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Dossiê Guilherme de Almeida Prado

Entrevista com Guilherme de Almeida Prado
Integral
Por Gabriel Carneiro e Marcelo Carrard
Fotos de Gabriel Carneiro

Legenda: GAP - Guilherme de Almeida Prado; Z M - Zingu!, Marcelo Carrard; Z G - Zingu!, Gabriel Carneiro.

Z M – Observamos em seu trabalho que há uma referência muito grande na cinematografia de gênero. Gostaríamos de saber como foi a sua formação como cinéfilo, antes da faculdade, durante...


GAP – Minha formação foi simplesmente assistindo filmes. Na realidade, embora tenha assistido um ou outro filme antes dos 14 anos, eu comecei a assistir filmes com 14 anos. Até essa idade eu morei numa fazenda. Meus pais me levavam para assistir desenho animado do Walt Disney, qualquer coisa do gênero, mas me lembro de ter assistido poucos filmes antes. Depois disso, passei a assistir filme quase todo dia, e, às vezes, até duas vezes por dia. Eu morava em Ribeirão Preto. Dos 14 aos 17, morei nessa cidade, que na época tinha 12 ou 14 salas de cinemas. Naquela época tinha reprises, e os filmes geralmente ficavam uma semana em cartaz. Dava para eu assistir até dois filmes por dias, se quisesse, e todos inéditos para mim. Eu ia muito. Não chegava a ver dois filmes por dia, porque eu estudava e fazia outras coisas, mas sábado e domingo, eu assistia dois filmes por dia. Foi principalmente assim. Eu me mudei de Ribeirão com 17 anos, e vim para São Paulo, e obviamente aqui (risos) tinha milhares de filmes para assistir. Havia reprises, o que me possibilitou assistir não só aos filmes do começo dos anos 70, como também filmes de 66, 67. Havia muito filme para exibir. Havia os filmes japoneses da Liberdade. Era uma infinidade de filmes. Tornou-se normal eu assistir a dois filmes por dia. Às vezes eu assistia ao mesmo filme duas vezes. Minha formação foi principalmente vendo filmes. Também lia alguma coisa de cinema, alguns livros de cinema – tanto livro técnico, como livros de teoria cinematográfica.

Z M – E quanto ao gênero policial mais especificamente?

GAP – As pessoas acham que o policial é meu gênero favorito. Não é. Se fosse para escolher um gênero favorito, seria o faroeste, é o que eu gosto mesmo. Adoro faroeste. A questão é que filme policial é o gênero mais barato. No Brasil, temos pouco dinheiro. Policial é um gênero que dá para fazer filmes baratos, mas que não pareçam baratos, que não pareça que houve falta de dinheiro. Se fizer um faroeste sem dinheiro, vai ficar um faroeste vagabundo; um musical sem dinheiro vai ficar ridículo. O noir não. Lembro-me que quando filmávamos A Dama do Cine Shanghai, havia muita coisa que simplesmente não iluminávamos, ficava escuro, porque obviamente não dava para você trocar, tirar o carro, mudar o poste, etc, não dava para fazer nada disso, então o que fazíamos era simplesmente não iluminar, iluminávamos o ponto que achávamos interessante mostrar. Não é que eu não goste, eu gosto de filme noir, mas como falei, não é meu gênero predileto. Acabei fazendo mais filmes nessa linha porque a condição financeira permitiu. Fazer um filme que não pareça tão barato, e que pelo menos pareça que não faltou dinheiro. Acho que o pior tipo de filme é aquele que a gente assiste e diz: “se o cara tivesse mais dinheiro, o filme ficaria melhor, mas ficou aquela droga porque não tinha”. Se for para fazer um faroeste e não tiver cenários e grana, vai ficar vagabundo. Acho que foi isso que me levou a me interessar mais pelo policial. Eu tinha e tenho outros projetos que não tem nada a ver com noir, mas esses projetos simplesmente não dão certo, não saem do papel.

Z M – Como foi sua formação como cinéfilo, de consumidor de filmes em grande número, com toda a possibilidade que tem numa cidade como São Paulo, ainda mais naquela época? Quando você entrou na faculdade de cinema...

GAP – Não entrei na faculdade de cinema...

Z M – Não chegou a fazer faculdade...

GAP – Eu fiz engenharia.

Z G – Saiu de engenharia para fazer cinema.

GAP – Não, eu saí de Ribeirão Preto para fazer cinema. Era impossível fazer cinema em Ribeirão Preto, e meu pai era muito claro – ele me proibiu de fazer cinema. Ele disse: “se você quiser fazer cinema, você vai por conta própria; se você quiser fazer engenharia, direito, ou medicina, eu pago”. (risos) Então me pareceu prático vir para São Paulo fazer engenharia. Eu tinha facilidade com matemática. Nunca quis ser médico, e me parecia que a coisa mais fácil era engenharia. Pensei em fazer direito, mas um tio meu, desembargador, convenceu-me que não era uma boa. Principalmente porque eu queria fazer cinema. Eu falava “quero fazer cinema”. “Então faça engenharia, engenharia sempre serve para alguma coisa”, retrucava ele. Acho que ele tinha razão. Eu vim, na realidade, de Ribeirão para São Paulo, para fazer engenharia, mas com a intenção de fazer cinema. Acabei me formando engenheiro, porque não consegui fazer cinema. Sou formado em engenharia civil pelo Mackenzie. Nesse período todo eu não consegui fazer cinema. Consegui fazer filmes em Super-8, escrever roteiros, mas conseguir mesmo trabalhar, fazer cinema, não era tão fácil como eu pensava quando eu vim de Ribeirão Preto.

Z M – Como realizador você seria um autodidata, que vai aprendendo na prática...

GAP – Totalmente. Eu fui freqüentar a ECA [Escola de Comunicações e Artes, da USP] entre o meu primeiro e segundo longa-metragem. Eu freqüentei a ECA como ouvinte, por um ano. Esse ano foi minha única experiência acadêmica com cinema. Houve um acordo entre o sindicato, o SATED, e a ECA, que permitia que as pessoas que já trabalhavam e tinham registro profissional, freqüentassem a ECA como ouvintes. E eu fui o único que se inscreveu para esse acordo (risos).

Z M - Chegou a ter aula com algum professor...

GAP – Eu tive aula com o Chico Botelho, com o Wilson Barros... a ECA tinha outros professores muito bons dos quais eu não lembro o nome, tinha um montador famoso. A faculdade tinha uma série de coisas incríveis, que os alunos nem aproveitavam muito. Naquela época não existia nem VHS, então para se ver um filme, você tinha que vê-lo no cinema. Você tinha que alugar a cópia, que custava caro, e a ECA alugava cópias. Os alunos nem ligavam... Eu lembro que fiquei sozinho uma semana com a cópia de Cidadão Kane, na moviola, olhando de trás para frente. Alexandre Nevsky, do Eisenstein, também. A cópia ficava lá uma semana. Você podia projetar, e você podia ir para moviola, e brinc... para mim aquilo era incrível, não tinha DVD, não tinha nada. Ou você via o filme no cinema ou não tinha como vê-lo. Podia-se ir parando, olhando, fotograma por fotograma. Esse ano que fiquei na ECA foi interessante por causa disso. Eu tinha acesso a um monte de outras coisas, tinha aula de fotografia, tinha uma série de outras coisas que eu aproveitei. Acabei conhecendo um monte de gente que acabou trabalhando no meu segundo longa, A Flor do Desejo.

Z G – Como você acabou caindo na Boca?

GAP – É uma história muito comprida...

Z M – Era o único lugar em que se poderia exercitar a profissão.

GAP – Havia outros. Eu tentei antes em filmes do Roberto Santos. Mas como falo: a única porta que abriu foi lá na Boca. Duas pessoas foram importantes. Uma foi o Odon Cardoso, pessoa que eu já conhecia mesmo antes da escola de engenharia, e depois ele foi meu colega durante três anos. Ele largou no meio e foi trabalhar numa empresa de publicidade, a Spectrus. Quando eu acabei a engenharia, eu estava um pouco desesperado, porque teria que arranjar um emprego de engenheiro, e era o momento certo de arrumar um emprego de engenheiro. Eu tinha escrito alguns roteiros, e eu os mostrei ao Odon Cardoso, que estava trabalhando nessa empresa de publicidade, e que queria fazer longas. Eles não gostaram muito do roteiro, mas me convidaram para escrever outros. Na realidade, para escrever um roteiro, que seria dirigido pelo Roberto Santos – eu nem sei se o Roberto Santos ficou algum dia sabendo desse projeto. (risos) Mas me convidaram para escrever esse roteiro. O dono dessa produtora era de Ibitinga, no interior, e ele queria fazer um documentário sobre a cidade. O grupo era todo muito politizado, tinha saído da ECA - obviamente antes do período que eu fui para a ECA - extremamente politizado. Ninguém queria fazer a droga do documentário de Ibitinga, e eu cheguei lá e falei: “está bem, eu faço”. Nunca tinha ido para Ibitinga, nem sabia onde ficava Ibitinga. Fui para Ibitinga, fiz. Nessa altura, o Odon tinha desistido de ser fotógrafo, e ia ser produtor. Ele, então, chamou o Cláudio Portioli para fotografar. Naquele momento ele estava meio parado. Ele geralmente fazia os filmes do Fauzi Mansur, e acho que ele tinha brigado com Fauzi, algo tinha ocorrido. Ele foi lá fazer a fotografia do tal curta de Ibitinga. Durante as filmagens, o Portioli falava muito que eu não era documentarista - e não sou mesmo! Eu já fiz documentário, mas não gosto. Ele falava: “você fica enquadrando, você dirige, você trata os personagens como se fossem atores. Você devia fazer ficção!” (risos) “É o que estou querendo”, eu dizia. Ele respondeu: “Vou te arrumar um filme lá na Boca para você fazer”. Honestamente, não sei se ele falou com muita sinceridade isso. Eu acabei brigando com o produtor na hora de montar o curta-metragem, o Odon também brigou, e nós dois fomos procurar o Portioli. “Portioli, nós dois estamos desempregados; você disse que ia arranjar trabalho para gente!” Foi questão de sorte. Nesse momento, o Portioli ia começar a fazer um filme, produzido pelo David Cardoso e dirigido pelo Ody Fraga. Ele sempre trabalhava com outro diretor, e não sei por que, ele não estava com esse assistente de direção. Cláudio também estava precisando de um assistente de câmera, então eu e o Odon fomos trabalhar nesse filme da Boca. Minha parceria com o Ody começou aí, assim como com o Portioli – dos oito filmes em que fui assistente de direção na Boca, seis ou sete ele fotografou. Eu era engenheiro, que já tinha estudado cinema, além de tudo. Era relativamente fácil trabalhar na Boca... não tinha muito outros assistentes de direção com a minha capacidade. Em um ano e meio eu fiz oito filmes.

