoje.
Z- Qual o nome dela ?
JB- Associadas Produções Cinematográficas. Eu estou reativando ela agora porque estou com vontade de voltar a trabalhar, fazer as minhas palhaças. Eles foram na minha companhia dizendo: “Nós temos projeto, nós temos dinheiro e nós queremos um roteiro pra você dirigir”. Eu perguntei: “Mas eu vou dirigir mesmo ? Ou você vai se meter ?”, o Ubiratan me garantiu: “Não, eu não abro a boca”. Eu achei ótimo porque lá em “Casais Proibidos” ele queria fazer cena que não tinha nada haver. Estava tudo programado, foram feitas as filmagens em Pederneiras, perto de Bauru.
Z- Por que lá ?
JB- Porque lá em Pederneiras tinha numa fazenda um prédio parecido com um castelo. Não era um castelo, era um prédio que o dono quis fazer algo parecido, uma maluquice e ficou o prédio lá. Então, deram uma restaurada e fizemos umas cenas lá que a vítima vai subindo, a queda do corpo. Na queda do corpo a gente fez toda uma preparação e acabou o negativo. Na verdade, ele não cai acaba aparecendo logo depois lá embaixo. Essas coisas e depois esses caras falam: “Esses malditos filmes nacionais” [Julius refere-se a mostra Malditos Filmes Brasileiros], realizado por Remier Lion em 2004 e 2005). Meu, vai comprar negativo, vai pagar tudo, arcar e depois falar em set que é um filme maldito. Fiquei sabendo que é um cineclube...mas por que esse nome ?
Z- O nome teve gente que não gostou mesmo. Mas esse trabalho do Remier é um trabalho legal.
JB- Eu pensei em mandar um e-mail falando: “Nada contra. Mas vocês estão desprestigiando a luta de gente que lutava noite e dia pra conseguir financiamento, pra conseguir tudo.
Z- No “Castelo” teve menos investimento que nos “Casais” ?
JB- Menos.
Z- Parece ser um filme muito barato, elenco reduzido.
JB- Foi um longa barato. Olha só: tinha uma cena que a personagem principal ia cortar o pescoço de uma moça. Uma moça chamada Margareth e na verdade, nós não tínhamos meios nenhum. Chegamos num paiol e eu mandei: “Abram um buraco. Tem que ser um de mais ou menos um metro de profundidade”. Os caras cavaram a noite toda, terminaram era uma meia-noite, por aí. Brincadeira...e você sabe que pelo sindicato hoje tem horário de trabalho, não é como a gente fazia antigamente. A atriz enviava a cabeça...o Darcy Silva que cuidava dos efeitos especiais fez duas madeiras no lugar da cabeça, juntava as duas pra acabar serragem por cima e depois pegava uma cabeça de um manequim, cortava e saia sangue. Mas a Margareth não queria ficar com a cabeça dentro do buraco, a gente preparou tudo, foi uma grande loucura tudo aquilo. A atriz deitou mas não passou cinco minutos e começou a gritar. Quando a gente abriu, ela estava cheia de bolhas no corpo...porque não sabíamos que ela tinha uma doença que não podia ficar com o corpo daquele jeito. Mas nós já tínhamos gasto muito tempo de filmagem com a menina. O dia em que eu encontrar com o Mastrocola (diretor de fotografia do filme), eu quero que você esteja junto pra ele lembrar dessa passagem. De madrugada, a gente sentado, eu de cabeça quente porque talvez nós íamos perder quatro ou cinco dias de filmagem. Tinha um rapaz que era o motorista da Kombi. Ele tinha ido até Bauru pra pegar lanche e trazer pro pessoal. A gente tomava lanche de madrugada. O apelido dele era Pé na Cova, ele era moreninho. Aí o Sérgio falou: “Seu Julius...tem uma solução pro nosso problema”. Ele me disse: “Olha as costas do Pé na Cova”. O rapaz estava sem camisa distribuindo o lanche de toda a equipe, e o Sérgio me falou: “As costas dele são igualzinhas as costas da Margareth”. Eu falei no mesmo momento: “Vamos parar com tudo ! Vamos rodar”. Então, quem terminou o filme foi o motorista da Kombi. Você acha que isso ia acontecer no cinema norte-americano ?
