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Coluna do Biáfora

CIDADE DAS MULHERES

Por Rubem Biáfora, artigo selecionado por Sergio Andrade

Apenas seis estréias regulares a registrar. Por ordem de procedência, as seguintes: 2 italianas (“As Noites de Orgias da SS”, “O Super Vigarista”); 2 de Hong Kong (“O Dragão de Shao Lin”, “Bruce Lee, o Super Herói”); 1 americano-canadense (“Agenciadores da Morte”) e 1 nacional (“A Volta de Jerônimo”). O panorama, como facilmente se depreende (e para usar uma linguagem momentosa) é do mais puro e geral recesso. De tudo.

Saindo porém da rotina, do conformismo, ou melhor, da “tradição”, entre outras programações especias vejamos a de sábado próximo no “Cineclube Luz”. Já quebrando mais uma regra, dois filmes. Um deles, porque a cópia existente no Brasil vai ser devolvida à Alemanha, coisa que absurdamente já aconteceu com dois clássicos singulares e maravilhosos dos anos 20, como “Torgus”, de Hans Kobe, e “Carlos e Elizabeth”, de Richard Oswald. O filme em questão agora é “O Médico de Stalingrado” dirigido em 57 pelo húngaro engagé Geza Radvanyi, e será exibido às 16:30. Na sessão seguinte, “Woozzeck”, de 1967 e versão reverente da ópera de Alban Berg baseada no clássico teatral de George Buchner e dirigida por Joachim Hess.

E fora da rotina, surpreendendo até mesmo nós próprios, que jamais iríamos supor um dia teríamos que contrariar o consenso médio para defender um filme de Fellini considerado como causa ingrata, somos obrigados a dizer que gostamos muito mais do que esperávamos de “A Cidade das Mulheres” (La Città Delle Donne), ainda hoje em cartaz no Coral. De Fellini sempre fomos adeptos incondicionais só de I Vitelloni e Il Bidone. Suas outras obras pelo sarcasmo, mas principalmente mais pelo gigantismo da estrutura e por seus permanentes fade-outs e recomeços de ritmo e história, e um tanto pelo onírico um tanto grotesco demais, nos intrigaram sempre. Mas tais coisas no filme atual têm seu lugar certo, têm uma certa funcionalidade indubitável. O gigantismo existe. Lá pelo terço final, pelo menos uma hora de pirotécnica e farândulas são talvez redundantes e até causam diluição argumental e dramática. Mas é filme que deve ter sido dificílimo de conceber e de realizar. E, incrível para este cineasta sempre acostumado ao bafejo geral e à compreensão de certo modo fácil, uma obra de coragem. Uma coragem que só com ele tem sentido. E também não deixa de ser algo tocante a lealdade que teve para com o malogrado Ettore Manni, grande ator que o cinema da Itália sempre injustiçou com e cujas cenas o cineasta se recusou a eliminar depois da morte acidental e até reescreveu e readaptou o roteiro para conservar.

E por falar nos Cines Coral, lá também está hoje um clássico que quando vimos a seu tempo, em 39, nos pareceu realmente clássico e empolgante, mas depois, a “reprise” em 49, e sucessivas apresentações em cineclubes e circuitos normais, nos deixam sempre com a impressão de esquema e caricatura: “Stagecoach” (“No Tempo das Diligências”). Ainda no mesmo programa, mais uma oportunidade para renovar um sopro de pureza e inocência criadora com os maravilhosos Laurel & Hardy em uma de suas obras definitivas: “Filhos do Deserto”, “longa” de 1934.

E voltando a Fellini. Iconoclastia em seu enfoque machista ou antifeminista? Cremos que não. Mesmo porque, se esse campo pertence a alguém, é principalmente a ele, a quem ninguém poderá acusar de misoginia, sobretudo depois da comovedora evocação da Mamma, com Puppela Maggio em Amarcord.”

*Publicado originalmente no “O Estado de S. Paulo” de 26 de julho de 1981



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