Z M – E esse primeiro filme com o Ody, qual é?

GAP – Se chamava E Agora, José?

Z G – A Tortura do Sexo.

GAP – Eu que inventei esse título de brincadeira e o David Cardoso gostou (risos). Todos os filmes dele tinham sexo no título, e esse era um filme sobre tortura, então eu brinquei: “tortura do sexo”. O Ody desde o começo insistia que não podia mudar o nome. Eu achei que ia trocar, que não ia se chamar E Agora, José?. Disso, ele não abria mão, tanto que acabou ficando com os dois nomes. O David obviamente queria eliminar E Agora, José? totalmente, mas o Ody não abria mão do nome. Foi bacana, e acabei fazendo uma série de filmes com o Ody e com outros diretores da Boca.

Z G – Com David Cardoso...

GAP – Trabalhei também. Acho que três ou quatro produções que fiz eram do Cardoso. Então fiz um curso rapidíssimo, intensivo, na Boca.

Z M – Como era o David Cardoso produtor? Ele ficava muito em cima dos diretores?

GAP – Não, não. Ele não ficava. Quando fizemos E Agora, José?, ele quase não ia ao set. Quando fizemos, ficávamos a meio quarteirão do escritório dele. Quase tudo foi filmado numa casa, que depois virou escritório dele, e que estava a meio quarteirão do escritório antigo. Não lembro de ele ter ido na filmagem, ou de ter enchido a paciência do Ody. Ele interferia muito pouco nos filmes que produzia. Como diretor, ele era extremamente capaz. Achavam que não, que não era diretor, que ele era ator. Ele era muito competente como diretor também. Cheguei a fazer alguns episódios com ele como diretor e o achei muito competente. Como produtor, tudo feito muito amadoristicamente naquela época. Não me lembro de ele interferir em algo, nem nos filmes do Ody, nem nos filmes do John Doo. Eu me lembro de um filme com o John Doo, mas isso é uma história comprida.

Z M – Não sei se é exatamente a próxima pergunta. Tem um filme que passa com certa freqüência no Canal Brasil, e o público gosta. Lembro que quando eu vi, impactou-me muito. Pornô!, de 1981.

GAP – Esse que tem a história do gafanhoto?

Z M - Esse mesmo.

GAP – A história do gafanhoto é uma longa história.

Z M – Conte-me um pouco dos bastidores da história do Gafanhoto, de John Doo.

GAP – Eu era assistente de direção, então eu sei bem dos bastidores. Esse filme era um roteiro legal do Ody. Teve problemas porque teve de trocar a atriz na véspera de começar a filmar. A atriz que ia fazer era completamente louca. Era tudo filmado numa casa, lá na Zona Norte, casa de uma baronesa, uma mulata linda, casada com um barão alemão. Era uma mulata lindíssima, alta, manequim. Acho que ela já tinha brigado com o tal barão, e ficou com a casa. A casa dela era sua renda. Já estava meio decadente. Esse foi o caso que o David de certa forma interferiu, porque tinha seis dias para ser filmado, e passamos seis dias filmando de uma forma muito complicada, pois o John Doo se perdia. O filme era muito complicado, porque, o tempo inteiro, uma mulher fica num quarto e vê pelo espelho o que se reflete em outra sala. Ela só vê o espelho que está no quarto dela e o espelho reflete o que está na outra sala. Evidentemente, não havia efeitos especiais. Os efeitos especiais era o fato de mudarmos o espelho e os outros objetos para outro lugar, para refletir o que a mulher estava vendo. Como esses espelhos tinham de ser quebrados no fim, o David comprou espelhos da pior qualidade, eram meio ondulados, e davam uma dor de cabeça terrível, só de ficar olhando. O John Doo se perdia muito com a questão da continuidade, do eixo. Conseqüência: muita coisa foi filmada duas vezes. Quando se passaram seis ou sete dias, o telefone tocou na casa e era o David. Ele queria falar comigo, não quis nem falar com o John Doo. Eu atendi, e ele falou: “estou ligando para dizer que as filmagens acabaram. Eu assisti o copião e já tem filmagem suficiente para montar, e as filmagens acabaram.”. E eu: “não, nós estamos mais ou menos na metade da história, não filmamos tudo” (risos). Ele foi incisivo: “Eu assisti e estou ligando para comunicar que as filmagens acabaram.” Fui para falar para a equipe: “O David ligou para informar que as filmagens acabaram.” Nós resolvemos que íamos seguir, pois ainda tinha negativo, havíamos economizado um pouco. Sentamos com o John Doo e falamos: “o eixo, o Guilherme decide”. Toda hora ele fazia num eixo, e eu tinha que falar “mas John...” “ah, é, é.” Tínhamos que filmar de novo a mesma cena. Tínhamos que levar o ambiente de um lugar para o outro – e a sorte era que na casa todas as paredes tinham a mesma cor -, sem ligar para a cor da parede, e, felizmente, a baronesa não ligava de fincar pregos na parede, pois já estava meio decadente. Era só questão de grudar os objetos no lugar. Porém, era uma chatice, porque grudava tudo e o John falava: (imitando a voz de John) “acho que está faltando um quadrinho ali”. Lá ia eu correr para ver se o quadrinho estava lá ou não - e não estava. Até que comecei a ficar esperto, e quando ia mudar, eu olhava e decorava tudo. O John então falava: (novamente imitando a voz) “acho que está faltando um quadro ali”. “Não está faltando”, falava eu. “Acho que está faltando um quadro ali”, ele replicava. “Não está faltando!”. Ele ia então ver se tinha o quadro (risos). Nós perdíamos muito tempo com essa discussão. Concluímos que eu cuidava do eixo e da continuidade, e ele dirigia os atores e fazia a fotografia, e ninguém podia dizer nada sobre a área do outro, se a continuidade era ou não era. Rodamos quarenta horas e rodamos o filme inteirinho, por nossa conta. O elenco era minúsculo, eram três atores - o casal, a empregada... e o gafanhoto. O gafanhoto no finalzinho, coitadinho... Eu era responsável pelo pobre do gafanhoto, e era um gafanhoto só. Eu que arrumei o gafanhoto...

Z M – Um gafanhoto só?!

GAP – Era um gafanhoto só. No finalzinho esse gafanhoto já estava que não conseguia mais... Eu tentava dar alguma coisa para a droga do gafanhoto comer, e o gafanhoto não comia. (risos) Nessa história, o gafanhoto estava desse jeito, e as pessoas adoraram o filme. Aí você pensa em como foi feito, e meu deus do céu... (risos)

Z M – A filmagem da cena específica do gafanhoto em si, para atriz, foi muito complicado?

GAP – Não, não. Para a outra atriz, foi. Quem ia fazer o papel era a Nicole Puzzi. No dia em que íamos começar a filmar, ela achou (risos) que íamos usar um gafanhoto mecânico. Um gafanhoto mecânico! Ela falou que não ia fazer o filme de jeito nenhum com um gafanhoto de verdade, que ela tinha pavor de gafanhoto. Nós chamado a Zélia Diniz, que não tinha pavor nenhum e não ligou a mínima para o inseto.

Z M – Fez a cena tranquilamente?

GAP – Tranquilamente, o problema maior era a droga do gafanhoto. (risos)

Z M – Lembro que no cinema foi uma catarse muito grande na platéia. Era algo muito novo naquela época. Foi comparado com o cinema europeu daquele tempo.

GAP – Isso eu não sei, eu sei que eu que tinha que fazer a droga do gafanhoto andar (risos) Eu era bom de bicho. Tanto que eu consegui fazer um cachorro chupar a buceta, que depois a censura cortou. (risos) Foi antes do filme do gafanhoto, eu já tinha feito isso no filme do José Adalto, Império das Taras. Foi uma perfeição o cachorro.

Z M – Nunca foi colocada, numa versão sem cortes?

GAP – Naquela época ninguém guardava o negativo cortado. Não servia para nada. Eu até usei algumas sobras de negativo em As Taras de Todos Nós, mas não esse pedaço. Não estava na sobra, estava no filme mesmo, antes de cortarem. Então acredito que não tenha mais o negativo. Não sei. Sei que consegui fazer a cena em que o cachorro chupava a buceta da mulher, e ele levantava a cabeça e fazia (nesse momento, ele demonstra o gesto: uma lambida de lábios exagerada). (risos) Eu tinha feito um truque.

Z M – Não sei se é essa cena, mas no filme do Mojica, 24 Horas de Sexo Explícito, o cachorro faz o mesmo.

GAP – O do Mojica é bem depois, foi lançado muito depois. Já tinha mandato de segurança, era outra coisa. Já na década de 80.

Z G – As Meninas de Madame Laura foi inspirado ou teve algo a ver com La Licorne, da verdadeira dona Laura?

GAP – Eu acho que sim. Pelo menos na época, eu achava que tinha a ver. Dizem até que o filme teve problema na censura por causa desse título. Na época, era meio clima de madame Laura, de La Licorne. Não sei se era uma jogada a mais, comercial, porque o filme em si não tinha nada a ver com a personagem, mas a jogada era. O título As Meninas de Madame Laura era uma brincadeira com La Licorne, com certeza. Pelo menos eu sempre achei que era.

Z G – Como foi que você conseguiu fazer seu primeiro filme, As Taras de Todos Nós, só depois de dois anos de começar na Boca?