Z- O motorista da Kombi foi dublê da atriz ?
JB- E dublê nu, pelado. Quer dizer, ela estava pelada e ele também, nu. É esse cinema sofrido que o cara bota o nome de malditos filmes brasileiros ?
Z- Quanto tempo demorou as filmagens do “Castelo” ?
JB- Trinta dias. Era o prazo normal, em menos tempo ninguém faz. Só se fizer sexo explícito.
Z- A principal atriz do filme é a Esmeralda de Barros. Ela deu trabalho ?
JB- Não, só no começo deu um pouquinho. Também ela tinha chegado da Itália com aquele nome todo mas devagarzinho foi dando certo. Foi dando certo também porque ela começou a namorar o Dorival. Então, esse negócio até dá certo porque eles moraram juntos um bom tempo. Eles foram casados.
Z- Ela era a atriz de mais nome do filme. O resto era um pessoal mais inexperiente ?
JB- Quem tinha nome internacional era ela.
Z- Durante o filme tinha um velhinho que fica olhando as coisas. Quem ele era ?
JB- Era um lutador de luta livre famoso da cidade. Era o Roque, ele era lutador. O velhinho barbudão ele era lutador do canal 7, era “Reis do Ringue”, “Heróis do Ringue” alguma coisa assim. Na época, ele era famoso, fortão e ainda lutava.
Z- Como foi a idéia do senhor de botar no filme o Marquês de Sade ? De onde veio isso ?
JB- No roteiro trazia o fato de moças serem levadas para um determinado lugar, iam falar de psicologia. Alguma coisa, o castelo tinha que ser mal assombrado e nessa altura do campeonato a gente achou que ela podia ser uma sacerdotisa do Marquês de Sade pra justificar. Na verdade, ela não é uma professora e sim uma sacerdotisa. Houve uma cena muito bonita que não funcionou como eu queria, mas foi mais ou menos que abre uma porta e ela careca. Não rolou do jeito que a gente queria porque o Darcy errou a hora, ele acendeu as tochas antes da gente abrir as portas (risos). E depois já estava acessa ! Então, você não vai jogar fora. Tínhamos pensado as portas iam se abrir e as tochas iam disparar de acordo com o movimento da atriz.
Z- Eu acho que o longa peca um pouco pelo excesso de cenas eróticas. Elas tomam banho de cachoeira umas três vezes durante o filme.
JB- Isso é porque tinha que mostrar as meninas peladas. Eu ficava puto com isso, mas o cara falava: “Meu, se você não fizer isso nós não vamos fazer isso. Tem neguinho que fica lá na Boca com o filme debaixo do braço durante anos”. Eu conheço três, quatro que agora já devem ter morrido mas ele fez um filme sobre José de Alencar, obra-prima. Vê se alguém projetou o filme dele ? Então, isso era na época...mas isso vale em parte mesmo na atualidade. Você acha que se alguém fazer um longa sobre Castro Alves e as poesias vai dar bilheteria ? Televisão vai comprar ? Prefere comprar os lixos mexicanos lá de graça. Então, a gente tinha que fazer essa de apelação, porque isso é apelação.
Z- Tem uma outra cena que uma das meninas é meio lésbica que está dando banho na outra. A cena erótica, ficou legal.
JB- Pois é. Mas é uma cena pedida, não está no roteiro. Acredita ?
Z- O Dorival foi produtor e ator principal no seu filme. Como foi sua relação com ele ?
JB- Tranqüila. Nós voltamos a nos ver depois do filme.
Z- A fotografia do Mastrocola é muito boa também. Toda vez que elas estão no castelo, a câmera volta e filma o castelo de longe.
JB- Isso a gente faz a pedido. De uma passagem de cena pra outra você precisa ter imagens para não cair...eu não posso terminar uma cena como a televisão. Não pode ser cara com cara, precisa ter uma passagem. Na televisão não é outra linguagem por não ter tido experiência do cinema. Hoje em dia não, já tem gente muito boa.
Z- A montagem do filme é do Máximo Barro. Como você conheceu ele ?
