Dossiê Julius Belvedere
MESTRE
Por César Zamberlan, especialmente para a Zingu!
Nunca consegui e talvez nunca o consiga chamar de Julius. Escrever sobre Julius também é difícil. Para mim ele é o “mestre”, o professor de português do colegial, professor que modificou totalmente os conceitos que eu tinha sobre o trabalho do professor e que talvez tenha feito com que eu me tornasse professor também.
Estudávamos num colégio fazenda em Mairiporã, um lugar belíssimo, e ele se recusava a dar aulas na sala de aula. Levava a turma - tigrada como ele chamava - para o gramado e embaixo de uma árvore, com alunos deitados no colo das alunas – por quê não? –, estudávamos literatura. Era tudo que queríamos, éramos jovens com menos de 15 anos, seduzidos por um mestre que não nos tratava como crianças idiotas e nos apresentava Freud, Schopenhauer, Lobato, Machado, Dostoievski etc.
Ele era um mistério para todos nós, uma pessoa diferente, um estranho no ninho em meio à boçalidade e caretice da escola. Um dia, eu jogava basquete na quadra quando uma mulher lindíssima com um vestido curto demais para a imaginação de um adolescente perguntou se eu por acaso conhecia o professor Julius. Ele não usava esse nome, o conhecíamos por Russel. Mas, pela descrição, “uma cara bem baixinho e inteligente”, imaginei logo que fosse o mestre. Indiquei a casa dele que ficava dentro da escola no alto do morro e fiquei extremamente curioso em saber quem era aquela mulher. Pela beleza, bem que ela poderia ser uma atriz de cinema. Devia ser.
Tempos mais tarde, o professor já tinha nos conquistado totalmente com suas aulas e histórias. Ficamos amigos e íamos, um grupo de seis alunos, toda sexta-feira, no intervalo entre a sua aula e a aula de física, tomar café na casa dele e da professora Janete, sua mulher. Eles nos serviam café com bolo e lá ficávamos conversando. Obviamente, quase nunca voltávamos para a aula de física.
Foi numa dessas sextas que descobri que ele era cineasta. Vi num canto da estante da casa uma lata enorme e perguntei o que era aquilo. Ele disse que era um filme 35 mm e me mostrou, cheio de dedos, os fotogramas de “Castelo das Taras”, deixando claro que o título era uma imposição comercial para aumentar o público. A partir dali ficamos ainda mais amigos e passamos a conversar horas e horas sobre cinema. Isso foi em 1985 ou 1986. Logo depois, ele foi demitido, brigamos com a escola inteira por causa dele, mas o perdemos.
O reencontrei cerca de cinco anos depois, quando estava no último ano da faculdade de jornalismo. Ele me ligou - sei lá como arranjou meu telefone - e me chamou para trabalhar com ele numa revista em que era sócio. A revista faliu logo - o que era de se esperar porque ele não tinha, como não tem até hoje, o menor tino para lidar com dinheiro. Nessa época, graças a ele, pude entrevistar e conhecer Leonel Brizola e Darci Ribeiro, amigos dele da época do PDT. Com o fim da revista, nos perdemos de novo e só fomos no reencontrar três anos depois em Mairiporã. Eu editava um jornal, ele chegou, me informou por onde tinha andado nesses anos; entrou lá sem emprego e saiu contratado. Depois, viramos sócios em outros jornais que fundávamos e falíamos.
Nesse tempo de jornal, passávamos horas e horas comentando os filmes que tínhamos visto para o desespero da equipe que queria que terminássemos logo as matérias para mandar o jornal para a gráfica. Lembro de termos comentado seqüência por seqüência de “Nós que nos amávamos tanto” de Ettore Scola, filme que ele via pelo menos uma vez por semana. Falávamos também de roteiros que ele queria filmar, da concorrência desleal dos filmes norte-americanos e de como o fazer cinema havia se modificado.
Voltamos a nos perder quando fechei os jornais, sai de Mairiporã e me mudei para São Paulo. No entanto, fui surpreendido recentemente por pessoas que o procuravam ansiosamente para falar sobre seu filme e sobre os filmes em que ele trabalhou. Primeiro, a pesquisadora Laura Cánepa, companheira de site (cinequanon.art.br), que o procurava para sua tese de mestrado sobre filmes de terror feitos no Brasil. Ela passou uma lista de nomes de cineastas que procurava e se assutou quando disse que era amigo de Julius. A segunda ocorreu recentemente quando perguntei para Carlão Reichembach num evento em Belo Horizonte se ele conhecia o Julius. Carlão disse que nunca mais havia ouvido falar dele e logo arrematou: “Porra, se o Matheus da Zingu! souber disso vai ficar louco. Chegando em São Paulo, você precisa contar isso a ele”. Nem tive tempo de fazer isso, dias depois de ter chegado a São Paulo, o Matheus me escreve, pede os contatos de Julius e um texto sobre o Julius, ou melhor, Russel, ou simplesmente, mestre.