GAP – Eu estava há um ano e meio na Boca, foi bem rápido. Eu já queria dirigir, desde o começo. Ao contrário de outras pessoas que eram assistentes de direção na Boca e diziam que não queriam dirigir, mas que na realidade queriam dirigir, eu sempre quis e falei que queria. Nunca escondi de ninguém que o que eu queria fazer era dirigir. Algumas pessoas achavam que era pretensão, mas nunca escondi. Sempre fui claro: “o que quero é dirigir”. Eu já escrevia roteiros. Em As Taras de Todos Nós, ocorreu o seguinte: começou com o Toninho Meliande. Foi muito rápido entre a história aparecer e eu começar a fazer o filme. Eu tinha escrito um episódio, que é o terceiro episódio de As Taras de Todos Nós, e mostrei para o pessoal da Boca, porque se faziam filmes de episódios naquela época. Obviamente eu queria dirigir. Houve uma época em que eu briguei com o Portioli, justamente em As Meninas da Madame Laura, nós ficamos totalmente brigados. E havia uma certa competição entre o Portioli e o Toninho Meliande. O Toninho fazia todo ano os filmes do Khouri, que era chique, e depois fazia a porcariada. (risos) O Portioli fazia os filmes do Fauzi, e a porcariada. Aconteceu que o Cláudio ficou sem o Fauzi, não sei o que ocorreu, acho que eles brigaram. Acho, inclusive, que foi antes de eu conhecê-lo, não me lembro deles trabalharem juntos. Os dois eram muito amigos, mas havia uma competição. Quando eu briguei com o Portioli no As Meninas de Madame Laura, logo depois toda equipe do Portioli ia fazer algum filme, que não me recordo o nome. Toda equipe ia, e teoricamente eu também iria. O Portioli tinha me colocado de assistente no filme do Zé Adalto. Com essa briga, eu fiquei de fora. O Toninho sabendo, só de sacanagem, me convidou para ser assistente dele (risos). Só para sacanear o Portioli, porque para o Toninho, o que ele menos precisava era um assistente. Para o Toninho, o assistente era o cara que ficava enrolando os atores para eles não irem no set encher a paciência. Era o meu trabalho no filme do Toninho, ele não precisava de assistente de direção. Então mostrei meu roteiro para ele, e falou que conhecia um sujeito que era dono de um posto de gasolina, que ia produzir o filme. Ele queria quatro roteiros para As Taras de Todos Nós, que era para ser quatro diretores diferentes. Nesse meio tempo, não sei o que ocorreu com o Toninho, mas ele arrumou outro filme para fazer, e abandonou o projeto. Também entrou o Aldato, que ia ser diretor de um dos episódios. Ia ser o Toninho, o Adalto, eu e o Odon. Os quatro diretores dos quatro episódios. Quando o dono do posto de gasolina deixou a produção, o Toninho também pulou fora e foi fazer outro filme. O Odon teve a idéia, então, de levar para o dono da Spectrus, do tal do curta de Ibitinga – que nunca foi concluído, aliás -, porque ele continuava querendo um longa-metragem. Convencemo-lo que era melhor fazer um filme – ele queria fazer um filme mais sofisticado, mais intelectual – para a gente conhecer o mercado, devíamos fazer uma pornochanchada mesmo, baratinha. Ia ser eu, o Odon e o Adalto. Esse cara, o Sérgio Tufik, assistiu ao Império das Taras, e detestou. Começou a encher a paciência do José Adalto, e brigou com ele. Então o Odon falou: “o Guilherme dirige dois”. O Odon tinha novamente mudado de idéia, e resolvera que queria ser diretor de fotografia, e eu teria de ser assistente de direção dele. Um dia ele falou: “porque você não dirige logo de cara os três e eu fotografo os três?” (risos). Eu já tinha escrito os três, porque não dirijo logo os três? Ele fotografa os três. Foi assim que eu acabei dirigindo os três episódios. Começou com quatro episódios, com quatro diretores diferentes, que era o que se fazia. O próprio Pornô! e Aqui, Tarados! eram um filme só de quatro episódios. O Ody que escreveu mais dois roteiros rapidinhos, e filmamos dois longas em quatro semanas. Ou seis semanas. Não lembro, foi muito rápido. Era para ser um filme de quatro episódios, e virou dois de três.

Z M – Em As Taras de Todos Nós, a Matilde Mastrangi trabalha, iniciando uma colaboração com você.

GAP – Sim, trabalha. Quando fomos procurar o Sergio Tufik, originalmente, o Toninho ficou de conseguir a Helena Ramos. Não me lembro como era a fase Toninho, a fase com o cara do posto. O Tufik precisava de alguém famoso. Eu lembrei da Matilde, porque quando filmamos Palácio de Vênus, num dia, ela sentou ao meu lado no almoço, e falou: “quero ficar amiga sua, porque acho que você vai ser um bom diretor, e quero que você me convide para trabalhar com você.” (risos). A gente deu risada. Quando fui fazer, eu liguei para ela e falei: “vou dirigir um filme, e lembrei do almoço, então estou te ligando para dizer que estou precisando de uma atriz.” E ela: (imitando a voz dela) “qual que é a história?”. Eu contei que era a história de um cara que estava apaixonado pelo pé dela. Ela falou: “então vou fazer o filme”. “Não, eu te mando o roteiro”, eu disse. Ela replicou: “não, não, eu já decidi que vou fazer o filme. Só me convidam para papel em que o cara é apaixonado pela minha bunda, essa é a primeira vez que alguém me convida e o cara é apaixonado pelo meu pé”. (risos) E não é mentira! Nós já éramos amigos, acho que além do Palácio de Vênus, tínhamos feito um ou dois episódios.

Z G – O seu filme posterior, A Flor do Desejo, ainda é produção da Boca?

GAP – Ele foi todo produzido na Boca, mas foi um filme que eu produzi. Eu abri uma empresa para produzir. Toda a equipe eu peguei da Boca – tinha várias pessoas que eu peguei da ECA, o meu assistente de direção, o continuista, eram algumas pessoas com que eu tinha feito amizade. A base era Toninho Meliande... na realidade, eu comecei com o Odon, ele que começou fotografando. Quando comecei, a principal era a Sandra Bréa. Só que depois de dez dias de filmagens era completamente impossível filmar com a Sandra Bréa.

Z G – Por quê?

GAP – Ela cheirava o tempo todo, chegava quatro horas atrasada para filmar... Ficava horrível - eu dirigia, e ela falava: “você vai ver na tela”. Eu via na tela, e ela estava péssima atriz. Ela culpava o fotógrafo. Estava na cara que a culpa era dela, e não do fotógrafo. Ela me encheu tanto a paciência, que eu despedi o Odon. Trouxe o Toninho Meliande, porque ela gostava do Toninho. Três dias depois eu briguei com ela porque era impossível. Aí já não tinha mais motivo para eu voltar para o Odon. Já tinha entrado o Toninho, e eu terminei o filme com ele.

Z G – Foi aí que você contratou a Imara Reis?

GAP – Sim, foi nesse momento. Eu já conhecia a Imara, e ela já conhecia o roteiro. Eu precisava trocar de atriz do dia para a noite, não podia parar a produção, senão o dinheiro acabava – como de fato acabou. Ao mesmo tempo, eu tinha que continuar filmando, porque eu tinha um contrato com a Sandra Bréa, e não podia começar a filmar com outra, sem quebrar o contrato com a Sandra. Eu tinha que ficar com a Imara dizendo que não estava filmando. Como ela já conhecia o roteiro, eu liguei, e no dia seguinte ela já estava filmando.

Z G – Como foi essa transição: da pornochanchada para um filme que vai mais para o lado pessoal, um filme de transição, que muda completamente nos outros filmes, para o cinema de gênero?

GAP – Ééé. A idéia de A Flor do Desejo era fazer com o mesmo produtor de As Taras de Todos Nós, só que ele tinha gostado tanto do dinheiro que ganhou em As Taras de Todos Nós, que não queria fazer outro filme um pouco mais sério. Ele tinha mudado a idéia dele. A idéia era fazer o filme que queríamos desde o começo, que era um filme com um pouco mais de conteúdo, com alguma experiência que tínhamos ganho antes - o Odon iria fotografar. O objetivo era fazer com o Sérgio Tufik e com a Spectra. Aí ele já não queria mais, queria outro As Taras de Todos Nós. Eu tive que convencer meu pai a me emprestar dinheiro para filmarmos. Tentei conseguir com a Embrafilme, mas não consegui. Eles sugeriram que eu dirigisse curtas-metragens. Depois pediram desculpas. Entrei no concurso da Embrafilme, ganhei o concurso, fui pré-selecionado, e eles não assinaram. Fiquei super chateado. Eu resolvi fazer sozinho, mas não foi uma boa idéia. Tínhamos pouco dinheiro, ainda aconteceu esse desastre com a Sandra Bréa, e eu não filmei 20 minutos do filme. Então teve um monte de coisa que ficou meio sem sentido, inclusive não filmei o final. Acabou o dinheiro. O filme acabou, então, ficando meio em cima do muro. Não tinha a Embrafilme, naquela época que precisava ter. A Boca já não sabia mais como tratar o filme. Acabou ficando no limbo.

Z G – Você sempre quis fazer cinema mais sério, que buscasse o cinema de gênero, diferentemente do que marcou a Boca, como as pornochanchadas ou filmes de cunho erótico?

GAP – Não sei se é/era bem assim. Eu sempre quis fazer filme bom, queria fazer filmes que eu assistisse e gostasse. Aqueles roteiros que eu escrevia nos tempos da escola não eram muito diferentes das pornochanchadas. Lembrava um pouco as pornochanchadas do Antônio Calmon, Gente Fina é Outra Coisa, era um pouco nessa linha. Eu não tinha intenção de fazer filmes de arte, nunca tive. Já antes da Boca. Os roteiros que eu tinha escrito, já acharam muito chanchadas. Por isso que me chamaram para escrever um outro roteiro, mais sério para o Roberto Santos, porque acharam que o roteiro que tinha escrito era um pouco da Boca demais. Não era bem isso, no fundo, você vai fazendo o filme que te dão oportunidade de fazer. Até hoje, eu adoraria fazer chanchada de novo, mas hoje é a Globo, a globochanchada, e para fazer globochanchada, você tem que ter a Globo, não adianta fazer a globochanchada, sem a Globo. A Globo não vai confiar no que eu vou fazer. Mas é claro que eu adoraria fazer uma chanchada de vez em quando. Adoraria. Não sei mais se ainda teria paciência de escrever um roteiro de chanchada. Teria um pouco mais de dificuldade, talvez. Dirigir eu adoraria. Eu já na Boca queria fazer A Hora Mágica, já tinha o roteiro. Escrevei antes da Boca, acho. Ou foi durante?

