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Dossiê John Wayne

No Tempo das Diligências
Direção: John Ford
Stagecoach, EUA, 1939.

Por Vlademir Lazo Corrêa, especialmente para a Zingu!

O faroeste é tido como o gênero cinematográfico por excelência, que se confunde com a própria história do cinema desde seus primórdios. O primeiro filme norte-americano mais relevante era um western: O Grande Roubo do Trem (1903). No entanto, durante algumas décadas permaneceu menosprezado como um gênero menor, desprovido de maior importância artística. Os estudiosos afirmam que um dos motivos dessa condição foi pelo fato de que por muitos anos os diretores prendiam-se às circunstâncias históricas de povoamento do oeste, fazendo com que os westerns do cinema mudo ficassem relegados apenas a um mero registro documental da conquista do Oeste. Seriam necessários uns trinta anos até que John Ford e John Wayne elevassem o gênero ao status artístico que tanto merecia.

Ford e Wayne se conheceram em Mother Machree (1928), onde o ator trabalhou em um pequeno papel sem falas, ainda creditado com seu nome verdadeiro: Marion Michael Morrison. Dois anos depois, Ford indicou Wayne para estrelar A Grande Jornada, de Raoul Walsh, superprodução que prometia ser o primeiro grande faroeste do cinema sonoro, mas que infelizmente foi um fracasso retumbante, e Wayne foi relegado a segundo plano em Hollywood, onde só pôde estrelar faroestes de quinta categoria (a maioria, vistos hoje em dia, são divertidos e compõem a coleção de dvds O Jovem John Wayne, lançada em bancas). Foi John Ford quem lhe deu uma nova chance e o tirou do ostracismo o escalando no papel principal de No Tempo das Diligências. Ford já tinha um Oscar de Direção no currículo (pelo clássico O Delator), mas o fracasso de seus filmes mais recentes fez com que o encomendassem um western qualquer, gênero que caracterizara o seu difícil começo como cineasta. Mas Ford e seu roteirista habitual (Dudley Nichols) extraíram de uma banal história de assalto (do conto Stage to Lordsburg, de Ernest Haycox) a matéria-prima para um filme que redefiniria o faroeste para sempre.

No Tempo das Diligências caracteriza-se como uma variação de uma das temáticas preferidas de grande parte da obra de Ford: a do caminho de um grupo (ou de um homem só, no caso de outros filmes do diretor) dirigindo-se ao encontro de uma grande fatalidade, geralmente dentro da regra trágica das três unidades (lugar, tempo e espaço). A unidade de lugar é assegurada na diligência que atravessa o Monument Valley, entre Tonto e Lordsburg, com diversos passageiros perfeitamente caracterizados: um jogador profissional, um caixeiro-viajante, um médico alcoólatra, uma jovem esposa de um oficial de cavalaria, um xerife inflexível, um banqueiro desonesto e uma prostituta expulsa da cidade por uma legião de moralistas. Pouco antes do embarque, uma mensagem telegráfica é transmitida de Lordsburg, porém os fios são cortados e a única palavra que é recebida em Tonto é “Gêronimo”, o temido guerreiro líder dos apaches, o que indica uma ameaça de ataque dos pele-vermelhas por aquela região. A diligência segue por entre as grandiosas paisagens do Monument Valley, com suas formações rochosas semelhantes a ruínas, e com os cactos gigantes dominando as poeirentas cavalgadas do veiculo, o qual se junta Ringo Kid (o pistoleiro foragido interpretado por John Wayne), que viaja para acertar as contas com os irmãos Plummer, assassinos de seu pai e de seu irmão. A principio, Ringo diz que teve problemas com seu cavalo e pede para seguir como passageiro até Lordsburg. O xerife o desarma e o leva como prisioneiro na diligência.

A iminência do perigo de um eventual ataque indígena faz com que cada passageiro da diligencia coloque para fora suas verdadeiras personalidades. Os personagens funcionam como arquétipos, e a diligencia em si como um microcosmo de homens e mulheres em busca de redenção e de oportunidade, expressando a formação da nação e do sonho americano. Os conflitos explodem entre os personagens. Até que se avistam sinais de fumaça dos apaches nas colinas distantes.

John Ford injeta calor, humor e conteúdo ao filme, o que representava uma evolução e um salto de qualidade muito grande em matéria de faroestes, ao mesmo tempo em que o controle e o poder de síntese de Ford fazem com que em momento algum a obra caia na chatice ou na redundância. Não há floreios ou qualquer tipo de exageros, mas sim uma coesão impressionante, com uma montagem dinâmica, cheia de imagens admiráveis. Um completo despojamento na câmera e na narrativa, sempre sabendo priorizar o filme no aspecto visual, desprezando falas em excesso para caracterizar situações ou explicar personagens. A opção era sempre buscar soluções visuais, cinematográficas, para obter o efeito necessário. Sua percepção de plano, de enquadramento e de movimentos de câmeras (o alfabeto do cinema) era perfeita, sempre a mais adequada. Tinha completo domínio da linguagem cinematográfica. Suas composições de imagens eram líricas, épicas nas cenas dos ataques dos peles-vermelhas, e intimistas na contemplação das paisagens, geralmente de acordo com a exigência de cada cena. O olhar da câmera de John Ford era sempre para melhor contar uma história, não para chamar a atenção sobre si mesmo. Tudo de uma naturalidade espantosa, por ter sido feita a melhor escolha, a composição adequada, desde a cena de abertura, em contra-plongeé (recurso estilístico no qual a cena é vista de baixo para cima, técnica geralmente utilizada para engrandecer um ou mais personagens) na qual vemos os letreiros e por trás deles, cowboys montados em seus cavalos. Ou então no brilhante uso de travellings frontais como desbravador de personagens. O exemplo mais clássico é quando somos apresentados ao protagonista. A diligência está andando normalmente quando se ouve um tiro; é Ringo, que faz sinal para que o veículo pare. A câmera se aproxima e se distancia de Wayne num travelling tão rico que parece que somos tragados pelo personagem, um travelling tão sofisticado para a época que o cinegrafista quase que perde o foco. Nunca um futuro astro foi introduzido de forma tão magistral. Parecia que John Ford antevia o nascimento de um mito, o que John Wayne acabou mesmo se tornando. O filme tem vários outros momentos memoráveis, como a cena em que Ringo pula entre os cavalos para recuperar a rédea, o ataque dos selvagens ou o duelo final. Ringo Kid mostra muito da vontade férrea de se impor aos obstáculos naturais e humanos para se viver com dignidade, confirmando que nem sempre são os heróis os homens de bem, acima de qualquer suspeita, mas os infratores em busca de redenção, desvendando seu lado humano e solidário, características que se tornariam típicas num gênero imortal como o western. Além do mais, introduzir e definir tantos personagens no contexto de um faroeste de uma hora e meia não é tarefa das mais simples, mas em No Tempo das Diligências, Ford o faz com maestria.

Quando estreou nas telas, No Tempo das Diligências encantou o público e encheu os olhos dos críticos, fazendo com que todos tivessem certeza que o western poderia alcançar alturas inimagináveis, deixando de ser visto apenas como um gênero para enlatados produzidos em série para o consumo rápido e descartável de um publico numeroso e predominantemente masculino. A definição do gênero está toda aqui, consolidando uma mitologia que perdura até os dias de hoje. O cinema jamais seria o mesmo depois do encontro de dois gigantes como John Ford e John Wayne.



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