JB- Quem chamou ele foi o Dorival. O Máximo já trabalhava na FAAP, dava aula lá e era um camarada respeitado. Bom montador, a gente se relacionou bem.
Z- O senhor acompanhou a montagem ?
JB- Não saia de lá. O diretor não pode sair do lado da moviola. No tempo da moviola, olha só. Tinha que cortar, emendar era todo um trabalho artesanal muito complicado.
Z- Como foi ter o Arlindo Barreto como assistente de direção ?
JB- Então...você conhece o Arlindo Barreto ?
Z- Não.
JB- O Arlindo é filho da Márcia de Windsor [famosa atriz e vedete do teatro de revistas já falecida]. Então, por ser filho ele queria um espaço. Tive um desentendimento com o Ubiratan e aí nesse desentendimento fui fazer uma viagem e estava faltando alguns takes. O que o Ubiratan fez ? Chamaram o Arlindo pra ele dar uma olhada dizendo que ele ia assinar o filme inteiro. Então, o Arlindo sairia como diretor do “Castelo das Taras”, mas quando a documentação chegou em Brasília os caras devolveram. Afinal, todas as atrizes já tinham feito relatório dizendo que o cineasta era eu e eles trocaram de nome no meio do caminho. Isso foi palhaçada do Ubiratan e ele teve que miar e botar o Arlindo de assistente. Mas eu nunca nem falei com ele, não o conheço. Um dia eu peguei o telefone liguei pro Arlindo perguntando: “Então, quer dizer que você é o diretor do longa ?”. Ele respondeu: “Eu estou aí meu. Estou na minha”. Uma pessoa digna de honra não aceita isso, o mundo da arte é complicado. Ele ficou de assistente, mas eu nunca vi o cara.
Z- O senhor teve assistente durante o filme ?
JB- Não. Quem na verdade era meu assistente...um dia apareceu na companhia um moleque, dezesseis anos. Sabe aqueles moleques que não saem de perto ? Ele falando que queria fazer cinema: “Quero fazer cinema e o meu pai já arrumou um emprego pra mim”. O pai dele era o Machado sócio de uma contabilidade que tinha lá na Boca. O moleque se chama Douglas Diniz Machado, e ele já trabalhava numa companhia que fazia comerciais. Acabamos amigos e aí quando os produtores estavam decidindo a equipe, eles queriam que um cara da Boca fosse o assistente de câmera. Mas eu falei: “Posso fazer um pedido ? Põe o garoto”. Eles acharam que eu era louco, mas eu sabia que ele era bom. Então, ele ficou como sendo assistente de câmera do Mastrocola mas ele conversava comigo e dava idéias: “Seu Julius, eu acho que isso fica bom...Mastrocola vamos fazer isso”. Na verdade, a gente fez o filme em três pessoas, aceitando sugestões tanto do Mastrocola como do Douglas Diniz Machado que eu nem sei onde está.
Z- A equipe do “Castelo” na verdade era uma equipe bem reduzida ?
JB- Sim.
Z- O Dorival era um produtor pequeno na Boca.
JB- Pequeno, pequeno. Por exemplo, na Boca tinha o Massaini, que na época tinha um puta dum nome. Quando o filme foi lançado e teve aquela bilheteria...o Massaini falou assim: “Julius, você vai trabalhar comigo”. Mas depois ele ficou doente. Ele era muito bom. O filho deve ser também, mas eu nunca trabalhei com ele.
Z- A bilheteria do “Castelo” foram satisfatória ? O Dorival Coutinho deve ter ganhado um dinheiro legal.
JB- Nossa, foi muito. Eu ganhei muito, imagina ele. Seria mais ou menos como um milhão de reais hoje. Comprei a propriedade onde eu moro aqui em Mairiporã, comprei casa pro meu filho, pra ex-mulher, essas coisas. A casa tenho até hoje tudo com dinheiro do “Castelo”.
Z- A coisa que o senhor mais ganhou dinheiro na sua vida foi o filme ?
JB- Foi, foi. Os outros filmes deram dinheiro mas como eu não era diretor...os roteiros o Wilson pagou direitinho.