Z G – Num texto, você diz que filmou o longa 15 anos depois de escrever o roteiro.

GAP – Eu não lembro mesmo. Sei que escrevi antes de A Flor do Desejo. O primeiro roteiro de A Hora Mágica, depois eu mudei muito. Mesmo porque eu usei muito do primeiro roteiro em A Dama do Cine Shanghai. Esse filme era um re-trabalho de A Hora Mágica. A Hora Mágica era um filme caro, e eu fiz uma versão B dele.

Z M – Falando um pouco sobre A Dama do Cine Shanghai, ele já foi feito no sistema da Embrafilme. Como foi essa mudança, já que você veio da Boca, que era todo um universo de relações?

GAP – Por incrível que pareça, o roteiro que eu escrevi em A Dama do Cine Shanghai, nunca imaginei que fosse ser filmado. Pelo roteiro, pelo enredo, pelo enfoque, todo mundo achou que A Flor do Desejo ia ser um estouro de bilheteria. Todo mundo, desde o começo, já achava que o filme era super comercial. Talvez fosse uns dois ou três anos antes. O problema é que ele ficou pronto quando já havia aparecido o filme de sexo explícito e o filme não tinha nada disso. Para distribuição, tinha a Embrafilme, e a Boca, que fazia os filmes de sexo explícito – chegaram a propor que eu acrescentasse cenas de sexo para poder distribuir. Eu fiquei extremamente deprimido quando foi um total fracasso de bilheteria. A minha idéia era que o filme fosse um sucesso para eu fazer A Hora Mágica. Eu escrevi o roteiro de A Dama do Cine Shanghai, para desligar. As coisas que faço às vezes para desligar é ir ao cinema ou escrever. Eu escrevi o roteiro de brincadeira mesmo. E aconteceu o seguinte: a Embrafilme se arrependeu de não ter entrado em A Flor do Desejo. O diretor da Embrafilme, que tinha dito que eu não tinha competência para dirigir longas, veio me procurar e disse que outro projeto meu seria muito bem recebido pela Embrafilme. Naquele momento, eu queria fazer um projeto nunca realizado que se chamava O Caçador de Crepúsculos [o título é mencionado como dirigido pelo personagem de José Lewgoy, em A Dama do Cine Shanghai]. Eu não queria escrever o roteiro, eu queria contratar o Walter George Durst, um roteirista legal, que eu conhecia. Precisava de uma grana para contratá-lo. Eu resolvi entrar com o roteiro de A Dama do Cine Shanghai, porque tinha grande certeza de que eles iam ler e achar completamente absurdo, totalmente inviável – não era o tipo de filme que a Embrafilme produzia naquela época -, e eles iam dizer para mim que aquele filme eles não iam fazer. Eu ia falar que tudo bem, “me arranjem um dinheiro para eu contratar um roteirista para escrever um outro roteiro que vocês gostem”. Era para fazer O Caçador de Crepúsculos. Só que logo que eu inscrevi o roteiro, mudou o diretor geral. O tal que tinha dito para eu procurá-lo, saiu, e entrou outro. Esse outro resolveu colocar – e no fim foi uma sorte para mim – uma junta de pareceristas anônimos para avaliar os roteiros, ao invés da própria Embrafilme. A Embrafilme enviava o roteiro, e eles davam um parecer sobre ele. Era uma questão de sorte. Depois me mandaram o parecer. O escrito do cara era sensacional, não só ele dizia que o roteiro era excelente e dava nota dez – tinha sido o único que tinha ganho nota dez -, como ele mastigava o roteiro. Quem lia o parecer dele e depois lia o roteiro, entendia a história melhor. Era como uma introdução. Eu não seria capaz de escrever uma introdução daquela, tão bem escrita sobre o meu próprio roteiro. Era perfeita. Eles selecionaram o filme. Tinha ganho nota dez. Eu reescrevi o roteiro, pois havia coisas que seria impossível de ser filmado. Foi assim que eu entrei para a Embrafilme.

Z G – A Embrafilme era muito diferente da Boca?

GAP – Era diferente porque a Embrafilme era uma empresa. Eles te davam o dinheiro para fazer o filme. Na prática, eles te davam 50 ou 60% para fazer o filme. Quando você ia fazer o orçamento, na prática, você fazia 50 ou 60% do dinheiro que você precisava para fazer. Eu tive algumas dificuldades com Embrafilme, mas foram poucas. A primeira foi com a Maitê Proença. Eles achavam que eu não devia fazer o filme com ela. Fizeram eu convidar outras atrizes antes. Algumas não aceitaram, outras eu não aceitei, pois achava que não era o que eu queria. Até que os convenci de que o Fagundes ia segurar o filme, e que eu dava um jeito com a Maitê.

Z G – Porque eles tinham essa birra com a Maitê?

GAP – Eles tinham preconceito bobo. Foi a única coisa. Eles nunca chegaram para mim e disseram que não me dariam o dinheiro se eu fizesse com a Maitê. Era meio sugestão: “você tem certeza que vai fazer com a Maitê?” Falei: “tenho”, e pronto. (risos) Cheguei a convidar a Sônia Braga, que era quem eles queriam. E tiveram algumas que eu disse ‘não’.

Z M – Sua idéia foi sempre a Maitê?

GAP – Não posso garantir. Não me lembro com certeza absoluta. Na realidade, eu fiz esse filme com a Embrafilme e com a Assunção Hernandes, que era a produtora. A Assunção já tinha feito com a Embrafilme. Eles nunca chegaram e falaram “eu quero tal atriz”. Não interferiram nada. Quando apresentamos o projeto ele tinha 100 minutos, e acabou ficando com 115. Já era outra diretoria. O grande problema da empresa, que acabou fechando-a, era que trocava de seis em seis meses a diretoria. Era muito o rotativo. Quando o filme ficou pronto, já não era a diretoria que o havia aprovado. Essa diretoria mandou uma carta dizendo que o filme tinha que ter 100 minutos. A Assunção me colocou na moviola. Esprememos, esprememos, e conseguimos cortar dois minutos. O filme ficou ruim com dois minutos a menos. Eu e o montador grudamos tudo de volta no copião. Nós marcamos uma projeção para a Embrafilme assistir, e deveriam dizer que eu precisava cortar um rolo e meio de filme. Ia ser o rolo do Lewgoy ou o rolo do Falabella. Eles teriam de dizer quem seria cortado, em bloco. Eles assistiram ao filme e disseram que não tinha que cortar nada. Foram as duas únicas implicações. Primeiro com a Maitê, e porque eu havia estourado o orçamento, mesmo que meu orçamento fosse muito abaixo dos orçamentos cariocas – naquela época eles tinham um teto paulista e um carioca. Por incrível que pareça esse diretor da Embrafime era paulista. Eu cheguei para ele e falei: “escuta...” (risos). Os filmes paulistas podiam custar no máximo 400 mil dólares, e os filmes cariocas no máximo 600. O meu filme acabou custando 450 mil dólares. Marcaram a reunião para me dar uma bronca - me deram a bronca, mas me deram 50 mil dólares.

Z G – A Embrafilme era o único meio para se fazer filme na época?

GAP – Nesse momento já era impossível fazer de outro jeito. Só a Embrafilme mesmo. Não tinha outra saída.

Z G – Ninguém patrocinava mais?

GAP – Não, não. Só a Embrafilme. A Boca tinha ficado só com o sexo explícito nesse momento.

Z G – Por que você acha que sobreviveu à Boca do Lixo, levando-se em conta que muitos pararam de fazer com a crise do sexo explícito? Teve você, o Carlão, o Candeias chegou a fazer outro filme depois, o Mojica agora...

GAP – É, poucos continuaram. O José Antônio Garcia fez algumas coisas. Não lembro de muitos. Muitos pararam. Acho que é porque eles já estavam velhos demais para conseguir dar o pulo para a Embrafilme. Num certo momento, ou era a Embrafilme, ou não havia possibilidades. Acho que foi isso. A maioria é um pouco mais velha do que eu e pararam. Eu sei que o Fauzi está tentando voltar...

Z G – Já está filmando.

GAP – O Fauzi já tinha até feito filme com a Embrafilme, mas ela acabou muito rapidamente. O Khouri também.

Z G – Mas o Khouri vem de antes.

GAP – Ele fez filmes com a Embrafilme, e depois dela. Teve uma geração um pouco mais velha que não estava preparada para dar esse salto. E a Embrafilme realmente tinha muito preconceito. Eles não consideravam As Taras de Todos Nós como filme, tanto que na época de A Flor do Desejo me sugeriram que eu fizesse curtas-metragens. O pessoal que foi para o cinema de sexo explícito, a Embrafilme não pegava de jeito nenhum. Nem consideravam.

Z G – Voltando a A Dama de Cine Shanghai, você assina como um filme B de Guilherme de Almeida Prado. Por que um filme B? Mesmo sendo uma produção de baixo orçamento, o filme noir que vejo refletido são os filmes com o Borgart, do John Huston...

GAP – Mas eram filmes super baratinhos. Se você prestar atenção, o roteiro todo foi feito como filme B. Não tem ação, o Fagundes chega sempre quando já aconteceu. É feito quase todo de diálogo. A história se desenrola através do diálogo.Tanto que o roteiro de A Dama do Cine Shanghai se chamava B. O nome, a idéia do título A Dama do Cine Shanghai veio com a sinopse. Precisava de um nome para o cinema. Colocamos Cine Shanghai, aí pensamos em A Dama do Cine Shanghai.

Z G – Você não o vê como um processo de releitura do filme do Orson Welles, A Dama de Shanghai?

GAP – Não foi escrito intencionalmente. Quando nós filmamos já houve algumas coisas, coloquei uma cena do filme, a Maitê usa uma roupa que é o mesmo desenho. Foi uma questão posterior, já tínhamos o título. Não havia a idéia de fazer um filme em cima de A Dama de Shanghai. Naquela época não havia VHS, eu fui rever o filme porque conseguimos a cópia de um professor da FAAP. Fomos ver o filme para pegar alguma coisa. Era um filme que eu tinha visto uma vez na televisão. Não era algo que estava fresco na memória.

Z G – Você o viu durante sua formação de cinéfilo? Faz parte do inconsciente?

GAP – Muito. Muitas pessoas depois que viram o filme vieram me falar que tinham visto citações...

