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A Religiosa

Por Filipe Chamy


A religiosa
Direção: Jacques Rivette
La Religieuse, França, 1966.

O segundo longa-metragem de Jacques Rivette passa-se no século XVIII, mas bem poderia se passar nos tempos atuais. A adaptação da obra de Denis Diderot mantém-se fiel ao aspecto crítico e polêmico do original — o filme foi proibido em muitos lugares e mesmo na França teve inúmeros problemas com censura —, ao mesmo tempo em que o diretor adiciona um certo frescor que impede a simples rotulação como um filme baseado em um livro famoso. Jacques Rivette entende de mise en scène, não era à toa que François Truffaut creditava a ele a paternidade efetiva da nouvelle vague, seu cinema impõe-se à literatura de maneira firme e mesmo assim natural.

Anna Karina, com sua delicada aparência de rebeldia, seu rosto de menina assustada e sua voz controlada mas bastante frágil, faz o papel-título. Suzanne é uma moça que acaba sendo forçada a adentrar na vida religiosa, por ser um fardo para seus responsáveis: a mãe não a suporta e ainda há o grave empecilho (até moral) de que a garota não é filha do marido da mãe; é uma “bastarda”, pecado intransponível naqueles dias.

O convento para o qual é designada é uma terrível arena de provações. Rígida disciplina espartana, organização militar, opressão e humilhação esperam a jovem mulher. O que Rivette mostra com muita propriedade é um pequeno e estilizado microcosmo, o convento é praticamente formado apenas por mulheres mas há comportamentos inclusive masculinos, é um pequeno mundo, cercado por suas regras e dilemas.

Suzanne reluta no começo, depois parece resignar-se e rebela-se, para depois se conformar, ainda insatisfeita. Mas não há desgraça que não possa ser aumentada, e o alívio é só aparente quando finalmente consegue permissão das autoridades cabíveis para mudar de convento. A aparência é uma ilusão justamente porque entramos no jogo do cineasta e acreditamos que as mulheres risonhas, sorridentes e possivelmente felizes da segunda casa são virtuosas e simpáticas, quando o vício, a corrupção e a maldade são talvez ainda piores que na habitação anterior, pois agora são veladas e mais traiçoeiras. O entrosamento dá lugar ao inevitável lesbianismo, coisa que a ingênua Suzanne sequer imaginava existir, ou ao menos a expressão confiante e melancólica de Anna Karina nos dá essa impressão. De qualquer modo, esse choque é um indicativo que tristemente confirma a tese de que qualquer paliativo serve apenas para comprovar a existência de interesses obscuros. A religião não é um bálsamo, mas uma tortura que condiciona ações e escraviza emoções. O sentimento religioso não só não aparece como é hipócrita e mentiroso se finge dar o ar da graça (não nos esqueçamos que falamos de religião).

O sofrimento da jovem Suzanne só piora, nessa tentativa de pacificação vinda com o surgimento de um novo lar. Ocorre que a madre superiora desenvolve mais que um simples afeto pela moça. A garota demora para entender que é desejada, e isso só intui mesmo com o auxílio de um padre. Padre este que, por pregar honestamente os fundamentos de sua religião (ou ao menos crer intimamente que o faz, o que dá no mesmo), mexe com os interesses de gente graúda e é “demitido”. Some-se a isso o incômodo (para a madre) ciúme de uma freirinha pela superiora — o que adiciona mais culpa na situação, pois é a prova de que a madre é “reincidente” —, os sentimentos conflituosos de um padre também sem vocação, a raiva da madre pela precaução e medo de Suzanne, o temor da confissão (um crime também é confessado, não?) e temos um quadro completo dos fatores que ocasionam a brusca virada próxima ao final da história. Porque a única maneira de suportar essa vida é ser levado, despir-se de lógica, raciocínio, razão. Jacques Rivette pinta isso com inteligência, conduzindo o espectador ao seu mesmo pensamento.



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