Z- O senhor pensou em dirigir mais filmes ?
JB- Quando começou sexo explícito eu saí fora. Porque não tinha mais filmes normais, era só sexo explícito. Pra fazer esse tipo de cinema precisa de diretor ? Você acha que eu ia botar todo um trabalho e enfiar lá ?
Z- O Dorival também não fez sexo explícito.
JB- Não, não fez.
Z- Mas o Wilson Rodrigues, por exemplo fez bastante.
JB- Eu não sei.
Z- Ele fez bastante.
JB- Ele fez ?
Z- Fez uma porrada.
JB- Wilson eu não sei.
Z- Quem o senhor mais conheceu da Boca que chegou a ter amizade ?
JB- Era mais o pessoal da técnica, os eletricistas, o Kopchak, o Geraldão. Eu cheguei uma vez a ceder todos os meus refletores, eles foram filmar numa determinada cidade e eles não pagaram o camarada que filmou com eles. Aí esse cara reteve todos os meus refletores e perdi mais de trinta refletores. Eu não nem lembro o nome desse cidadão, mas era ali da Boca. O Tony Vieira, o Alfred Coen, conheci muito, a gente conversava muito. Gente boa.
Z- Aí quando começou o explícito você voltou a dar aulas ?
JB- Eu saí fora e voltei a dar aulas. Inclusive, estava lendo num site que a minha passagem pelo cinema foi meteórica. Mas não tinha como continuar porque a Boca inteira só estava fazendo filme de sexo. Ninguém mais punha dinheiro porque a produção dependia de produtores. Naquela época, explícito dava grana porque era algo proibido. Você imagina o que os caras não queriam ? Tinha aqueles cineminhas de guerra no centrão passando filme pornográfico desde as dez da manhã e sempre cheio. O produtor vai investir em filme sério cuja bilheteria é discutível ? Não vai, cinema parou.
Z- O senhor não tentou fazer publicidade, por exemplo ?
JB- Não, não tentei porque não tinha espaço. Não tinha espaço mesmo. Voltei a dar aulas de literatura pra escolas, mas eu continuei escrevendo roteiros, então eu tenho algumas coisas em casa, coisas prontas. Teve um roteiro que quase o pessoal do Circuito Haway compra mas depois não deu certo.
Z- O que o Dorival fez depois que acabou ?
JB- Ele tentou fazer outras coisas no setor e que eu saiba não conseguiu retornar.
Z- O seu filme é diferente dos outros longas da Boca porque é um filme de gênero. Pode-se até dizer que é um filme de terror.
JB- É.
Z- De onde veio essa idéia de fazer um filme de terror ?
JB- Na verdade, eu sempre fui fã do Hitchcock. Vários contos que eu escrevi publicados aqui no jornal da cidade são contos que mexem com o extraordinário, o anti natural. Eu sempre gostei dessa área, sempre gostei. Assistia os filmes do Hitchcock. Quando você perguntou de cara internacional que tinha me influenciado...é que ele morreu há tanto tempo que a gente nem lembra. Mas todos os filmes dele eu vi várias vezes.
Z- Cinema europeu já não era tanto a área do senhor ?
JB- Não, não. Eu gostava mais de clássico, da área do Hitchcock e se eu pudesse eu tinha puxado muito mais. Mas se puxar muito vai assustar o público e vai descaracterizar....
Z- O padrão erótico que iria pagar o filme.
JB- Exatamente.
Z- Tem uma cena muito legal que o ator principal está possuído e ele começa a cuspir sangue.
JB- Primeiro era espuma. Depois ele gospe abacate. Porque o pastor era possuído pelo espírito e sai através da sacerdotisa.
Z- Quando o senhor chegou pro Dorival falando que o filme ia ser de terror não teve problema ?
JB- Depois que o roteiro estava pronto eles falaram: “Vamos lá”. Então, fizemos lá sem problemas.
Z- E os filmes do Mojica o senhor gostava ? Porque ele sempre fazia esse cinema de gênero, de terror como o senhor.
JB- O Mojica é meu amigo. Mas eu não gostava muito porque não tinha muita riqueza, era feito no tapa mas era um camarada lutador. Ele não tinha muita bagagem pra estar nessa área, mas ele era um autodidata.