Z G - Eu vi muitas.

GAP – Citações de filmes que eu nunca vi, até porque não tinha nem como. Ia ver onde?

Z G – Mas havia coisas que você colocou no filme com o intuito de citação ou homenagem?

GAP – Nunca, nunca. Esse negócio que as pessoas chamam citação, eu acho que é plágio. Porque eu não vou usar uma idéia boa, que eu acho que encaixa e conta bem a minha história? É como escrever um livro e não usar uma palavra que você achou interessante e vai servir para sua história. Eu não tenho essa coisa de homenagem. Muita coisa, eu escrevi depois. Muita coisa eu vou ver depois e: “olha, esse plano é de tal filme.” É algo natural. Eu não estou citando, estou copiando.

Z G – Há em A Dama do Cine Shanghai, na cena em que vão encontrar o José Lewgoy, que ocorre num casamento. Ela me lembra muito a cena inicial de O Poderoso Chefão.

GAP – Concordo, totalmente. Não falei: “vou escrever uma cena com moldes em O Poderoso Chefão”. Porque aquela cena foi escrita? Eu achava o filme todo muito escuro, tudo era muito noturno. Antes do final, eu precisava de uma cena clara. Por isso a idéia de fazer uma cena de casamento, que usa muito o branco. Coloquei uma cena clara, para poder chegar no último ato do filme, em que se passa a noite, e é bem escura mesmo. Foi isso. Eu concordo que tenha a ver. Não vou nem dizer que o diretor de arte não tenha chupado aqui e ali alguma coisa. Não foi algo premeditado. Tem coisas que eu vejo depois que o filme está pronto, e falo: “gente, isso é tal filme.” Até coloco algumas dicas que é tal filme, antes ou depois, mas sempre depois de ter visto a cena. Como tem muita coisa, as pessoas acham que é de filme que eu não vi. Mas com certeza, eu vi um outro filme que tenha a mesma coisa daquele outro filme. Os filmes se repetem muito. Eu não vi o filme que o cara viu, mas vi o outro que é a mesma coisa que o cara viu.

Z G – E o pôster do filme? Ele foi inspirado em Gilda?

GAP – Foi. A idéia do pôster é minha, não o desenho, porque eu não sou desenhista. A idéia de ter a Maitê com o vestido de Gilda, como um rolo de filme, era minha. Eu falei para o desenhista: “eu a quero com um vestido parecido com o do Gilda, só que vestida com um negativo, uma cópia de filme.” Só. O desenho, e todo o demais, foi do desenhista.

Z M – Quem era o desenhista?

GAP - Era o Héctor Gomes Allisio, que tinha feito o storyboard do filme, depois fez a história em quadrinhos [Samsara]. Ele que desenhou. O cartaz de Onde Andará Dulce Veiga? também é do Hector.

Z M – Falando do Perfume de Gardênia: ele foi produzido na época em que a Embrafilme acabou, embora ele tenha sido escrito antes. Ao mesmo tempo, é um filme que traz muito da sua memória afetiva da Boca, lembrando muito do período, embora tenha outras influências. Quando você começou a elaborar o roteiro?

GAP – O argumento foi feito na Boca - era para ser um filme da Boca. Na época não se chamava Perfume de Gardênia. Originalmente, era para ter sido feito com a Helena Ramos. Ela não ia ser uma atriz da Boca. O passado dela era como atriz do Cinema Novo. Era o argumento, não o roteiro, que eu tinha escrito e que na época não colou. Ninguém gostou do argumento. O Portioli tinha gostado, mas não foi para frente. Ele levou para mostrar pra alguém.. Eu não me lembro. Eu me lembro que era um argumento de cinco ou seis páginas. Quando eu fui trabalhar na Casa de Imagens, que foi uma empresa que a gente montou em 88, 89, e era composta pelo Carlos Reichenbach, Inácio Araújo, Júlio Calasso, Andrea Tonacci, André Luiz Oliveira e eu. Nós montamos uma empresa porque a gente achava que justamente estava acabando o cinema popular da Boca do Lixo...

Z G – Não era a Embrapi, certo?

GAP – Não era a Embrapi, essa foi antes, ainda na época da Boca. A Casa de Imagens era uma segunda Embrapi. Estava acabando a Boca e a gente não queria ir para Embrafilme, a não queríamos fazer cinemão. Juntamos, então, um monte de cineastas para desenvolver o cinema popular. Era uma idéia meio maluca. Nem sei quem teve. Não fui eu (risos). A idéia era de desenvolver uma nova versão do cinema popular brasileiro. Uma nova pornochanchada, porque não tinha mais sentido criar erotismo já que já tinha sexo explícito. O único projeto da Casa de Imagens que virou filme foi o Perfume de Gardênia, porque nós conseguimos o dinheiro da Embrafilme. Foi um caso inédito na época. Eles deram dinheiro para a gente desenvolver uma empresa. A única coisa que a tínhamos que entregar eram dezoito argumentos, porque eram seis [pessoas], e cada um tinha que desenvolver três. Desses argumentos eles iam escolher, em comum acordo com a gente, 6 e esses seis seriam transformados em roteiro.O dinheiro que eles deram era para fazermos isso. Fizemos tudo isso. Infelizmente, o único que foi filmado foi o meu. Obviamente, o que aconteceu é que eu, por exemplo, desenvolvi um argumento novo e peguei dois da gaveta. Todo mundo ali fez mais ou menos isso. Eu acho que a gente até apresentava mais idéias, e se escolhiam os três argumentos. [Na época], eu tinha desenvolvido também um outro argumento, que era o que eu achava que ia ser feito - era baratinho e super simples. Coloquei o Perfume de Gardênia, que na época chamava O Menino que gritava Lobo e um outro... não me lembro qual foi o terceiro. Tinha certeza que eles iam escolher um que era sobre o banheiro de um cinema. Era uma espécie de O Baile, de Ettore Scola, só que ele se passava no banheiro de um cinema. No feminino e no masculino. Do cinema mudo até virar Igreja. Até virar estacionamento, terminava como estacionamento. Eu achava que eles iriam escolher esse. Sei lá porque todos insistiram que a história boa era a do Perfume de Gardênia. A história ainda estava em versão Boca e eu adaptei para anos depois. Ela [a atriz principal], em vez de ser uma atriz do Cinema Novo, virou uma atriz da Boca... Acho que foi o melhor roteiro que escrevi na vida - e foi um roteiro que eu escrevi em 3 semanas. Eu me tranquei em casa - naquele tempo se escrevia em máquina de escrever. Eu era meio obsessivo, se eu errava uma palavra na página, batia a página inteira [de novo]. Eu desliguei o telefone, fiquei três semanas trancado em casa, porque tinha que entregar para receber o dinheiro. Tinha que cumprir a data para receber a grana. Eu me tranquei em casa e arrumei alguém para passar a limpo. Eu não ficava com essa mania de ficar rebatendo a página, porque quando eu errava uma palavra eu corrigia e a datilógrafa passava a limpo para poder entregar para a Embrafilme a tempo das três semanas. Evidentemente, quando fui filmar, dei uma melhorada, porque foi escrito rapidinho mesmo. Era um filme de orçamento barato, para ser produzido com a Embrafilme. A Embrafilme pretendia produzir os seis filmes que escolhemos. O único que acabou realmente sendo filmado foi o Perfume de Gardênia, já sem a Embrafilme e sem a Casa de Imagens. A Casa de Imagens também tinha ido para o brejo quando eu filmei. Eu ia filmar logo no início do governo Collor, com a Casa de Imagens.

Z G – E o fato de você ter ganho o Kikito [de Melhor Filme, prêmio máximo do Festival de Gramado] com A Dama do Cine Shanghai não facilitou para você fazer outros filmes?

GAP – Não, porque acabou, eu acho que teria facilitado com a Embrafilme, mas como acabou, o Kikito acabou servindo para nada. Com certeza, o próprio fato da Casa de Imagens ter comprado a idéia era fruto disso. Havia o Carlão e um monte de outras pessoas, quer dizer, eram pessoas que achavam que eu ia fazer um trabalho legal, já que eles toparam investir no advento de uma produtora, entendeu? Tivemos aula de produção, a gastamos uma grana para montar uma produtora. Infelizmente, a produtora acabou não produzindo nada. Nos formamos em produção, inclusive. Um ia produzir o filme do outro. Todo mundo fazia papel duplo. Todo mundo participava do filme de todo mundo de alguma forma. A idéia era essa. Sempre tinha um que era o produtor e um que era o diretor. Essa idéia [da Casa de Imagens] acabou morrendo. Eu acabei nesse projeto, que já estava meio andando, e acabei produzindo depois numa situação completamente diferente. Porém, acabei fazendo o filme, foi o único roteiro da Casa de Imagens que virou filme.

Z M – Agora, falando do elenco, você colocou a Christiane Torloni...

GAP – A Torloni entrou no filme dez dias antes de eu começar a filmar. Quem ia fazer o filme era a Vera Fischer. Só que a Vera Fischer começou com umas loucuras muito parecidas com a Sandra Bréa. (risos) Eram idênticas. Não quis cometer o mesmo erro duas vezes. Eu ia ser muito burro de fazer o mesmo erro duas vezes, né? Ela começou com viagens idênticas às loucuras da Sandra Bréa.

Z M – A personagem de José Lewgoy é uma citação a Ody Fraga?

GAP – O Lewgoy era fisicamente muito diferente do Ody, e não fiz o Lewgoy imitar o Ody. No roteiro, era o Ody. O roteiro é escrito totalmente em cima do Ody, algumas coisas que ele fala são típicas do Ody. Quando eu escrevi o roteiro, o personagem era o Ody mesmo. Com o Lewgoy a gente fez uma coisa um pouco diferente, até porque o Lewgoy não conheceu o Ody. Não tinha como o Lewgoy fazer uma imitação do Ody. A referência é explicita mesma. No roteiro era explícito. Ele foi o único filme inteiramente rodado no ano de 91. Todos os outros foram finalizados em 91 ou começaram a rodar nesse ano.

Z G - O filme foi lançado em 92, certo?

GAP – Foi lançado em 95

Z - Foi o ano em que você fez Glaura?

GAP - Foi

Z - Você já tinha terminado Glaura quando lançou?

