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Dossiê John Wayne

O céu mandou alguém
Direção: John Ford
3 Godfathers, EUA, 1948.

Por Cristiane Senn, especialmente para a Zingu!

Antes de iniciar, gostaria de fazer algumas ressalvas: primeiro, há grandes chances de as opiniões a seguir sejam extremamente pessoais, dado o fato de que minha admiração por westerns, John Ford e John Wayne têm origem pessoal e familiar. Portanto, peço desculpas por quaisquer eventuais lapsos graves de imparcialidade. Segundo, esta iniciante concentra-se aqui não no ator ou seu papel, mas na análise geral de um dos filmes que mais gosto em sua carreira. E terceiro, o texto a seguir está repleto de spoilers. Portanto, quem não viu o filme é bom parar por aqui.

"O Céu Mandou Alguém" (3 Godfathers, 1948) é uma versão western da história bíblica dos três reis magos. Eis o contraponto maior da obra: um gênero que normalmente temperado de violência, morte, vingança e quantos pecados forem possíveis, apresenta-se cheio de religiosidade cristã, estrelando o ícone do western americano e homenageado em questão, John Wayne. Desta vez, o cowboy durão é Robert Hightower, que junto com os companheiros William Kearney (Harry Carey Jr.) e Pedro Encanación Arango Y Roca Fuerte (Pedro Amendariz) planejam um assalto a banco na pequena cidade de Welcome, Arizona. Lá conhecem o xerife Perley Sweet, que dificulta a fuga dos ladrões privando-lhes de água. Esta última é o elemento motor da saga dos três bandidos pelo deserto e que os leva até a carroça perdida da mãe moribunda com seu recém-nascido, que, em retribuição à ajuda dada pelos bandidos, batiza o menino com seus nomes: Robert William Pedro.

Seguindo o rumo do contraponto inicial, a obra se apresenta repleta de opostos. O plano de abertura mostra a silhueta do líder Robert Hightower, ou simplesmente Bob, imponente em seu cavalo entre cactos no deserto, acompanhado da legenda "Bright star of the early western sky...", em referência à estrela que guiou os três reis magos para a manjedoura na história do Cristianismo. A paródia bíblica se segue desde o nome do local pra onde se dirigem, Nova Jerusalém, até os planos da carroça sugerindo a forma clássica da manjedoura de Jesus. Há a presença constante da Bíblia e da música religiosa. Desde o início, a trilha de Richard Hageman é intercalada entre momentos de fúria e de suavidade gospel.

Depois da fuga dos ladrões, não se vê mais nenhum tipo de violência, assassinato, sangue, duelos, nada do que seria o "usual". O que se vê é o deserto infinito, o vendaval, as pernas de Robert se confundindo com as pernas dos cavalos - que acabam fugindo, pra dificultar ainda mais sua jornada. Os três homens, dos quais por vezes vemos apenas a silhueta sob o sol, são levados ao limite - e até mesmo à morte - simplesmente pela falta de água. O que os faz lutar até as últimas conseqüências é a vida de seu novo afilhado, seu messias, o redentor de suas pobres almas. Independente de crenças individuais, não há como negar a beleza das cenas em que os ladrões encontram a mãe e juram cuidar de seu filho, ou a comicidade dos momentos em que encontram as roupas do bebê, consultam o manual de cuidados com o recém-nascido, dão-lhe seu primeiro banho com graxa e corrigem seu nome a cada vez em que é pronunciado. O personagem Robert nega várias vezes a religião e a Bíblia, e depois o próprio Robert pede para que William, "the Abilene Kid", cante uma canção para o funeral da mulher.

Os contrapontos se apresentam em detalhes pequenos, porém notáveis, como a mudança de ágeis bandidos para pais desajeitados, a cena em que Robert segura o bebê no colo e tenta acalentá-lo com gestos bruscos, o plano da discussão entre Robert e Pedro em que este segura a pistola em uma mão e um chocalho na outra, e diversos outros que encheriam laudas para confirmar a mesma característica. Vale ver e rever o filme quantas vezes forem necessárias para notar tais detalhes.

Enquanto o xerife e seus delegados buscam os mais perigosos bandidos da região, que acreditam ter, inclusive, matado a família e extinguido o poço de água, Robert segue em frente, e já sem os amigos e chega a cogitar a hipótese de se entregar à exaustão. Mas o cowboy de 1,90m de altura jamais se entrega*. E na noite de natal ele se entrega, salvando ao afilhado e a si mesmo.

Enfim, considero esta a réplica mais interessante da trama: o usual cowboy durão e vingativo é apresentado na trama como tal, liderando os colegas e caçoando do sotaque mexicano de Pedro e do sobrenome "sweet", do xerife da cidade. Mas sua dureza não só se transforma em total compaixão quando se encontra em condição do padrinho primeiro do bebê encontrado, como seu instinto paternal se manifesta antes mesmo com o jovem colega ferido Kid. O homem em cuja lápide está escrito "Feo, Fuerte y Feroz" aparece aqui carregando, embalando e besuntando (!) um ser vivo que acaba de nascer.

Por fim, redimido de seus pecados e aceito na família e na cidade, Robert Hightower vai cumprir a pena mínima de 1 ano e 1 mês, para depois voltar e viver uma vida moralmente aceita, cumprindo o juramento do qual não ousou abrir mão. Encerra-se assim o western mais doce e belo que estes olhos já viram, com a interpretação magistral do cowboy mais durão da história do western americano.

*O único filme em que o personagem de John Wayne morre é "O último pistoleiro" (The Shootist, 1976).



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