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Fragmentos Literários

Por Stefanie Gaspar

O Livro do Riso e do Esquecimento, de Milan Kundera

O Livro do Riso e do Esquecimento, de Milan Kundera, é uma leitura peculiar – fragmentada, por ser dividida em sete partes, circular, já que Kundera sempre volta aos mesmos questionamentos acerca de si mesmo e do destino de seu país, e intensa, já que a estética de sua escrita une leveza de texto e estilo com conclusões densas e pesadas sobre a natureza humana. Se não é um livro fácil, torna-se uma experiência interessante porque é neste escrito que Milan Kundera revela, com clareza, aquilo que todos os seus leitores – a partir de obras como A Imortalidade, A Brincadeira e A Insustentável leveza do Ser – já suspeitavam: sua literatura é um retrato ambíguo de sua personalidade. Ambíguo porque, em seus escritos, Kundera tenta domar seus inúmeros pensamentos e colóquios intermináveis, como um ditador das emoções. Mas, na linha seguinte, essa determinação torna-se fugaz, brincalhona, já que ele percebe que é inútil dominar a emoção. Assim como a literatura, os sentimentos possuem vidas próprias.

Na primeira parte do livro, “As Cartas Perdidas”, Kundera conta a seguinte história: o dirigente comunista Klement Gottwald, em 1948, colocou-se na frente de milhares de pessoas na sacada de um palácio de Praga, para discursar aos cidadãos da Cidade Velha. Um de seus camaradas, Clementis, percebeu que, em meio à neve, Gottwald estava com a cabeça descoberta. Rapidamente, tirou seu gorro e colocou-o em Gottwald. O departamento de propaganda tirou milhares de fotos, que mostravam o dirigente com o gorro em sua cabeça, iniciando a história da Boêmia comunista. Quatro anos mais tarde, Clementis foi considerado um traidor – a partir desse momento, em todas as fotografias Gottwald aparece sozinho. “De Clementis, só restou o gorro de pele que fora colocado na cabeça de Gottwald”. A partir desse prelúdio, Kundera conta a história dos tchecos Mirek e Zedna.

Assim como o partido comunista apagou Clementis da História, Mirek tentava apagar a ex-amante, Zdena, de sua vida. Não porque a odiasse, e sim um por um motivo infinitamente mais trágico – Zdena era feia. Para ele, essa tragicidade era ainda mais desesperadora porque seu amor por Zdena havia sido sincero. Ter amado uma mulher feia é uma mancha na existência social de Mirek, é um descrédito eterno perante uma sociedade responsável por lhe atribuir prestígio. Esse amor herético é uma traição que também pode apagar Mirek da História – já que essa História é a da manipulação, do simulacro, do esquecimento, a mesma que é capaz de apagar o comunista Clementis do passado da Boêmia. Se História é sinônimo de inverdade, Zdena será bonita, e Mirek não mais precisará apaga-la de sua vida. Desaparecendo com aquilo que nos parece perigoso por sua natureza anômala, apagamos o passado – o que justificaria cogitar como seria um mundo pautado pelo conceito do eterno retorno, de Nietzsche, para resgatar outro livro de Milan Kundera, a Insustentável leveza do Ser. No eterno retorno, tudo se repetiria infinitamente, e os acontecimentos da História não mais trariam consigo a irresponsabilidade da efemeridade. Cada ação seria irreversível, o que daria ao ser humano uma responsabilidade insustentável – apagar alguém do curso da História seria condenar o indivíduo à inexistência total. Para Milan Kundera, esse esquecimento é um crime, que condena a humanidade a repetir para sempre os mesmos erros, esquecendo-os pela fugacidade da existência. Em O Livro do Riso e do Esquecimento, tenta problematizar a questão da memória: no caso de Clementis e Gottwald, manipulada, e no de Mirek e Zedna, voluntária.

O livro, assim como toda a obra de Kundera, fala muito sobre a singularidade do povo tcheco, de seus sofrimentos e percalços históricos. Mas faz isso por meio de personagens únicos, que possuem uma existência que vai além da nacionalidade. São “personas”, que possuem pensamentos instigantes e se afirmam por suas especificidades, muito além do fato de serem tchecos. Entretanto, esse talento em criar personagens acaba sendo sabotado pelo próprio Kundera – todas as suas criações são reflexos de seus próprios dilemas e dificuldades. Além disso, o autor, em diversos momentos, coloca a si mesmo como personagem, não só falando em primeira pessoa, como contando histórias de sua vida (quase todas de natureza política) – não em uma tentativa de envolver o leitor, e sim em um processo irresistível de falar de si mesmo. Curiosamente, Kundera deixa claro para o leitor que seus personagens são apenas maneiras de problematizar literariamente seus pensamentos. Na quarta parte do livro, “As Cartas Perdidas”, ele inicia o texto falando sobre a personagem central de seu próximo fragmento: “Calculei que, a cada segundo, dois ou três novos personagens fictícios recebem aqui embaixo o batismo. É por isso que hesito sempre em juntar-me a essa numerosa multidão de Joões Batistas. Mas o que fazer? É necessário que eu dê um nome a meus personagens. Dessa vez, para mostrar claramente que minha heroína é minha e só pertence a mim (estou mais preso a ela do que a qualquer outra), vou chamá-la por um nome que nenhuma mulher jamais teve: Tamina”. Além de mostrar a si mesmo no texto, Kundera deixa claro seu processo de criação literária ao leitor, não escondendo que falar de si é explicar como apreender sua própria literatura.

Para Kundera, o mundo (principalmente o tcheco) é como uma roda: enquanto você é parte de um equilíbrio, de uma comunidade (ou de um partido, como na história pessoal do autor), pertence a um círculo, que dança e canta em uníssono e representa uma totalidade. Quando você fala ou faz algo que não está de acordo com as regras, explícitas ou não, dessa roda, você é expulso, em um ostracismo sem volta. Como a roda é uma construção fechada, você jamais poderá integrá-la novamente. Toda a sua vida acontecerá à margem desse círculo mágico. Milan Kundera sente-se assim em relação a seu país de origem, assim como seus personagens Tamina, Mirek, Zedna, Markèta e mesmo Tereza, Tomás e Sabina.

Se o mundo é um eterno esquecimento e o riso só é possível quando se faz parte de um círculo, a literatura de Milan Kundera parece estar entre o abismo da memória e a esperança de um sorriso – mesmo falando de si, Kundera consegue atingir o outro.




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