GAP - Acho que não, acho que foi um pouquinho antes que lançou. Eu não me lembro exatamente do lançamento. Eu me lembro quando eu filmei, mas ele foi lançado bem depois. Nem tinha distribuidora quando o filme ficou pronto. Aí apareceu a Sagres Filmes e a não tínhamos dinheiro. Agora não me lembro em relação ao Glaura. Se eu terminei ele antes ou depois.

Z G - Eu li um artigo seu sobre o Glaura, em que você fala sobre como você queria fazer uma coisa mais experimental, algo que você não conseguia fazer com longas. Você acha que você conseguiu isso com Glaura?

GAP – Não, não, porque o Glaura era um episódio de um longa. O que eu ia fazer era um filme totalmente experimental. Quando eu li o roteiro dos outros, vi que os outros filmes eram completamente diferentes, eram todos cenas cotidianas e que ia ficar só o meu episódio totalmente experimental, ia ficar uma coisa completamente estranho no ninho. Eu mudei de idéia e fiz uma outra história, mas o roteiro original era totalmente experimental, e não tinha nada a ver com Glaura. Originalmente, era só com a Júlia [Lemmertz] e com o Alexandre [Borges]. Eu escrevi um outro roteiro em 4 horas. Quem me deu a idéia foi o Lewgoy. Eu já estava mais ou menos marcando a filmagem com a Júlia e com o Alexandre e o Lewgoy me ligou e falou: "Que papel eu vou fazer?" Eu falei: “Lewgoy, é só um casal, a história inteira se passa com eles trepando numa cama, não tem nenhum papel para você.” (risos). Eu resolvi que ia fazer essa história complicada, cheia de coisas técnicas: feedback projective, cam projective, um negócio muito complicado que ia dar um trabalhão e ia ficar um negócio completamente diferente do resto do filme. Além disso, na mesma época, o Oliver Stones lançou Assassinos por Natureza, e usa os mesmos recursos dele, e a peça Eu sei que Vou te Amar, do Arnaldo Jabor, estava em cartaz no Rio justamente com a Júlia e o Alexandre. Todo mundo ia dizer que eu copiei a história de um, com os mesmos atores, e copiei a técnica do Oliver Stone. Eu pensei: porque que não faço algo diferente com o Lewgoy. Já havia convidado a Júlia e o Alexandre... Foi o único caso de roteiro que eu escrevi para os atores que o filmaram.

Z G – E a personagem da Matilde [Mastrangi]?

GAP – A Matilde, é. Eu nunca fiz em outro longa, mas acho que é um personagem que ela faria super bem. Na Boca sempre deram para a Matilde personagens que não tem nada a ver com ela. A Matilde é italianona da Mooca. Ela tem que fazer papel de italiana da Mooca. É igual a Sophia Loren fazendo mulher sofisticada. Sempre fica meio meia-boca, né? (risos)

Z M – Você falou que o roteiro de A Hora Mágica já havia sido escrito há bastante tempo...

GAP – Eu acho que esse roteiro é até anterior à Boca do Lixo..

Z M – O interessante é aquela temática central que fala dos programas e das novelas de rádio. De onde você trouxe essa memória do rádio?

GAP – A Hora Mágica nasceu na de um conto do Cortazar [Cambio de Luces]. Eu fui fazer uma pesquisa sobre rádio no início da televisão justamente para escrever o roteiro. Não era uma idéia que eu tinha.... a partir do conto eu me interessei. Era um conto que se passava numa rádio, não tem televisão, isso eu acrescentei. Eu comecei a escutar programas antigos de rádio, ler livros sobre rádio... Eu sempre gosto de, quando eu estou escrevendo, ler coisas sobre assuntos paralelos. Foi assim que nasceu essa coisa com o rádio. Não foi a idéia: vou fazer um filme sobre rádio. Não, a idéia veio do conto do Cortázar mesmo. E acabou sobrando muito pouco do conto no filme, mas a semente do filme veio do conto do Cortázar.

Z G – Você fala que brinca muito com o som e com a imagem. Você acha que acabou fazendo um pouco mais do experimental que buscava nesse filme por usar mais esses atributos?

GAP – Eu experimentei muita coisa de som. Eu já tinha experimentado em A Dama do Cine Shanghai bastante, menos um pouco no Perfume de Gardênia, porque foi um filme feito com muito menos recursos, foi mais econômico. Ele já era um projeto econômico quando a gente fez o roteiro, e ele foi filmado de uma maneira ainda mais econômica, com um terço do orçamento original do filme. Menos de um terço na verdade. Foi um filme feito com muito pouco dinheiro. Algumas coisas eu já tinha começado a experimentar na Dama, até porque a Dama era meio filhote de A Hora Mágica. Eu experimentei bastante em A Hora Mágica e nesse filme novo [Onde Andará Dulce Veiga?], experimentei mais ainda.

Z G – Como é que foi ter lançado um longa depois de 10 anos?

GAP – Lançar longas foi o pior período que eu tive. Talvez captar o dinheiro seja muito chato também, mas é uma coisa que você pelo menos fica ali esperando, não te produz nenhum tipo de ansiedade. Lançar no Brasil é duro. A não ser que você tenha uma major – e major nenhuma acredita em meus filmes -, você lança de forma extremamente precária. O que acontece no Brasil e que eu acho um absurdo - acho que é o único país do mundo em que isso acontece - é que para o Brasil não faz a menor diferença se o seu filme faz ou não sucesso para você fazer outro filme. No mundo inteiro, se você faz um fracasso, você fica de molho um tempão, você vai ter que fazer um filme mais baratinho... Aqui não! Às vezes, tenho a impressão até que o seu filme ser um fracasso te facilita a conseguir fazer outra coisa. Isso é um absurdo, sabe? Não faz a menor diferença se você vai bem ou vai mal na bilheteria para conseguir fazer outro filme. Eu ficaria nervoso se fizesse diferença. Se o meu filme não for bem, eu não vou conseguir fazer outro filme. No Brasil não funciona assim. É completamente absurdo. Então, se não é possível lançar bem um filme, tudo bem, vamos fazer outro. Se eu fiquei satisfeito com o resultado do filme? É isso, é uma pena, porque é um absurdo: isso não te leva a nada. Nem se constrói uma indústria cinematográfica sob esse conceito. Mas esse é o conceito que existe no Brasil: não faz a menor diferença. Tem diretor que nunca fez um único filme de sucesso, (sua voz começa a ficar gradativamente estridente, mais e mais) e já tem uma filmografia enorme. (risos) Ele faz um filme atrás do outro, todos são ruins e todos não fazem sucesso. Ninguém está nem aí. Se você faz um filme ruim, sabe... O David Lynch já ficou anos sem filmar porque o filme dele nem era ruim, mas não fez sucesso. Aqui não. Você pode fazer um filme ruim, não fazer sucesso, e você continua filmando como se nada tivesse acontecido. Você pode fazer o melhor filme do mundo, e ninguém vai se importar. Ao contrário, cria-se uma inveja gigantesca que dificulta fazer outro filme. As pessoas dizem: “não, ele já fez muito sucesso, agora sossega. Fica lá na casa dele e não enche o saco.” Ele é colocado de quarentena. Mas no Brasil é assim. Fiz um filme, fiquei contente e gostaria que ele fosse bem lançado. Mas não está em minhas mãos promover um lançamento.

Z M – O romance do Caio, Por Onde Andará Dulce Veiga?, você leu...

GAP – Eu não li. Na realidade, o roteiro foi escrito antes do livro. Eu li no set de filmagem de A Dama do Cine Shanghai – eu me lembro claramente disso – uma crônica do Caio, chamada Onde Andará Lyris Castellani? Ela era uma atriz que fez dois ou três filmes com o Walter Hugo Khouri nos anos 60. O Caio fez essa crônica, e eu achei que ali tinha um argumento para um filme. Eu já conhecia o Caio – não era amigo dele, mas morávamos a três quarteirões um do outro -, e quando acabou as filmagens, procurei o Caio e disse que achava que naquele texto tinha uma idéia para um filme. Ele, então, me falou da Dulce Veiga, que era um livro que ele tinha tentado escrever cinco anos antes, mas acho que nunca tinha, na realidade, escrito uma linha. Nunca vi nenhuma linha desse livro. Nós pegamos a idéia da Dulce Veiga e a idéia do Onde Andará Lyris Castellani? e começamos a escrever um roteiro juntos. Escrevemos e chegamos a apresentar para a Embrafilme. Ela não se interessou. O roteiro talvez não fosse tão bom – eu o melhorei bastante na revisão. A Embrafilme recusou o roteiro. O Caio então achou que se ele escrevesse o livro, talvez fizesse sucesso, e poderíamos retomar a idéia de fazer o filme. Só que o livro acabou sendo lançado justamente em 1990. O livro até fez sucesso, mas não fazia diferença nenhuma para cinema. O roteiro ficou na gaveta.

Z M – Ele até se refere que era um roteiro de um filme B.

GAP – Era de A Dama do Cine Shanghai, era um romance B. O roteiro era de um filme B, o livro era um romance B.

Z M – O próprio livro é ordenado e narrado de uma forma impressionante. Ele tem uma força imagética muito grande. Cada parágrafo é como se fosse uma cena.

GAP – Porque era um roteiro. O Caio escreveu muita coisa que não tinha no roteiro inicial, e muita coisa que eu usei no filme. Outras não. Tem no roteiro original, mas não tem no livro. O filme é um misto daquele roteiro que a gente escreveu, com o livro. O livro funciona completamente sozinho, sem nenhuma preocupação em estar adaptando o roteiro. Eu usei algumas idéias. O roteiro original era muito menos autobiográfico. Ele escreveu o livro de uma forma super autobiográfica. Isso eu incorporei do livro no filme.

Z M – Com o Onde Andará Dulce Veiga?, você participou do Festival do Rio, da Mostra de São Paulo. Você já viajou com ele para outro festival?

GAP – Estou indo agora. Vou para o Festival de Cinema Brasileiro de Paris. Já passou no Festival de San Diego, na Califórnia, mas eu não fui. Foi o ator que foi com o filme para lá.

Z G – Quando você começou a realmente dar segmento ao projeto?

