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Fragmentos Literários

Por Stefanie Gaspar

Cai o Pano, de Agatha Chistie

Um instante de criatividade

O romance policial costuma ser um gênero marginalizado – seja pelo conteúdo, considerado trivial, seja pela forma, marcada pelo conservadorismo e as fórmulas tradicionais de enredo. Entretanto, algumas criações surpreendem pela ousadia e pela qualidade do texto, que conquista o leitor de imediato e garante uma leitura saborosa – Raymond Chandler e as histórias de Arsène Lupin são provas de que tramas marcadas pelo suspense não são obrigatoriamente previsíveis. Mesmo que essa singularidade apareça apenas em uma estrutura verbal, um personagem inusitado ou uma piada eficiente.

Os livros de Agatha Christie, clássicos da literatura policial, costumam confirmar muitos dos estereótipos negativos do gênero, não só pela estrutura narrativa utilizada à exaustão, como pela conotação preconceituosa e plana de algumas situações e personagens. Quase todas os conflitos, após solucionados com a descoberta do assassino, terminam com lições de moral ou fórmulas de sentimentalismo barato. Entretanto, algumas obras da escritora destacam-se pela eficiência em utilizar essas mesmas fórmulas, como Os Cinco Porquinhos e Os Crimes ABC. Mas a verdadeira surpresa da produção da escritora inglesa é Cai o Pano, última aparição do detetive belga Hercule Poirot.

Cai o Pano traz o um dos poucos personagens relativamente tridimensionais da obra de Agatha Christie – Norton, o homem que descobriu a única maneira de cometer crimes de maneira totalmente impune. Para isso, ele utiliza de indução psicológica, técnica tão bem descrita por Agatha Christie no final do livro que o leitor quase consegue imaginar como Norton seria se existisse realmente. Mais do que isso, a autora consegue convencer-nos de que Norton é um tipo real – que pode ser encontrado em qualquer bar ou restaurante. Em suma, um homem respeitável, aparentemente inofensivo, mas que, com uma palavra bem utilizada ou uma frase inocente, é capaz de induzir assassinatos e destruir vidas. É curioso que Hercule Poirot, o personagem mais famoso de Agatha Christie e protagonista de cerca de 33 livros e 54 pequenas histórias, mostre-se muito menos inteligível e verossímil para o leitor que Edward Norton, que aparece apenas em Cai o Pano e tem pouquíssimos diálogos – tudo que sabemos dele é contado pelo narrador, Arthur Hastings. Dessa forma, é possível perceber que até mesmo a maior criação de Agatha Christie não passa de uma figura pitoresca e estereotipada, refém de suas idiossincrasias e privado de uma personalidade realmente interessante. Edward Norton é uma feliz exceção que permanece na memória do leitor.

Agatha Christie, entretanto, acaba deixando de lado algumas potencialidades de um personagem único como Norton. Claramente não havia nenhuma forma de deter a tática por ele utilizada para escolher e executar suas vítimas – não só porque ele nunca cometia o assassinato diretamente, como pela habilidade que tinha em tornar sua influência imperceptível para qualquer pessoa de seu círculo de relacionamentos. A autora, por não conseguir se desvencilhar do protótipo de eficiência absoluta que criou para Poirot, não é capaz de deixar Norton vencer o jogo. Poirot, mesmo de maneira extremamente inverossímil, age de maneira a confirmar seu próprio rótulo, o que o enfraquece ainda mais como personagem. Se Hercule Poirot precisa afirmar sua superioridade em cada frase e construção do texto, talvez seja porque a personalidade que lhe coube pela pena da autora nunca será mais do que uma tentativa – enquanto Norton existe porque escapou, Hercule não consegue se desvencilhar de sua criadora.




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