Z- Mas o senhor sempre pensou em voltar pra essa área de cinema ?
JB- Sempre. E eu acho que vai acontecer agora. Muitos contatos que eu estou fazendo e é capaz que eu consiga produzir uma série pra televisão. A minha intenção é que seja a Rede Record, mas não tenho contrato nenhum fechado. Quero ir pra essa emissora por conta do assunto que eu quero tratar. Eu quero fazer uma série sobre os milagres que acontecem nas igrejas protestantes, mas essas conversões que o cara sai andando, tem uns negócios que não são verdadeiros mas tem muita verdade. Fazer uma série sobre esses milagres é a minha grande intenção. Como a Record tem mais ou menos essa cara, daí o meu interesse em apresentar o projeto lá pra eles. Vou ver se essa semana já tenho um contato com eles.
Z- O senhor continua acompanhando o cinema brasileiro ? Vendo filmes ?
JB- Acompanho como espectador.
Z- Seu Julius, o senhor chegou a ver o “Tropa de Elite” ?
JB- Não, não vi “Tropa de Elite”. O que eu vi várias vezes me perguntando como é que com tantos problemas de filmagens deu tanto sucesso foi aquele filme que aparece os bandidos na favela...
Z- “Cidade de Deus”.
JB- “Cidade de Deus”. Se nós fomos parar e eu for mostrar você, você não vai acreditar nas posições incríveis daquela câmera. Então, são coisas que eu pergunto: “Como o cara fez isso ? Por que ele fez ?”. Os efeitos... “Carandiru” é outro filme com tema que o público sempre quer. Mas também eu nem sei se tem tido bilheteria, essas coisas. Porque ver um filme como “Aluga-se Moças”, não tem nada haver. Recomende ao seu amigo do Malditos Filmes Brasileiros pra passar esse (rindo). Não tem nada haver ?
Z- Seu Julius, como o senhor considera o seu filme hoje ? O senhor considera ele um grande filme ? Um filme médio ?
JB- Hoje eu considero um filme com bom tema mas não consegui fazer o que queria por falta de negativo e equipamento. Foi um produto de combate que deu certo. Se eu fosse filmar hoje, se tivesse orçamento aí a coisa ia ser diferente. Nenhum diretor nacional consegue fazer o que ele quer por falta de dinheiro e equipamento, não consegue. Como você vai fazer a cena de um carro caindo na hora que eles quiserem ? Então, nós temos que ficar restrito a um orçamento.
Z- Para gente encerrar seu Julius, o que o senhor acha que fica do senhor pro futuro ? Dos trabalhos da Boca...
JB- Eu acho que fica pra mim a tranqüilidade que eu posso e que eu sei fazer. Tenho plena consciência das dificuldades porque um profissional dessa área depende de uma retaguarda e você se afasta a retaguarda fica cada vez mais distante. Eu tenho um projeto com roteiro que ficaria muito caro mas seria uma grande realização. Tentei entrar em contato com o Edir Macedo pra fazer o filme de um assunto que nunca foi feito um filme. Seria a volta de Cristo hoje em 2008, mas com efeitos especiais, usando computação, tudo que poderia se usar. Aí a gente ia mostrar pra esses gringos o que é cinema.
Z- O Alfredo Sternheim recentemente lançou o “Cinema da Boca: Dicionário de Diretores”. Tem todos os cineastas do período, a turma do explícito, o Deny, o Carlão, o Jean. Não aparece o senhor. Como o senhor se sente? Tem outros diretores da Boca que não estão aqui, o Rodrigo Montana, o Novotny.
JB- Eu não me preocupo com isso. Porque o que eu tinha que fazer, eu fiz. Quando nós fazíamos, não estávamos pensando na projeção nacional, passar para posteridade. Para mim foi até surpresa quando alguém me ligou falando que eu estava na internet, eu pensei: “Eu na Internet? Eu matei quem?” (risos). O Carlão nunca se preocupou com isso. Então, essa preocupação sadia de se fazer uma análise do passado surgiu agora. Quem gosta, gosta. Quem não gosta, que se dane.