GAP – Começou meio que por acaso. Eu escrevi um outro roteiro, um projeto caro, que era adaptação do Jorge Amado. Eu não tenho os direitos do livro, e eu achei que se eu ganhasse o Laboratório de Sundance, isso poderia me ajudar a conseguir com a Warner Bros. o direito de fazer o roteiro do Jorge Amado. Quando fui me inscrever para o Sundance, eu descobri que se pode inscrever dois projetos. Inscrever dois projetos dá uma força mais condizente. Peguei esse roteiro do Dulce Veiga, com certeza absoluta que ele iriam achá-lo datado. Ele era mesmo um tanto datado. Por incrível que pareça, selecionaram o Onde Andará Dulce Veiga? e não o outro projeto. Eu tinha que ir lá para o tal do workshop, e eu fui porque... você vai, né? Eu achava o roteiro datado, e eu falava. Eram quatro ou cinco dias, e cada dia você ficava conversando com um consultor, que era um roteirista, um diretor... Eles gostaram muito do roteiro, acharam que havia coisas datadas – coisa que eu deveria cortar -, mas acharam que a idéia, ao contrário, não era nada datada. A idéia era muito atual. Essa coisa da fama rápida, da pessoa querer ser famosa, de você ser famoso e desaparecer – onde andará? Eles me fizeram ver que era questão de jogar fora o que era datado, e desenvolver melhor o que não era datado. Foi quando eu resolvi ler o livro do Caio Fernando de Abreu, e peguei alguma coisa do livro. O projeto saiu voando sozinho. Devido ao fato de eu ter ganho o Laboratório, ganhei a Petrobrás, o BNDES, e tudo deslanchou. Ele acabou por se fazer sozinho. Por mim ele estaria na gaveta, datado. Eu achava que não devia mesmo fazer. Criticaram muito A Hora Mágica como um filme que eu devia ter feito naquela época [final dos anos 80], que eu fiz dez anos atrasados. Agora eu vou fazer um filme quinze anos atrasado. (risos) Estou andando para frente ou para trás? Chamaram a atenção para aquilo que não era. Dava para eu fazer um filme contemporâneo, tinha uma linguagem muito atual, ele tem uma coisa meio de videogame. Eles chamaram a atenção para aquilo que tinha de muito atual na proposta. Eu falei: “Poxa, não é que é verdade?”

Z G – Quanto tempo do Laboratório de Sundance até você conseguir filmar?

GAP – Foram três anos, mais ou menos. Três, quatro anos.

Z G – E quanto tempo de filmagem?

GAP – Foram onze semanas. A gente parou porque não tinha dinheiro. Acabamos a filmagem com um monte de dívida: tivemos que captar dinheiro para pagar a dívida, captar dinheiro para terminar o filme, e para lançar, faz quase um ano que estou tentando captar dinheiro.

Z G – As filmagens foram tranqüilas?

GAP – As filmagens foram. Foram onze semanas de filmagens em São Paulo, Manaus, Ribeirão Preto e Rio de Janeiro. O dia era cansativo, mas era tranqüilo.

Z G – Nenhuma Sandra Bréa nesse?

GAP – (risos) Não, não. Hoje em dia eu brinco que fiquei com anteninha de Sandra Bréa. (imitando) Quando as anteninhas começam a balançar assim, eu fujo correndo. Qualquer ator que eu acho que tem o mínimo de pentelhice, eu fico longe. Nem na equipe, porque tem equipe Sandra Bréa também. (risos) Eu só gosto de trabalhar com gente legal de trabalhar. Isso, para mim, é fundamental. Quando eu monto minha equipe, isso é fundamental. Gente que tenha prazer no trabalho, e que não venha para o set de filmagem encher o saco e trazer problemas da casa. Todo mundo já sabe. Chegamos ao absurdo no filme de agora, em que tive que pedir menos alegria no set. (risos) Eles estavam se divertindo muito, mas a filmagem não estava rendendo. (risos) “Menos alegria nesse set!” Geralmente, você vê baixo astral, mas muita alegria no set eu nunca tinha visto. (risos) Eles davam muita risada, e as filmagens não estavam andando.

Z G – Como foi a escolha de elenco? Chegar ao nome da Carolina...

Z M – Tem muitos nomes com quem você já trabalhou: Matilde, Imara, Torloni, Maitê, Oscar Magrini...

GAP – Tem um monte de gente.

Z G – É por isso também que você gosta de trabalhar com pessoas com quem você já está acostumado?

GAP – Um dos motivos é esse. Primeira vez que você trabalha com uma pessoa, você demora... cada ator você tem que dirigir de um jeito diferente. Cada ator tem uma maneira ligeiramente diferente, às vezes muito diferente, para você conseguir tirar o melhor dele. Não é questão de capacidade, é uma questão de diálogo com o diretor. Sempre que você começa a trabalhar com um diretor que você nunca trabalhou, demora um certo tempo para você adquirir esse diálogo. Depois de um certo tempo, você nem mais precisa dirigir. O ator olha para você e já sabe o que você está pensando. Fica muito mais fácil trabalhar com atores que já trabalharam com você, porque já sabem como funciona e como não funciona. Se eu tenho um personagem que serve para determinado ator, que por acaso eu já trabalhei, porque eu vou procurar outro? Só para ter mais problema? É um pouco de preguiça. Uma certa preguiça sempre é bom, e eu tenho uma. Vou trabalhar com aquilo que me dê menos trabalho. Você já sabe como funciona e como não funciona. O que não quer dizer que não faça filmes com outros atores. Em Onde Andará Dulce Veiga? tem uns cinco atores que nunca trabalharam com cinema, como a própria Carolina, o Eriberto Leão nunca tinha feito cinema, a Marília Chasseraux, até o pianista [indagando o nome dele, como se tentasse lembrar o nome]...

Z M – Nunca tinha feito cinema?

GAP – Nunca tinha feito cinema, um ator de teatro super conhecido.

Z M – Francarlos Reis.

GAP – Isso, o Francarlos Reis. Ele já tinha feito muito teatro, e nunca tinha feito cinema na vida. Tinha mais gente. O Carmo Della Vechia. Eu gosto de trabalhar com atores novos também. Assim como tem vários atores com quem eu já trabalhei e adoraria trabalhar de novo, mas nunca arranjo os personagens. Tem que ter um personagem que encaixe, não é que eu pego qualquer ator e encaixo em qualquer personagem. Se eu acho que tem um ator que cabe certinho naquele papel, porque eu vou pegar outro?

Z G – Como você escala esses atores? Você analisa por obras já feitas, ou faz teste?

GAP – Eu não sou muito fã de teste. Eu nunca chego a uma conclusão quando eu faço teste. Eu fiz alguns testes no filme, mas era quando eu tinha dúvida entre um e outro. Em geral, eu gosto de ver trabalhos que o cara fez. Às vezes você erra... Em geral, baseado no que ele fez eu consigo saber se é o que eu quero. Eu acho que tive muita sorte. O Eriberto entrou no filme vinte dias antes de começar a filmar. O Oscar Magrini não era o Oscar Magrini. Com ele foi diferente. Não o cogitava para o papel. A Matilde insistiu que ele tinha que fazer um teste. Eu achei que não tinha cabimento eu me negar a deixá-lo fazer um teste. Eu dizia que não achava que ia dar certo. Ela tinha lido o roteiro por causa do papel dela. Ela me propôs quando soube que o ator que ia fazer, não ia fazê-lo mais. No meio do teste, eu falei: “Tá bom, está contratado!” Ele está muito bem. Eu achava que não era capaz de fazer.

Z G – E a Carolina Dieckmann?

GAP – A Carolina foi uma coisa engraçada. A minha mulher tinha me falado da Carolina. Foi uma história completamente louca. Minha mulher falou muito da Carolina Dieckmann, e eu achava que ela era aquela que era casada com o Ronaldinho.

Z M – Daniela Cicarelli.

GAP – Eu achava que a Carolina era a Cicarelli. Eu não assisto novela, eu vejo pouca televisão. Minha mulher falava dela. Eu dizia: “não, não é o que eu quero”. Minha mãe sugeriu uma atriz muito boa, que até serviria para o papel, mas achei que ela estava meio gorda. Aquela que fez A Ostra e o Vento... A Leandra Leal. Eu queria a Leandra Leal, mas ela estava fazendo uma novela com uma personagem meio punk. Eu fui assistir a Leandra Leal – eu a acho ótima atriz -, mas eu queria uma atriz magra. Como a personagem cheira muito, tinha que ser muito magra. Eu achei a Leandra gordinha. Quando eu assisti, eu falei para minha mulher: “eu gostei da loirinha.” (risos) “Eu achei a loirinha interessante”. (risos) “Mas é a Carolina Dieckmann!”, disse minha mulher. (risos) Foi assim que eu chamei a Carolina.

Z G – Isso foi em 2005 mesmo?

GAP – 2005. Ela gostou do papel, disse que era o melhor personagem que já tinha feito na vida. Ela entrou um pouco em cima, podia ter entrado muito tempo antes. (risos) Quando eu contei para ela, ela morria de rir. (risos) Eu sou tão ignorante em televisão, e ela nunc afez cinema. Eu nunca a tinha visto. Me falavam Carolina Dieckmann, e eu achava que era a Daniela Cicarelli. Para mim, Carolina Dieckmann e Daniela Cicarelli eram tudo a mesma coisa. (risos)

Z G – Porque você foi filmar em Manaus?

GAP – Não era para fazer toda a Manaus. O projeto original era fazer quase todo aqui na baixada santista. Mas havia um problema, porque o ator tinha que cortar o cabelo, e inviabilizava cortar um pedaço aqui e um pedaço lá. Ficava mais fácil filmar tudo lá. Foi ótimo. Embora seja muito difícil filmar lá, porque é muito calor, ficou muito melhor se eu tivesse filmado aqui. Manaus é realmente fantástica. Precisa de uma estrutura de produção muito grande para filmar lá.

Z G – Você já tinha ido lá?

GAP – Já tinha ido de turista, mas não conhecia muito. É tudo muito longe, tudo muito demorado. Compensou. Ficou muito melhor ter filmado lá do que se eu tivesse filmado aqui. Era só para filmar as partas mais gerias lá. As mais fechadas aqui. Isso foi sorte. Muito mais real, muito mais o que eu queria.

Z G – Você volta a colocar alguma coisa mais de gênero?