MESTRE
Por César Zamberlan, especialmente para a Zingu!
Nunca consegui e talvez nunca o consiga chamar de Julius. Escrever sobre Julius também é difícil. Para mim ele é o “mestre”, o professor de português do colegial, professor que modificou totalmente os conceitos que eu tinha sobre o trabalho do professor e que talvez tenha feito com que eu me tornasse professor também.
Estudávamos num colégio fazenda em Mairiporã, um lugar belíssimo, e ele se recusava a dar aulas na sala de aula. Levava a turma - tigrada como ele chamava - para o gramado e embaixo de uma árvore, com alunos deitados no colo das alunas – por quê não? –, estudávamos literatura. Era tudo que queríamos, éramos jovens com menos de 15 anos, seduzidos por um mestre que não nos tratava como crianças idiotas e nos apresentava Freud, Schopenhauer, Lobato, Machado, Dostoievski etc.
Ele era um mistério para todos nós, uma pessoa diferente, um estranho no ninho em meio à boçalidade e caretice da escola. Um dia, eu jogava basquete na quadra quando uma mulher lindíssima com um vestido curto demais para a imaginação de um adolescente perguntou se eu por acaso conhecia o professor Julius. Ele não usava esse nome, o conhecíamos por Russel. Mas, pela descrição, “uma cara bem baixinho e inteligente”, imaginei logo que fosse o mestre. Indiquei a casa dele que ficava dentro da escola no alto do morro e fiquei extremamente curioso em saber quem era aquela mulher. Pela beleza, bem que ela poderia ser uma atriz de cinema. Devia ser.
Tempos mais tarde, o professor já tinha nos conquistado totalmente com suas aulas e histórias. Ficamos amigos e íamos, um grupo de seis alunos, toda sexta-feira, no intervalo entre a sua aula e a aula de física, tomar café na casa dele e da professora Janete, sua mulher. Eles nos serviam café com bolo e lá ficávamos conversando. Obviamente, quase nunca voltávamos para a aula de física.
Foi numa dessas sextas que descobri que ele era cineasta. Vi num canto da estante da casa uma lata enorme e perguntei o que era aquilo. Ele disse que era um filme 35 mm e me mostrou, cheio de dedos, os fotogramas de “Castelo das Taras”, deixando claro que o título era uma imposição comercial para aumentar o público. A partir dali ficamos ainda mais amigos e passamos a conversar horas e horas sobre cinema. Isso foi em 1985 ou 1986. Logo depois, ele foi demitido, brigamos com a escola inteira por causa dele, mas o perdemos.
O reencontrei cerca de cinco anos depois, quando estava no último ano da faculdade de jornalismo. Ele me ligou - sei lá como arranjou meu telefone - e me chamou para trabalhar com ele numa revista em que era sócio. A revista faliu logo - o que era de se esperar porque ele não tinha, como não tem até hoje, o menor tino para lidar com dinheiro. Nessa época, graças a ele, pude entrevistar e conhecer Leonel Brizola e Darci Ribeiro, amigos dele da época do PDT. Com o fim da revista, nos perdemos de novo e só fomos no reencontrar três anos depois em Mairiporã. Eu editava um jornal, ele chegou, me informou por onde tinha andado nesses anos; entrou lá sem emprego e saiu contratado. Depois, viramos sócios em outros jornais que fundávamos e falíamos.
Nesse tempo de jornal, passávamos horas e horas comentando os filmes que tínhamos visto para o desespero da equipe que queria que terminássemos logo as matérias para mandar o jornal para a gráfica. Lembro de termos comentado seqüência por seqüência de “Nós que nos amávamos tanto” de Ettore Scola, filme que ele via pelo menos uma vez por semana. Falávamos também de roteiros que ele queria filmar, da concorrência desleal dos filmes norte-americanos e de como o fazer cinema havia se modificado.
Voltamos a nos perder quando fechei os jornais, sai de Mairiporã e me mudei para São Paulo. No entanto, fui surpreendido recentemente por pessoas que o procuravam ansiosamente para falar sobre seu filme e sobre os filmes em que ele trabalhou. Primeiro, a pesquisadora Laura Cánepa, companheira de site (cinequanon.art.br), que o procurava para sua tese de mestrado sobre filmes de terror feitos no Brasil. Ela passou uma lista de nomes de cineastas que procurava e se assutou quando disse que era amigo de Julius. A segunda ocorreu recentemente quando perguntei para Carlão Reichembach num evento em Belo Horizonte se ele conhecia o Julius. Carlão disse que nunca mais havia ouvido falar dele e logo arrematou: “Porra, se o Matheus da Zingu! souber disso vai ficar louco. Chegando em São Paulo, você precisa contar isso a ele”. Nem tive tempo de fazer isso, dias depois de ter chegado a São Paulo, o Matheus me escreve, pede os contatos de Julius e um texto sobre o Julius, ou melhor, Russel, ou simplesmente, mestre.
César Zamberlan é professor universitário e editor da revista eletrônica Cinequanon