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Martha
Por Filipe Chamy

Martha
Direção: Rainer Werner Fassbinder
Martha, Alemanha, 1974.

Na linha “marido cruel tortura esposa ingênua”, o cinema legou muitas obras de inegável qualidade, como À meia luz, de George Cukor, e O alucinado, de Luis Buñuel. Talvez influenciado por esses filmes, o grande cineasta alemão Rainer Werner Fassbinder legou Martha, trabalho injustamente subestimado, talvez por seu suporte original ter sido a televisão, e não a sétima arte propriamente dita.

Martha (Margit Carstensen) é uma bibliotecária que possui uma família normalmente desajustada. De passagem pela Itália, seu pai morre de súbito colapso e aí começam os problemas da jovem mulher. Sua mãe enlouquece pouco a pouco, o que faz Martha dedicar grande parte de seu tempo para cuidar dela, inclusive rejeitando uma proposta de casamento de seu chefe. Mas eis que ela se depara com um estranho homem, Helmut (Karlheinz Böhm, de “A tortura do medo” e os filmes da série Sissi), que havia encontrado primeiramente na Itália. Assim como por um impulso inesperado e irresistível, casa-se com ele. Pior erro de sua vida.

O homem é um pequeno demônio. Dissimulado, cruel, perverso e sedutor. Engana Martha e a domina psicologicamente, de modo paulatino e frio. O que ocorre é que é um vilão sádico, cujo prazer é o sofrimento da esposa, que tem sua identidade anulada aos poucos e imiscuída à de seu marido. A mulher é fraca e não consegue se libertar, é subjugada pela força covarde de seu companheiro de matrimônio. Chega ao extremo absurdo de decorar, por medo e sem razão, um livro extremamente técnico sobre o trabalho de Helmut, mesmo não entendendo e nem apreciando nada. Isso já é um estado de humilhação tão extremo que não surpreende que também tenha abdicado de seu gosto musical (e tenha ouvido obrigada tudo que o marido impôs) e de sua liberdade — Helmut a deixa presa em casa, sem contato com o mundo exterior.

Fassbinder sempre se interessou pelos desdobramentos do amor, pois a simples idéia de uma relação perfeita é algo que para ele foge do cinema, ou mesmo da vida. O lado negro do amor sempre é mostrado com visível esmero visual e contado com uma certa doçura irônica pelo diretor. Em Martha, o jogo é ainda mais cruel, na medida que há uma inversão de pólos: o marido, outrora simpático, revela-se um crápula cínico; Martha, de confiante e independente mulher, vira criatura indefesa e desprotegida, perdendo pouco a pouco sua cor. Fassbinder brinca brilhantemente com essa idéia, ao mostrar o clímax do choque do casal após uma violenta sessão de bronzeamento “forçado”, seguida de uma sessão de sexo ainda mais forçada (e violenta!). É o autor manipulando empolgado os significados e significâncias da imagem, sua adequação à história e o efeito pretendido sobre o espectador. Tudo funciona como o esperado. Fassbinder era diretor que trabalhava rápido e sempre bem. Por mais que ele corresse para fazer tantos filmes (mais de quarenta em pouco mais de quinze anos!), nunca se verá um plano mal-feito em um filme seu.

A monstruosidade de Helmut se manifesta em pequenos atos, os quais usa para atormentar Martha e angustiar e enfurecer o espectador. Mata o animal de estimação da esposa (única companhia da mulher na casa opressora do marido), mente deliberadamente (e conseguindo com isso uma irreversível confusão na cabeça já deteriorada de seu alvo). Uma das poucas sensações de alívio que Martha tem é quando fala com seu amigo, o novo bibliotecário (Helmut simplesmente decide que a esposa não mais trabalhará). Que presencia alguns atos de crueldade praticados contra a pobre mulher. Mas sua ajuda agrava (e confirma) ainda mais o destino da coitada, pois a coisa terminará num rodopio — como iniciou, num belíssimo e inspirado movimento de câmera, praticamente a síntese de tudo.



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