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O que fica quando já se foi

Por Filipe Chamy

Arte é atemporal.

Isso posto, pergunto por que a maior parte das pessoas condiciona seus gostos e preferências apenas a fenômenos estritamente relacionados à sua época. Será que as emoções são essencialmente contemporâneas? É difícil se emocionar com algo de outra década, século ou milênio? Por quê?

Porque nada. Isso não é nada científico ou mesmo lógico, mas puramente preconceito. Não existe nada de físico ou psicológico que necessariamente faça alguém desgostar de algo produzido anos antes.

Se eu vejo num filme de 2008 uma mulher chorando e me emociono, por que razão não haveria de me emocionar vendo uma mulher numa situação semelhante em um filme de 1919? A verdade é que abundam os argumentos risíveis e inescapavelmente ridículos quando uma pessoa tenta explicar as razões por só ver/gostar de filmes recentes.

O cinema sem dúvida é a arte que mais sofre com isso. Ninguém tem coragem de falar mal de um Machado de Assis ou de um Camões, mas quase a totalidade das pessoas não quer nem chegar perto de algum filme em preto e branco ou que tenha mais de trinta anos. Não descobriram ainda as razões desse tipo de comportamento, e isso é uma coisa não só horrível como preocupante.

Não sei qual o motivo que faz as pessoas desligarem o senso social contra demonstrações de ignorância quando o assunto é cinema. Ninguém tem pudores de falar que só vê filmes novos, que não sabe nomes de diretores, de atores. Que vai no cinema só pra se divertir, fazer sexo, comer, fazer farra. É a mesma coisa com as datas das obras, não há a menor cerimônia em se afirmar que não se gosta de filme “velho”, ou disparates como “que horror, esse filme não é colorido” são cuspidos à queima-roupa.

Há sem dúvidas uma tendência, generalizada, de acreditar que filmes são “arte menor”. Que cinema não tem a sutileza da literatura, a beleza da música, o lirismo da poesia, a necessidade estética da escultura, a profundidade da pintura. Claro que esse caminhão de clichês é facilmente contornável, mas a má-vontade permanece e reina.

A coisa chega a quase um patamar absurdo. Por essa lógica de só ver coisas muito atuais, o filme favorito de uma pessoa hoje pode ser amanhã um filme que essa mesma pessoa ignorará ou desprezará, pois ficou antigo. É uma idiossincrasia tão bizarra e patética que nem dá para se aprofundar nesse obscuro ponto de vista.

E as pessoas às vezes fazem isso sem nem notar. No Orkut isso é muito fácil de se perceber. Na parte de cinema nos perfis, basta atentar para os títulos colocados. Muita gente coloca dezenas, e que de fato são os filmes mais importantes para ela, mas são apenas filmes dos anos 2000, um ou outro anterior. Será que é tão difícil compreender a estreiteza desse raciocínio primário? Porque logo acima, na área de livros, todos colocam Doistoiévski, Kafka, Fernando Pessoa, todos autores mortos e “velharias”.

Enfim, me parece inequívoca a certeza de que as pessoas se acomodam, querem ter emoções fáceis, rápidas e vulgares. Mas isso pode ser tanto encontrado num filme de 1943 como no mais novo blockbuster no cinema. Não é questão de época. As pessoas não passaram por uma mutação genética nas últimas décadas, os sons não foram alterados por uma entidade mística, as cores não foram inventadas por Pedro Almodóvar. É preciso ter o cuidado de nunca soar abjeto ou cômico, pelo menos se a intenção não for essa. Porque desprezar um filme porque ele é “velho”, “antigo”, “em preto e branco” ou o que seja, é atestado não só de falta de noção como de falta de cérebro.



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