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Carta ao leitor.

EM DEFESA DE DAVID CARDOSO

Me chegou a feliz notícia que um filme do David Cardoso foi lançado em DVD. Num primeiro momento, fiquei bastante feliz: trata-se de um dos maiores injustiçados da história da nossa cinematografia. E é ótimo que sua obra continue sendo divulgada, já que o Canal Brasil vem fazendo coisas extraordinárias por ele. Sei que muitos dos leitores não gostam de David, achando ele um cara machista, chinfrim, etc. Mas essa não é a imagem verdadeira dele.

Antes de julgá-lo é importante saber certos detalhes da vida desse homem matogrossense. David sempre fez filmes do gênero pornochanchada, para um público masculino que pagava ingresso sabendo o que iria ver. Tudo bom, pornochanchada são aqueles filmes eróticos softcore. Coisas feitas sem pretensão artística, uma coisa baixa vista por “gentinha” né? Quem dizia isso eram os críticos (especialmente cariocas) de décadas atrás, que se diziam revolucionários mas eram na verdade (bastante) reacionários.

Amigo leitor, você viu todos os longas do Cardoso? Realmente tem muita coisa descartável. “Dezenove Mulheres e Um Homem”, por exemplo é muito boboca mesmo, ele fica se achando o gostoso e tudo mais. Mas por exemplo amigo leitor, você já viu um filmaço do Jean Garret que ele produziu: “Amadas e Violentadas”? Trata-se de um thriller psicológico do mais alto nível, acreditem se quiser. Se Quentin Tarantino tivesse visto esse longa-metragem, com certeza ele teria levado David para fazer filmes com ele lá nos Estados Unidos da América.

E o que dizer de um filme como “A Noite das Taras I”? Uma obra-prima que Walter Hugo Khouri assinaria com a maior tranqüilidade. O segundo filme e continuidade deste é uma droga mesmo, infelizmente. Mas o que causa maior rebuliço entre os fãs deste grandioso diretor/ator/produtor é mesmo o episódio “O Pasteleiro” de “Aqui Tarados!” (pelo título vê-se como David sabia se comunicar com as massas dos salões de cinema daquela época). Não viu minha senhora? Pois então, dê uma chance ao galã matogrossense e veja o filme dele. A musa Alvamar Taddei é uma mariposa de esquina que é totalmente transformada em pastel pelo cliente (e pasteleiro) John Doo. Claro, ele também realizou picaretagens adoráveis (como “Corpo e Alma de Mulher”; “As Seis Mulheres de Adão”), mas sem nunca perder um talento nato por ser um autodidata.

Os filmes de David Cardoso sempre tiveram grande produção. Seus diretores habituais eram poetas como Jean Garret, Ozualdo Candeias e Ody Fraga. Quando não, ele próprio dirigia os longas que produzia. Seus técnicos também eram quase fixos na sua produtora, a Dacar. Seu fotógrafo era o meu ídolo Cláudio Portioli, que teve diversas vezes seu talento reconhecida em festivais nacionais e por críticos competentes (como Rubem Biáfora). Seu montador habitual era Jair Garcia Duarte, sobrinho do querido Walter Wanny, que embora tenha montado centenas de filmes na Boca, ganhou prêmios por ser um grande editor. Por “A Dama do Cine Shangai” ganhou o Kikito de melhor montagem e por “O Olho Mágico do Amor” recebeu o troféu da Associação Paulista dos Críticos de Arte.

Atualmente, um homem como David tem mais chances em programas como “Superpop” e congêneres para aparecer na mídia. Talvez ele próprio tenha cavado sua cova e essa imagem pública de machão. Em todas suas entrevistas, sempre fez questão de destacar mais as antigas namoradas, as grandes façanhas sexuais e não das grandes façanhas cinematográficas, os grandes públicos que iam ver seus filmes.

Conheci algumas pessoas que trabalharam com ele. Todas são unânimes quanto ao profissionalismo de David, sua exigência permanente com horários, seus almoços em equipe (que sempre incluiu assistentes de câmera, eletricistas, foquistas, sem qualquer tipo de preconceito). Tendo conhecido David pessoalmente, posso dizer que essa pose de “grande macho” que ele sempre explorou se deve mais a sua ingenuidade.

David é um cara autodidata, veio da roça para a São Paulo como centenas de migrantes brasileiros. Seus pais não eram embaixadores e mesmo doutores (como de seus colegas do Cinema Novo). Ele não freqüentou os bancos das grandes universidades e não leu grandes autores e filósofos. Mesmo assim, investiu muito de sua vida e trabalho pelo cinema brasileiro. Com empenho, trabalho e muita garra profissional foi porta-voz de uma geração. Como ele não sabe falar difícil como os cineastas de Copacabana e não sabe entrar nos “esquemas das estatais”, só consegue aparecer na grande imprensa por sua face de grande namorador. Ele mesmo criou e deixou que a mídia explorasse essa face dele. Muitas vezes os mesmos assuntos são repetidos em inúmeras e inúmeras entrevistas, deixando seus próprios fãs (como eu) com sono. Porém foi e sempre será muito mais interessante um momento cinematográfico em que um autodidata com todos seus defeitos e qualidades fazia diversos filmes pagáveis. Alguns ruins, mas muitos de grande qualidade. Hoje não, temos grandes “gênios” saídos das melhores universidades de cinema, que leram muito, e que são filhos de nossas “melhores famílias”, muitas vezes filhotes de ministros e embaixadores. Mas o grande problema é que com alguma exceção esses jovens “artistas” não tem qualquer vivência e estão fazendo filmes cada vez mais horríveis. E deixando o nosso cinema cada vez pior.

Matheus Trunk
Editor-chefe da Zingu!



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