GAP – Não. Eu nunca vou fazer um filme de gênero. Eu gosto de filmes policiais, então eu acabo colocando alguns elementos do policial. O que eu gosto é de experimentar. É meu filme mais experimental.

Z M – A pós-produção...

GAP – A gente acabou fazendo um monte de coisa digital. Não fiz mais, porque não sabia que dava para fazer e ficar bom. Fiquei com medo de ficar tudo meia-boca. Me segurei um pouco. Havia um monte de coisa que eu podia ter usado mais.

Z M – Foi tudo realizado aqui no Brasil?

GAP – Tudo brasileiro, realizado pela TeleImage. Muito competente. Eu cheguei até a filmar coisas com duas opções, com medo, pois não há nada pior que um efeito digital meia-boca. É melhor não ter nada. Cheguei a filmar com duas opções, mas não precisava. Depois que eu não fiz efeito digital, podia ter feito tranqüilo, que estava ótimo.

Z G – Você filmou em película?

GAP – Filmei em película. Finalizei tudo em HD. Tem bastante coisa de pós-produção. Isso eu gostei demais. Realmente dá para você pintar o filme. Ideal. Você coloca um capacete e imprime na película. (risos) Dá para você fazer o filme que você imaginou. Ainda custa caro, mas isso é uma questão de tempo. Acho que é meu filme mais experimental, não só por causa dessa parte digital, mas porque tem uma estrutura menos tradicional. Fica difícil você dizer que gênero é o filme. Tem elementos policiais: o jornalista, encontrar a Dulce Veiga... Ele lembra mais um videogame do que outra coisa. Ele é do gênero videogame. (risos) É tudo bifurcações. Tem nove finais, não quer dizer que aparece final um, final dois... Nove possibilidades de acabar.


Z G – Se você pudesse, você mudaria algum filme, faria diferente?

GAP – Todos.

Z G – Incluindo o Dulce Veiga?

GAP – Inclusive. Tem várias coisas que eu adoraria refazer. (risos) Se eu pudesse refazer...

Z G – Agora dá para lançar a versão do diretor...

GAP – Teria de ser refilmado... Tem uma hora que eu falo “está pronto”, e pronto. Até pretendia lançar a versão de diretor em DVD, mas não acho que vai dar certo. Eu pensei eu fazer uma versão redux. Não dá para fazer tudo, porque não dá para refilmar, mas mudar algumas coisas. O filme era previsto para ter uma parte em cores, e uma parte em preto e branco. Uma série de coisas. Um dia fui por acaso lá no SATED. Eles marcaram uma projeção, e eu acabei indo. Fiquei pensando que não devo fazer isso. Se for para fazer, será para corrigir digitalmente algumas coisas que eu não gosto. Não vou fazer a versão redux mudando tudo, não. Acho que iria me arrepender. Melhor deixar do jeito que está.

Z G – E os outros?

GAP – Se eu fosse poder refilmar, eu refilmaria até Dulce Veiga, que tem algumas coisas que eu gostaria de refilmar. Adoraria poder fazer de novo. Adoraria fazer como o Wong Kar-Wai que fica dois anos filmando. (risos)

Z G - Há alguma previsão para lançamento em DVD de seus filmes?

GAP – Não, não. Custa caro. Até tive proposta para lançar do jeito que está. Mas não dá para lançar com qualidade de VHS. Ou remasteriza digitalmente., ou não dá.

Z G – Mas nem com esses projetos do governo de restauração?

GAP – Para você conseguir financiamento, você tem que morrer. (risos) Eu fiz o projeto, fui aprovado pela Lei do Audiovisual, para restauração de todos os meus filmes. Aprovei tudo, só que você não capta. Para você captar, você tem que morrer primeiro. Então deixa, né? (risos) Chegando lá, muda o projeto... Só autor morto.

Z G – Glauber Rocha, Sganzerla...

GAP – Todo mundo que morreu.

Z M – O que fez Macunaíma... Joaquim Pedro de Andrade.

GAP – Eu cheguei à conclusão que teria de morrer antes. Eu prefiro esperar mais um pouquinho e lançar depois. Eu gostaria de relançar todos os meus filmes digitalmente, lançar em DVD. Adoraria, mas é caro, muito caro.

Z M – O DVD tem a vantagem dos extras.

GAP – Sim, sim. Algumas coisas eu guardei. Não tudo, infelizmente.

Z M – O que eu acho muito interessante é o comentário em áudio.

GAP – Comentário em áudio eu não sei se faria. Eu não gosto muito de comentário em áudio. Nessa época que eu estava tentando captar, começamos a nos preparar, caso conseguíssemos captar. O Lewgoy ainda estava vivo, e nós íamos fazer os comentários de A Dama do Cine Shanghai. Eu ia pegar algumas pessoas para falar, não eu. Comentário de diretor eu acho muito cabotino. Além de eu achar chato quando vejo, esse negócio de ficar falando de você mesmo no filme, durante duas horas, começa a falar um monte de abobrinha. Eu não queria de jeito nenhum. Comentário eu não ligo muito. É legal por outro material. Os trailers... eu tenho o início original de A Flor do Desejo, em cópia, não é em negativo. Em negativo, perdeu-se. Aquilo é muito bom. Acho até um pouco melhor do que o que ficou. Foi um corte mal feito, não pelo fato de ter feito o corte, mas foi mal feito. Tem algumas coisas assim que eu guardei.

Z G – Você tem algum projeto para um futuro próximo ou não próximo?

GAP – Projetos eu tenho de montão. O problema é que eu acho que nessa estrutura de produção que tem hoje não. Tem tanta lei de incentivo, e eu não me sinto incentivado. Está muito, muito, muito chato.

Z G – Muita burocracia?

GAP – Burocracia você enfrenta e vence. Mas burocracia para você não conseguir... é como eu falei, não tem lógica. Não faz diferença se o seu filme faz sucesso ou não. Eu estou até desenvolvendo um projeto para a televisão, porque prefiro fazer televisão do que entrar em outra briga como foi para fazer Onde Andará Dulce Veiga?

Z M – A televisão tem muitas possibilidades interessantes. A TV a cabo é muito pouca explorada no Brasil.

GAP – Não vou dizer que é fácil, também. Pelo menos você não tem que procurar patrocinador. Quem produz é o canal. O que eu sei fazer não é arrumar patrocinador, o que eu sei fazer é a droga do filme. Ficar procurando é um inferno. Eu nunca consegui fazer um filme com a mesma estrutura. Agora que estou acabando, já está mudando a estrutura. A Hora Mágica foi feita com a Lei do Audivisual/MinC. Dulce Veiga foi Lei do Audiovisual/Ancine. E agora já estão criando Lei do Audiovisual/Funcine. É um outro jeito de pegar dinheiro, com fundo. É duro isso. De que adiante ter um projeto agora, se vai mudar toda a estrutura? Como é que eu vou fazer? De quem eu terei de puxar o saco? É tudo um inferno. Como falei, projeto eu tenho de montão. Quando eu estou meio deprimido, eu gosto de escrever. De que adianta fazer o filme, se não consegue lançar?

Z M – E a Academia Brasileira de Cinema? Você acha que faz parte?

GAP – Aquela do Rio?

Z G – É.

GAP – É super carioca, super carioca. Eu era membro no começo, depois eu saí. De que adianta você ser sócio de um clube que você não freqüenta? A idéia em si não acho ruim, mas ficou muito carioca. Totalmente cinema do Rio. Não que seja contra, mas não acho que seja minha turma. Como acho que eles não me vêem como da turma deles. Acabei me afastando. Acho que não conseguiu se estabelecer como brasileiro, apesar ter no nome. Ainda não vingou como brasileiro. È ação entre amigos. Tudo no cinema está virando ação entre amigos, a Academia também. Não importa se seu filme faz ou não sucesso, importa os amigos que você tem. Se todo mundo votava como eu votava, não tem muita lógica. Eu não tinha visto a grande maioria dos filmes. Eu anotava o nome dos amigos, e votava neles, mesmo sem ter visto os filmes. Devia haver um monte de gente que faia a mesma coisa. (risos) O que significa isso? Tudo hoje em dia funciona à base do contato. Como os meus contatos eram na Boca do Lixo... (risos) Eu não tenho mais contatos. Agora eu preciso me dedicar a arrumar contatos. (risos) Quando eu arrumar contatos, eu preciso descobrir que tipo de filme eu preciso fazer para agradar os meus contatos. É bem isso que está virando. Com a Funcine, haverá mais contatos ainda.

Z M – Mas como é isso? É um órgão? Já foi divulgado?

GAP – Já, já, é uma realidade concreta. O que vai sair é uma instrução normativa para tentar, espero, cercear um pouco. Do jeito que está, parece a casa da mãe Joana. Você pega o dinheiro e faz o que quer, do jeito que quer. Por enquanto, está assim. Como tudo no Brasil. O Funcine é subordinado a Ancine. Agora se quer fazer uma instrução normativa para saber o que está acontecendo. No momento, ela não sabe nem o que está acontecendo. Ela é a última a ficar sabendo. É um novo esquema. Ninguém mais está conseguindo fazer filmes com a Lei do Audiovisual. Ou você tem uma major, ou você só consegue fazer filme baratinho. Eu já estou de saco cheio de fazer filme baratinho. Todo mundo fica fazendo BO. BO no fundo é uma grande exploração dos seus amigos. Eu fiz Perfume de Gardênia super BO, explorando os meus amigos. Vou ficar a vida inteira explorando os amigos? Todo mundo fez na maior boa vontade, ganhando uma merreca. Era outra época. Todo mundo topava fazer por nada, eu não vou ficar a vida inteira explorando os amigos, que é o BO. O cara está começando na carreira? Tudo bem, todo mundo começa explorando os amigos. Eu já virei veterano. Veterano explorador de amigos? Preciso fazer um filme com um pouco mais de consistência. Com Dulce Veiga, eu ganhei todos os concursos que dava para conquistar. Foi pouco para fazer o filme. Foi feito sem grana. Não dá para fazer um filme um pouco maior que Dulce Veiga, a não ser que tenha uma major, e major acha que eu sou “muito artístico”, que eu vou dar problema. Não é verdade, eu vim da Boca do Lixo, eu não vou dar problema nenhum. Como eu vou explicar para o cara? Eles acham mesmo, eles dizem. Não para mim, mas falam para outras pessoas que trabalham comigo. “Muito autoral...”



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